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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

30.12.19

28 de Maio ‒ A manobra de Salazar


Luís Alves de Fraga

 

Entre 1928 e 1930 o ministro das Finanças, para além de conseguir fazer apertar o cinto a todos os Ministérios e, consequentemente, reduzir a despesa do Estado a valores possíveis de serem suportados pela cobrança dos impostos e taxas aduaneiras, soube aperceber-se das forças e tendências políticas em presença e foi capaz de compreender quais as que devia relevar, subvalorizar e anular. Tratava-se de encontrar pontos de equilíbrios para gerar sinergias aparentemente inertes para levar a cabo qualquer reivindicação autónoma.

A intriga terá sido a arma do ministro, ainda que esta não fosse imediatamente perceptível. Uma intriga sibilina, ameaçando ali e elogiando acolá, parecendo ceder a uns e opor-se com diplomacia a outros.

 

Salazar fez um árduo e arguto trabalho de casa na análise das forças em presença e descobriu aquelas que poderia utilizar em seu proveito e as que devia respeitar ou submeter por qualquer preço, defendendo, de maneira intransigente, a sua imagem de salvador, para já, das Finanças e, um pouco mais para a frente, da Pátria.

Para levar a efeito a sua manobra careceu de criar um núcleo duro de apoiantes sem mais ambições do que a satisfação de alcançar o apreço do ministro, que saberia, mais serodiamente, compensar lealdades e bons serviços. Mas esse núcleo tinha de falar em um só sentido, de forma a que ao discurso fossem permeáveis todos quantos se identificassem com um projecto suficientemente idílico para arrastar incautos e pouco esclarecidos.

 

Ora, olhando à volta, as forças em presença, naqueles dois anos cruciais, eram: por um lado os Exércitos de Terra e Mar onde prevaleciam, pelo menos, três tendências: os sinceros adeptos da ditadura como regime a prolongar-se no tempo, os apoiantes de uma ditadura a extinguir-se depois de reposta a ordem orçamental e financeira e os opositores da ditadura, por se situarem fiéis à velha República de 1910; por outro, os professores universitários, constituindo ou um repositório de aderentes à ditadura ou a ela oponentes; depois vinham, com uma preponderância extrema, os monárquicos, que, não discutindo a ditadura, viam no regime militar a possibilidade de restaurar a Monarquia; em seguida, os republicanos moderados, conservadores e arrependidos; a acrescentar às anteriores, mas atravessando-as transversalmente, estavam os católicos descontentes com o tratamento recebido pelos republicanos; por fim, a oposição republicana irredutível e inamovível perante a ditadura. Da massa popular já se tinha encarregue a força repressiva imposta desde 1926 e jamais tentaria algo de significativo sem liderança.

 

Quais os trunfos de que Salazar dispunha? A sua miraculosa acção orçamental e financeira e a possibilidade de marcar um objectivo superior aos de todos aqueles que constituíam o tecido social importante; um objectivo suficientemente aliciante, distante e, se possível, quase utópico para conseguir uma unidade de acção longa e contínua, permitindo-lhe uma durabilidade suficiente para conduzir os negócios públicos segundo o modelo que imaginasse.

 

O ministro não teve de procurar muito; os ingredientes estavam à mão e vinham provando a sua qualidade.

De Sidónio Pais e de Mussolini tinha a ideologia política, ainda que a inspiração, segundo alguns historiadores, lhe tenha vindo de Charles Maurras e da política social da Igreja (Leão XIII); faltava dar-lhe um nome e criar a máquina locomotora. O conservadorismo do pensamento de Salazar terá, pela certa, resolvido a questão. Seria o arcaico a dar resposta e, assim, nada melhor do que aliar o presente ‒ que desejava épico ‒ ao passado heróico de Portugal. A História seria a de um povo vencedor e global. E essa existia já: a da Expansão Marítima e, com ela, justificava-se o Império Colonial Português, justificava-se a grandeza no mundo e exaltava-se o elemento fundamental da ideologia que desejava construir: um nacionalismo fundamentado na expansão da fé católica.

A máquina locomotora seria a Nação alimentada pelo combustível da Fé Católica. Estas junções vinham do passado e agradavam aos monárquicos, aos católicos, aos republicanos conservadores e moderados. Havia que agradar à média burguesia, em tempos cativada pela República, e, para tal, que melhor do que invocar a Família para congregar esse pilar da sociedade?

Assim, admito, ter-se-á justificado a trilogia do salazarismo: Deus, Pátria e Família. Para agregar estes elementos ia-se buscar à ditadura a autoridade. Afinal, o pai, na Família, tinha o direito e a obrigação de possuir a última palavra, porque a autoridade lhe advinha da comunidade e da divindade.

Faltava definir a concretização deste conjunto num organismo, num agrupamento de sinergias políticas dominado pelo ministro das Finanças.

29.12.19

28 de Maio ‒ Salazar um populista?


Luís Alves de Fraga

 

Estamos num tempo em que se procura estabelecer, tanto quanto possível, a diferença entre populismo e fascismo. Há uma necessidade de aclarar conceitos, pois, no passado ainda recente, usou-se o termo fascismo para, não só identificar o fascismo italiano ‒ o original ‒ como para designar todos os sistemas ditatoriais provenientes de áreas ideológicas da chamada direita. Depois, até houve quem considerasse a existência de um fascismo nos regimes socialistas/comunistas por lhes faltar a liberdade individual tão intrinsecamente característica do liberalismo.

Historicamente não pode nem deve haver uma tão vasta confusão nos conceitos, ainda que eu já, em trabalhos anteriores, a tenha estabelecido, porque designei o regime ditatorial salazarista como fascista. Na verdade, foi-o em certa medida, mas só nessa medida, pois, no plano histórico das ideias não há igualdade entre o Portugal de Salazar e a Itália de Mussolini ou, mais atrevidamente, da Alemanha de Hitler.

 

Assim, para se poder compreender, com rigor, o salazarismo terei de começar por tentar averiguar se Salazar, não sendo um fascista “acabado” foi um populista semelhante, pelo menos, a Sidónio Pais, que, dez anos antes de o professor de Coimbra assumir a pasta das Finanças, foi assassinado na estação do Rossio, em Lisboa. E note-se que, dez anos na História e mesmo na vida dos homens, é um curtíssimo lapso de tempo, dando-nos a possibilidade de admitir que Salazar poderia adoptar, por conveniente cópia, alguns tiques do anterior ditador.

Tenho de me debruçar sobre a personalidade de Oliveira Salazar para conseguir dar dele o retrato mais completo que me possa ser possível, tanto por leituras feitas como por recurso à memória de um tempo que acabou quando eu tinha vinte e sete anos e já muita consciência política do que era Portugal nessa época.

 

Talvez o melhor retrato do ditador, embora feito de forma comprometida por um dos seus delfins, ainda seja aquele que Franco Nogueira dele traçou ao escrever-lhe a biografia, que, utilizando-a como documento histórico, tem de ser expurgada da carga de admiração do biógrafo pelo biografado. Outros, posteriormente, quiseram fazê-lo, mas têm a desvantagem de não o ter conhecido ou visto actuar, dando dele uma imagem quase sempre com distorções (exemplos recentes: Filipe Ribeiro de Menezes e António do Paço). Não serei melhor do que esses, mas tentarei, em poucas linhas, estabelecer diferenças julgadas fundamentais.

 

A formação católica do ditador ‒ e temos de levar em conta o que era essa formação no seu tempo ‒ colocava-o na rota da defesa de um conservadorismo retrógrado, desconfiado das inovações da técnica e das consequências sociais por elas provocadas. A tradição e o obscurantismo massivo eram a grilheta que lhe travava a aceitação da passagem do tempo. Aceitava a existência de uma elite e do seu papel desde que subordinada à vontade divina (uma divindade também ela conservadora, retrógrada e obscurantista). Ele mesmo julgava-se inspirado por Deus. Testemunham-no as conversas com Manuel Cerejeira, anos antes de ter funções de Estado, no convento dos Grilos, em Coimbra.

Reservado, por temperamento, não era homem para viver de banhos de multidão, preferido o silêncio do gabinete de trabalho para gizar soluções. Utilizando uma linguagem da Estratégia, ele manobrava por linhas interiores, substituindo-as às grandes movimentações visíveis aos olhos de todos.

Não era, de facto, um populista, mas gerava as condições para outros poderem usar-lhe o nome, a figura, o talento, a manha, e de tudo isto construírem uma imagem popular não contestável nem maculável, à semelhança dos santos da Igreja de Roma consagrados em hagiografias pouco discutidas. Salazar mantinha uma segura distância entre ele e as massas apoiantes, tal como qualquer prelado dos séculos anteriores a mantinha dos seus “rebanhos”: “Eu sou o pastor, mas não durmo nem como com as ovelhas. Oriento-as e indico-lhes o melhor caminho: o meu!”.

 

É essencial ter presente estas condicionantes da personalidade do ditador para perceber quais foram a linhas norteadoras da construção da ditadura de Salazar, ainda que, para muitos investigadores, não se deva confundir o homem com o sistema por ele criado. Todavia, defendo que, função do facto de não ter feito assentar o regime na vertente populista, deixou que em certos aspectos ele ‒ o sistema político ‒ se confundisse com a sua maneira de viver a vida, fazendo do país e das suas gentes um Estado incapaz de acompanhar a velocidade dos tempos que se viviam em alta aceleração, em especial, depois do final da 2.ª Guerra Mundial.

Mais à frente veremos que tipo de ditadura foi a de Salazar ou, se alguns preferirem, qual o tipo de fascismo adoptado pelo ditador.

26.12.19

Sidónio Pais: um percursor do fascismo internacional


Luís Alves de Fraga

 

Está quase esquecida a figura do major professor doutor Sidónio Pais, que foi Presidente da República, oficial de Artilharia, mestre de Matemática na universidade de Coimbra e ministro plenipotenciário português em Berlim, até Março de 1916. Por isso, resolvi, num tempo em que se fala de populismo, trazer aqui um pouco da sua história e do seu pensamento político.

 

Como republicano emparceirava na ala mais conservadora, tendo aderido ao Partido Unionista, liderado por Brito Camacho. Foi despachado para Berlim, em 1912, depois de uma breve passagem pelo Governo, na qualidade de ministro.

Por convicção ou concordância com as ideias do líder político unionista, foi contrário à beligerância portuguesa na Grande Guerra, aliás como muitos mais políticos e cidadãos anónimos. Mesmo quando estava no desempenho da sua função diplomática, mostrou sempre vontade de manter Portugal fora do conflito, sendo incapaz de perceber o alcance político, de natureza interna e externa, da entrada na guerra.

 

Regressado a Portugal, em 1916, solicitou licença para se ausentar do país, em gozo de férias, tendo ido para França, descansar, acompanhado de uma das suas amantes, porque era um homem incapaz de fugir dos envolvimentos amorosos extraconjugais. Depois de prolongar a estadia fora de fronteiras, regressou a Lisboa, onde começou a dar corpo à conspiração que o levaria a derrubar o Governo de Afonso Costa.

 

É importante trazer aqui uma outra figura política e revolucionária, esta mais destacada do que Sidónio Pais, para recordar a importância que teve no desenrolar de certos acontecimentos e projectos. Trata-se de Machado Santos, o oficial de Administração Naval a quem se ficou a dever a resistência no Parque Eduardo VII e que conseguiu a derrota das forças militares defensoras da Monarquia, no dia 5 de Outubro de 1910.

Na verdade, depois de golpe de 14 de Maio de 1915, que levou à governação de Afonso Costa, Machado Santos publicou uma pequena obra na qual defendia a mudança de matriz constitucional, propondo que, em vez da prevalência e preponderância do parlamentarismo, a República fosse presidencialista e, mais do que isso, que a Câmara dos Senadores fosse substituída por uma Câmara onde tivessem representação as forças produtivas da nação, ou seja, patrões e empregados.

Não tenho dúvidas de que Machado Santos delineou a estrutura do corporativismo, que, sete anos mais tarde, Mussolini começou a implantar na Itália com base no partido fascista. Mas quem se aproveitou das ideias do oficial da Marinha foi Sidónio Pais.

 

Realmente, depois do golpe triunfante de Dezembro de 1917, pôs em execução uma política de verdadeiro populismo como não era hábito em Portugal ‒ daí, anos mais tarde, Fernando Pessoa vir a designá-lo por Presidente-Rei, na medida em que adoptou comportamentos mais próprios dos monarcas do que dos Presidentes de repúblicas. Aproximou-se do chamado homem da rua, tomou banhos de multidão, falou para grandes massas, visitou hospitais, deslocou-se por todo o país, passou revista a tropas em garbosas paradas militares, inventou o distintivo de Presidente da República, desenhou o seu próprio fardamento, alterou a Lei da Separação das Igrejas do Estado, possibilitando a retoma de relações diplomáticas entre a Santa Sé e Lisboa, assistiu a cerimónias católicas, estabeleceu o sufrágio directo e universal para a eleição do Presidente da República, do qual beneficiou com uma elevadíssima presença nas urnas, reformou, por Decreto ditatorial, a Constituição da República, alterando o regime parlamentarista em presidencialista e acabou com a Câmara dos Senadores para a transformar numa Câmara quase corporativa, criou o seu próprio partido político, mandou encarcerar muitos dos seus opositores e ganhou fama de santo.

 

O populismo surgiu em força entre nós. Tão significativamente que me apraz contar um episódio relatado por um grande amigo meu, traduzindo o ambiente que se vivia em Portugal e, particularmente, em Lisboa.

Uma senhora, a avó do meu amigo, vinda de uma aldeia do Algarve para uma consulta médica na capital, suficientemente letrada ‒ o que não era comum na época ‒, desembarcou do comboio poucos dias depois do assassinato de Sidónio Pais e, perante a consternação geral, inquiriu o motivo para tanta tristeza, tendo-lhe sido explicado que tinham morto o Presidente. Ela, por o achar com “ar de boa pessoa”, decidiu entrar numa igreja e rezar por alma dele.

Este é o retrato do nosso povo naquele tempo e do efeito do populismo de Sidónio Pais.

 

Continuamos iguais? Julgo que, mutatis mutandis, nós portugueses e nós europeus, não sofremos alteração capaz de não aceitar formas de populismo mobilizadoras de vontades e de desordens. Ainda não conseguimos alterar a visão emotiva para, racionalmente, negarmos os efeitos distorcidos do populismo.

23.12.19

28 de Maio ‒ O Acto Colonial


Luís Alves de Fraga

 

Definido na Constituição Política de 1911 ‒ a republicana ‒ as, como então aí se designavam, províncias ultramarinas gozavam do «regime da descentralização, com leis especiais adequadas ao estado de civilização de cada uma delas». Isto não invalidava que no trânsito comercial entre elas e a metrópole existissem alfândegas para cobrar taxas que alimentavam os cofres quer ultramarinos quer de Lisboa.

 

A administração ultramarina constituiu sempre um problema, desde 1885, para os governos da Monarquia, pois, para além de terem de determinar a ocupação efectiva do território, poucas vezes se arriscou na descentralização com algum significativo grau de autonomia. Lisboa sempre quis coordenar, administrar, mandar nos governos ultramarinos. Além disso, não havia a clara noção de como colonizar, porque a mais elementar opção nesse aspecto apontava para a tentativa de explorar o trabalho dos negros, reduzidos à condição de escravos, em favor dos grandes interesses coloniais. Mas, levantava-se, também, o problema de “civilizar”, que passava por desenraizar o negro da sua cultura tradicional, trazendo-o para a cultura europeia da época. Contudo, uma acção desta natureza poderia, a médio prazo, levar à criação de uma elite negra capaz de reivindicar independências. Ainda havia mais um perigo nada desprezível: a ambição da Grã-Bretanha, da França e da Alemanha sobre partes significativas das mais ricas colónias portuguesas.

 

Esta foi a herança recebida pela República, daí que o programa mais coerente passasse pela descentralização administrativa, deixando para mais tarde a definição do modo como se deveria encarar a colonização. E foi o que aconteceu. Em 1911, foi logo aprovado e decretado o Regulamento Geral do Trabalho dos Indígenas nas Colónias Portuguesas, que, para além de outras medidas proibia o uso de cadeias, gargalheiras, correntes ou algemas para prender os negros, para os coagir ao trabalho forçado. É certo que a acção civilizacional, na época, passava por proibir e não compreender a ociosidade, achando-se que só pelo trabalho o homem podia afirmar-se com direitos.

Em abono da verdade, deve dizer-se que, se por um lado, era proibido o trabalho escravo ‒ por conseguinte, não remunerado ‒ do qual beneficiassem os fazendeiros europeus, por outro, manteve-se o trabalho não pago quando requisitado para obras públicas a cargo do Estado. Foi assim que Norton de Matos conseguiu abrir uma imensa rede de estradas e lançar os caminhos-de-ferro em Angola.

 

Até quase à primeira metade do século XX houve duas teses sobre a colonização: a do assimiliacionismo e a do segregacionismo. Portugal também passou pela indecisão.

Durante o período anterior a 1885 ‒ Conferência de Berlim para a partilha do continente africano ‒ quando as possessões portuguesas eram pequenas no continente africano, aceitou-se e praticou-se o assimiliacionismo, vendo-se na miscigenação um excelente processo de fazer progredir civilizacionalmente os negros; mas, quando começou a afirmar-se e a prevalecer, em África, a presença britânica, houve uma tendência para separar os negros dos brancos, levando-os à aquisição controlada de graus civilizacionais que vinham de indígena até assimilado.

A República, embora tendo defendido a humanização do tratamento dos colonizados e possibilitando a aquisição de conhecimentos escolares sempre em crescendo, não foi muito mais além do que o já enunciado.

 

A ditadura, depois de findos os dois primeiros anos de afirmação de Salazar como “mago” das Finanças, depois de também ter sido nomeado ministro das Colónias, fez publicar o Acto Colonial, em 1930, onde se estabeleciam, de forma rígida, os princípios básicos da colonização portuguesa, tendo-se optado pela via inglesa, ou seja, a da separação e identificação de grupos diferentes: colonos e indígenas, sendo que estes, não sendo cidadãos, estavam sujeitos ao pagamento do imposto de palhota. Contudo, o mais singular, surge no preâmbulo do Decreto-Lei que aprova e põe em vigor o Acto Colonial, e que passo a transcrever: «A reforma da Constituição Política da República é uma necessidade reconhecida por todos, para ser satisfeita oportunamente.» Salazar, nesta altura, anunciava já que a Constituição de 1911 ia ser substituída, prova da mudança política que se estava a operar pela mão dele, como se vê no trecho que, de seguida, transcrevo: «Os domínios de Portugal constituem o Império Colonial Português. Uma solidariedade moral e política existe substancialmente nas suas partes componentes e com a Mãe-Pátria. Envolve essa solidariedade em especial o dever de contribuir o Império para que sejam garantidos os fins de cada um dos seus membros e a integridade e defesa da Nação. Em tudo isto que se afirma no Acto Colonial há uma ideia basilar que outras preocupações tendiam talvez destruir.» Para finalizar o preâmbulo, diz-se ainda: «No seu conjunto, o plano do Governo tende a realizar, pelo maior esforço útil, a elevação dos nossos domínios a par com a da metrópole. A Nação corresponderá eficazmente com a sua confiança e actividade a estas grandes aspirações impostas pela missão de Portugal no mundo.»

 

Lendo com atenção as partes transcritas percebe-se que o discurso ganha uma nova forma, uma nova personalidade: o cidadão, como indivíduo central da atenção do Estado, está a ser substituído pela Nação e pela Pátria, que também é Mãe. Está a definir-se uma nova democracia e uma nova liberdade. Mais lá para a frente tentarei explicar esta mudança.

 

O Acto Colonial cria o Império Colonial Português, pois, literalmente, abandonam-se as designações tradicionais para impor esta, muito em voga na época; a colonização e civilização dos indígenas é feita através de missões dos cultos religiosos autorizados, tendo em atenção o Padroado do Oriente (adeus laicidade do Estado!); os naturais não europeus de cada colónia são sempre indígenas; a descentralização administrativa e financeira é assegurada, mas prevalece o império de Lisboa sobre os governos locais; haveria lugar a um orçamento para cada colónia, mas estabeleciam-se as despesas que seriam por conta do orçamento da metrópole e do da colónia.

Curioso será ler o parecer n.º 331 do Conselho Superior das Colónias, que vem logo de seguida à publicação do Decreto n.º 18570 (Acto Colonial) de 8 de Julho de 1930, publicado no Diário do Governo. Ali se percebem as divergências sobre a nova posição, em especial duas: a redução dos naturais à condição de indígenas e a da nova designação de Império Colonial, por se ter abandonado a tradicional de províncias ultramarinas.

 

Salazar, lentamente, ia lançando raízes para fundamentar bem a sua doutrina política que, como se verá, pouco tinha de original.

22.12.19

Pensar no populismo


Luís Alves de Fraga

 

Dou comigo a tentar perceber, exactamente, o que é isso de populismo, olhado numa perspectiva política.

 

Já comprei alguns livros de autores tidos como autoridades em fascismo e populismo. Há aspectos em que todos convergem e outros em que divergem. Uma coisa, tanto há populismo de direita como de esquerda e a metodologia de actuação só diverge nas palavras utilizadas.

 

Por cá, na nossa praça, acho que o populismo ainda não chegou ao máximo da sua expressão, mas, pelo que leio, o nosso "fascismo" foi muito populista. Ora tomem nota desta passagem do livro Do Fascismo ao Populismo na História, de Federico Finchelstein (p. 34):

 

«Em todos casos, o populismo fala em nome de um povo único, mas também da democracia. No entanto, a democracia é definida em termos restritos como a manifestação dos desejos dos líderes populistas. O populismo não pode ser definido de forma simplista pela sua afirmação de representar exclusivamente o povo inteiro contra as elites. Além de quererem agir em nome de todo o povo, os populistas também acreditam que o seu líder é o povo e devia ser um substituto dos cidadãos na tomada de todas as decisões.»

 

Façam o favor de voltar a ler. Tentem digerir bem as palavras. Os mais velhos recordem o salazarismo ("Tudo pela Nação, nada contra a Nação") e o marcelismo. Mais recentemente, reavivem a memória com os discursos de Pedro Passos Coelho e, até, os slogans de campanha do PSD/CDS.

 

Acho que o mais necessário para se ser um bom cidadão é não ser parvo, não comer gato por lebre, nem tomar a sombra pelo objecto.

13.12.19

28 de Maio ‒ A conjuntura social entre 1928 e 1930


Luís Alves de Fraga

 

Para se perceber o que foi e como foi o impacto das medidas orçamentais de Oliveira Salazar nos dois anos iniciais em que sobraçou a pasta das Finanças, teremos de traçar o retrato da sociedade portuguesa nesse tempo e, também, o da forma como se vivia no país, pois o tecido social urbano era completamente diferente do das aldeias e lugarejos das províncias.

 

O índice médio de analfabetismo, em 1930, era de 62% não estabelecendo diferenças entre populações urbanas e rurais. No entanto, tudo me leva a crer, esta taxa deveria ser mais baixa nas grandes cidades ‒ Lisboa, Porto e Coimbra ‒ e mais alta em todo o restante território, exactamente porque estas urbes exerciam atracção para fixação de jovens com conhecimentos primários essenciais à conquista de um trabalho fora do sector agrícola.

Assim, nas cidades acima referidas como maiores, o leque social abria-se quase todo, abrangendo o maior número possível de actividades, com o consequente reflexo no tipo de vida e de consumo.

 

Começava-se na alta classe média, vivendo em casas próprias ‒ grandes apartamentos modernos ou moradias com maiores ou menores traços apalaçados ‒, que empregavam significativo número de criadas, cozinheiras, mordomos, jardineiros e motoristas e onde não faltava o dinheiro, permitindo até, aos serviçais, razoáveis pagamentos ou condições de vida com algum tipo de conforto bem distante dos restantes trabalhadores dos mesmos ramos, mas ao serviço de grupos sociais menos abastados. Foi um tipo de gente para quem o aperto orçamental e fiscal não provocou desconforto de maior, pois, pelo contrário, garantiu mais segurança na possibilidade de maiores lucros nos investimentos feitos, graças à tranquilidade social e laboral dos trabalhadores indiferenciados das suas propriedades agrícolas ou fabris ou, mais raros, dos seus empreendimentos na área dos serviços (banca, seguros e empresas de navegação ou outros similares).

 

Logo a seguir vinha a média classe média, vivendo em casas alugadas umas de maior e outras de menores dimensões, umas localizadas em bairros novos ou, talvez a maioria, em bairros tradicionais. Era gente que podia associar a um trabalho bem remunerado os rendimentos de propriedades agrícolas de média ou pequena dimensão. Eram comerciantes com rendimentos garantidos, mas sujeitos às flutuações da compra e venda ou donos de pequenas fábricas, cujos produtos se escoavam consoante as disponibilidades do mercado, ou funcionários superiores no aparelho do Estado. Empregavam uma ou duas criadas de servir para exercício dos trabalhos domésticos. Para esta imensa faixa social a política orçamental e fiscal, por um lado, reduziu oportunidades de aumento de rendimentos, mas, por outro, fruto da imposição de ordem no domínio laboral e ausência de capacidade reivindicativa por parte dos trabalhadores, trouxe uma sensação de interregno para um progresso, que se imaginava possível e, acima de tudo, desejável. Foi o grupo social de apoio da política de Salazar; foi aquele para quem o poucochinho era muito ou suficiente, porque estava garantido; foi aquele para quem era melhor assim do que como estava antes, ainda que o antes pudesse vir a oferecer-lhe possibilidades de crescimento e de ascensão social e económica.

 

Continuando a descer na escala social, vinha a pequena classe média constituída pelos empregados do comércio, dos serviços, do funcionalismo estatal de baixa condição, dos exíguos comerciantes, dos assalariados com emprego garantido, das costureiras ditas de alta costura, daqueles que viviam dos biscates feitos graças às suas habilidades manuais, que habitavam em pequenas casas alugadas nos bairros mais populares das cidades importantes e que não tinham rendimentos para pagar a empregadas domésticas, ficando as mães de família a tratar dos filhos, do lar e da administração dos parcos recursos financeiros. Para estes, o maior número dentro da chamada classe média, a política orçamental e fiscal do ditador financeiro, representou um tremendo esforço, pois, com salários baixos, sem capacidade reivindicativa, com um custo de vida crescente, toda a subsistência assumiu-se como um exercício de sobrevivência. Por certo, só o medo, nas suas múltiplas facetas, os conteve de caírem em revolta. Mas, curiosamente, foi neste substrato social que, pouco tempo depois, logo nos primeiros anos da década de trinta, se encontrou a massa de adesão para preencher as fileiras da força armada criada pelo regime e que deu pelo nome de Legião Portuguesa.

 

Por fim, nesta análise sintética dos estratos sociais urbanos, surge aquele que, sem conotação marxista, chamo proletariado, constituído pelos operários das parcas indústrias existentes e da construção civil, pelos cantoneiros municipais, que apanhavam o lixo urbano, pelos estivadores e fragateiros e varinos ou varinas (no caso de Lisboa e Porto), aguadeiros, galegos (que se empregavam na execução de fretes vários), carroceiros e cocheiros, condutores de veículos de transportes colectivos e todos para quem a única forma de obter rendimentos financeiros resultava do exclusivo emprego da sua força física para trabalhar. Foi sobre estes que mais fortemente caiu o peso das medidas orçamentais e fiscais por verem reduzidos os salários. Foram estes que pagaram, mais do que todos os restantes, o equilíbrio do orçamento, pois a subida dos preços e a baixa dos rendimentos os excluía de uma vida com o mínimo de dignidade.

 

Ao contrário do que acontecia nas cidades, as populações rurais, excluídos os proprietários agrícolas com terras suficientes para terem uma vida de abundância, paradoxalmente, ficaram melhores e piores do que antes; melhores, porque puderam sobreviver com aquilo que produziam, quando tinham uma nesga de terra para cultivar (se a não tivessem, como acontecia no Alentejo e Algarve, então, a miséria era total, comendo pão duro, umas sopas deslavadas, um pouco, muito pouco, de toucinho e bebendo vinho para arranjar energias); piores, porque ficaram sujeitos aos salários de miséria pagos pelos empregadores.

 

Com Salazar, Portugal encolheu-se sobre si próprio e conformou-se com a sua miséria. Contestar a situação era impossível, porque as forças da ordem ‒ polícia cívica e Guarda Republicana ‒ reprimiam brutalmente, enchendo prisões e entregando à polícia política os suspeitos de liderança de revoltas. A censura prévia dos jornais e de todas as outras formas de expressão impedia a difusão das notícias, dando, do país, uma imagem de contentamento. A propaganda ‒ ainda que não organizada sistematicamente ‒ completou a ideia de que Oliveira Salazar estava a salvar Portugal, criando condições para uma prosperidade que a 1.ª República não havia explorado por incapacidade e, mais do que tudo, por desentendimento entre os políticos e os partidos.

07.12.19

28 de Maio ‒ A política orçamental de Salazar


Luís Alves de Fraga

 

Quando António de Oliveira Salazar toma posse da pasta das Finanças, vários desafios se lhe colocam pela frente: o dos orçamentos altamente deficitários, o da dívida pública interna e externa quase descontrolada, o do fraco valor do escudo no mercado internacional e o da falta da infra-estruturas básicas para enfrentar um progresso económico inexistente.

Esta situação não foi herança da 1.ª República; foi herança da guerra que assolou a Europa e o mundo e das fracas possibilidades de enfrentar a corrida desenvolvimentista da segunda metade do século XIX. A falar-se de herança e de responsabilidades temos de as ir procurar nos governos da Monarquia, em especial os dos últimos vinte anos de regime. O aparente salto para uma certa modernidade conseguido sob a acção de Fontes Pereira de Melo deveu-se a uma errada forma de entender o progresso na Europa. Fontes partiu da aparência para atingir o objectivo em vez de partir do objectivo que conduzia a uma determinada aparência. Vou explicar.

 

Fontes Pereira de Melo, na sua viagem pela Europa, muito jovem ainda ‒ no posto de tenente engenheiro ‒ colocou nas vias de comunicação ‒ rodoviárias e ferroviárias ‒ a base do progresso industrial e passou a admitir que, criando as condições de escoamento dos produtos fabricados, o investimento na indústria se fazia de imediato; ora, o que aconteceu na Grã-Bretanha e em França foi exactamente o contrário: a existência de indústrias de produção em escala impôs a construção de vias que: ou levavam os produtos acabados para os mercados ou, porque os mercados consumidores estavam junto das zonas de fabrico, traziam as matérias-primas até às fábricas.

 

Fontes endividou o país ‒ dívidas que só já na segunda metade do século XX se saldaram ‒ para construir estradas e caminhos-de-ferro, esperando que os investidores estrangeiros e nacionais fizessem grandes fábricas nas povoações junto das vias de comunicação. Na realidade, ficaram as que já existiam e pouco mais se fez. Assim, de forma enviesada, distorceu-se a economia ‒ pouca ‒ que havia. Cabia à República repor a ordem, se não tivesse havido a guerra, e nem se podem assacar responsabilidades por Portugal ter sido beligerante, pois, sendo-o, procurou animar-se a pouca indústria capaz de responder ao caos.

 

A ditadura militar recebeu toda a distorção e nada fez, nem podia fazer e, como já vimos, teve de se entregar nas mãos de um professor de Finanças, que, parecia, era capaz de tirar coelhos de dentro da cartola sem lá os ter metido primeiro. Assim, dá vontade de inquirir:

‒ Qual foi o segredo de Salazar?

Ele, com toda a singeleza, respondeu de maneira a que qualquer bruto, bronco ou idiota fosse capaz de perceber:

‒ Fazer o que uma boa dona de casa faz: não exceder a recita, gastando mais do que tem!

E fê-lo, exactamente assim! Contudo, hoje, por experiência própria e sacrifício colectivo, sabemos que esta fórmula mágica implica muito mais do que aquilo que encerra o seu enunciado simples.

 

O equilíbrio orçamental reduziu, de imediato, os salários e o poder de compra de todos os funcionários públicos, incluindo os militares; cortou todo o tipo de investimento nas infra-estruturas estatais, fossem quais fossem as suas finalidades ou prioridades; limitou o mais possível a chamada máquina do Estado com toda a série de funcionários dela dependentes; fez crescer horários de trabalho; dificultou o consumo de todos os que viviam de salários estatais. Portugal, em um ano, ficou reduzido à mais expressiva miséria, jamais possível de imaginar. Por isso, Salazar pediu aos militares que o deixassem trabalhar e que contribuíssem para a paz nas ruas e a tranquilidade nas consciências! Excelente recado para incentivar a repressão.

 

Mas o ministro das Finanças não podia ficar só pelo orçamento equilibrado; tinha de encontrar receita para cobrir a despesa corrente (reduzida ao mínimo) e mais a diferença para liquidar os empréstimos da chamada dívida interna ‒ consolidando-a, ou seja, não a aumentando e estabelecendo uma taxa de juro fixa para a tornar uma fonte de receita para aqueles que a haviam comprado em tempos de maior abundância. Ao mesmo tempo, tentou, também, consolidar e reduzir a dívida externa.

Estas medidas tiveram, necessariamente, forte impacto nos orçamentos do Estado logo nos anos iniciais da ditadura financeira. Mas não se ficaram por aqui. Houve que ampliar a receita à custa dos direitos aduaneiros, associando dois factores em simultâneo: aumento proteccionista seleccionado em relação a certas importações e aumento dos direitos de exportação e importação de produtos de e para as ilhas adjacentes e colónias. O objectivo era apontar para uma auto-suficiência, jamais possível de conseguir.

Salazar pôs a grande massa populacional portuguesa a viver com base numa economia de subsistência e com salários de verdadeira miséria, pois tinha de proteger os sectores mais produtivos do tecido económico nacional, tanto na indústria como na agricultura.

 

Em suma, de 1928 a 1930, o antigo professor funcionou, naqueles anos, como um regulador financeiro e económico, já que, também quis, através da arrecadação de ouro, aumentar e fortalecer as reservas do Banco de Portugal, para valorizar o escudo nos mercados financeiros internacionais.

Espremer mais o povo era impossível. Havia que estabelecer o controlo político para levar por diante o saneamento nacional, continuando aquilo que se começou a chamar a Revolução.

04.12.19

28 de Maio ‒ As condições de Salazar


Luís Alves de Fraga

 

É sabido que o comandante Mendes Cabeçadas, no dia 4 de Junho, estando Gomes da Costa aquartelado na Amadora, às portas de Lisboa, quis formar governo, dando ao velho general as pastas da Guerra, Marinha e Colónias e chamando de Coimbra três professores para chefiarem os Ministérios das Finanças ‒ Oliveira Salazar ‒, Instrução Pública ‒ Joaquim Mendes dos Remédios ‒ e Justiça ‒ Manuel Rodrigues Júnior. Os professores tomaram a decisão, preventiva, de se encontrarem com Gomes da Costa, na Amadora, no dia 4. A situação, como já sabemos, não estava completamente clarificada, vindo a definir-se, somente, no dia 17 de Junho quando o general afastou Mendes Cabeçadas da Presidência da República e da do Governo. E, como vimos, também foi sol de pouca dura, porque o general Carmona acabou por depor Gomes da Costa e ficar senhor único da situação, como o desejavam os mais radicais nacionalistas mentores do golpe iniciado em Braga.

 

Do encontro na Amadora, com o herói de La Lys, resultou que Oliveira Salazar regressou a Coimbra sem tomar posse da pasta das Finanças, tendo ficado os outros dois em Lisboa.

O que terá determinado o jovem mestre coimbrão a desistir e recolher-se, de novo, às suas aulas?

A certeza de não ter chegado o momento correcto para pôr em andamento o seu programa de restauração financeira. Os militares propunham uma ditadura, mas não sabiam o que fazer dela. Os golpistas sabiam, talvez, o que não queriam, mas não sabiam o que desejavam para Portugal. E era natural que assim fosse. Os militares não se fazem para conduzir políticas, nem estão preparados para tal; eles sabem fazer a guerra, gerir a violência e, mesmo assim, só quando dispõem dos meios apropriados para a executar em pé de igualdade com o inimigo. A luta de David e Golias só é verdadeira na tradição bíblica. Os militares fazem revoluções, gerando condições para entregar aos políticos o poder. Depois, ficam a ver se é necessária nova intervenção.

Não se pense que tal iniciativa golpista é exclusiva dos chamados Estados do Terceiro Mundo. Ela acontece e acontecerá sempre que o sistema político ‒ seja ele qual for ‒ tenha chegado ao fim, se tenha exaurido, se mostre incapaz de encontrar soluções concordantes com o sentir dos povos. Os Exércitos são, realmente, a consciência das nações, porque são a última salvaguarda do colectivo enquanto presente e futuro.

 

Salazar teve de esperar dois anos para poder aceitar a pasta das Finanças ou, dito de outra maneira, os militares poderem aceitar as condições de Salazar. Essas condições só os militares lhas garantiam desde que continuassem a deter o poder sem discussão de ninguém. Mas, para atingir tal ponto, também houve necessidade de que a situação se degradasse até não haver outra saída para além daquela que lhes era imposta.

 

A 27 de Novembro de 1927, a ditadura militar, por intermédio do ministro das Finanças, general Sinel de Cordes, formalizou o pedido de empréstimo de doze milhões de libras esterlinas à Sociedade das Nações (SDN).

Foi um assunto sempre tratado pela rama, durante a vigência do Estado Novo. Disse-se pouco e explicou-se mal, de modo a manter a verdade fechada a sete chaves.

Vou tentar, com brevidade, contar e explicar o essencial.

 

Apresentada a proposta, porque as praças de Londres, Paris e Washington não se mostraram sensíveis a conceder tal empréstimo, de imediato ela se tornou pública e passou a ser discutida na imprensa internacional. Havia um entrave de extraordinária grandeza para toda a banca: as dívidas do Estado português, para serem contraídas, careciam da aprovação do Parlamento nacional. Ora, estando suspensa a Constituição de 1911 e fechada a Casa da Democracia, a contracção de um empréstimo era absolutamente ilegal.

Se a SDN o concedesse acabava por tornar legal e legítima a ditadura sobrepondo-se à Constituição Política nacional e ao próprio Parlamento. Foi por esta brecha que entraram os representantes dos partidos republicanos exilados no estrangeiro, chefiados por Afonso Costa e Bernardino Machado, que formavam a Liga de Paris. Tornaram público que, se voltassem ao poder, não se responsabilizavam pelo pagamento da dívida.

 

O assunto começou a arrastar-se e, agora, com cautelas redobradas por parte dos potenciais credores de Portugal: exigiam garantias que iam do controlo das finanças e da economia até à entrega das colónias. Em Portugal discutia-se cada uma das propostas, pois foram feitas algumas à margem da SDN, nomeadamente as da Itália, de Mussolini, e as da Espanha (sempre a Espanha!), de Afonso XIII e Primo de Rivera.

Acabou o ano de 1927 e o assunto nem estava meio resolvido. Para os militares governantes, era a prova de fogo. Os velhos republicanos reclamavam à boca cheia, garantindo que Portugal estava à venda. Recordavam, e com toda a razão, que num dos últimos Governos de António Maria da Silva, o chefe democrático substituto de Afonso Costa, se tinha conseguido estabilizar a moeda e quase evitar o deficit.

 

No meio de todo este relato convém recordar um pequeno pormenor, cujo significado é primordial para perceber a chegada de Salazar à pasta das Finanças, em Abril de 1928. Aí vai ele.

O general Sinel de Cordes, já ministro das Finanças, em 1926, e depois da recusa de Oliveira Salazar para sobraçar a mesma pasta, encarregou-o de, e ele aceitou, fazer o estudo da reforma da Contabilidade Pública e da revisão fiscal. Ou seja, Salazar, entre 1926 e 1928, trabalhou à sua maneira alguns dos mais importantes instrumentos financeiros necessários à consecução do milagre de que viria a ser autor poucos anos depois!

 

A nomeação de Salazar para ministro das Finanças resultou de uma série de factores: em primeiro lugar, das imposições feitas pela SDN quanto ao empréstimo, em segundo lugar, do facto de ser, na altura, o técnico que melhor conhecia o funcionamento da recolha das receitas e da execução dos gastos do orçamento do Estado, depois, de ter emitido publicamente opinião sobre o saneamento financeiro e, finalmente, de saber como executar uma política da qual se pudesse escapar ao empréstimo tão censurado. Assim, Oliveira Salazar impôs condições, e estava, como vimos, de posse de elementos suficientes para as poder impor. Somente queria que acabasse a possibilidade de todos os ministros terem liberdade para decretarem despesas extraordinárias nos seus Ministérios e concentrar na sua mão a autorização para a sua execução, ficando as restantes pastas sujeitas à dotação orçamental imposta por ele. Era a ditadura financeira!

Os militares aceitaram ‒ porque outro remédio não havia ‒ e Salazar tornou-se o dono da situação política.

Veremos, mais tarde, as consequências.

01.12.19

28 de Maio – Determinismo histórico


Luís Alves de Fraga

 

Tenho dito, sem me cansar, que a História tem dois fins: contar e explicar. Pode contar cada vez melhor, conforme melhor se explica o acontecimento. Mas a História não é invenção, nem condicionalismos. Ou seja, a História precisa de documentos para ser contada e não se faz através do condicional, isto é, com o uso de “ses”.

Assim, parece, a História resultará somente do que aconteceu. Contudo, para a explicar, temos de admitir a possibilidade de os acontecimentos estarem, à partida, limitados; haver uma espécie de pré-condicionalismo ou, se se preferir, de um determinismo.

E será que há? Isso levar-nos-ia ao uso dos “ses”.

Vale a pena explorar, quando falamos de uma ditadura tão longa como aquela que nasceu em 28 de Maio de 1926.

 

A primeira condicionante dos acontecimentos humanos é a geografia. O que se passa está parcialmente limitado por o onde tudo se passa. Dito de outra forma, o espaço age sobre a ocorrência, o mesmo é dizer, há uma relação do Homem com a Terra. Assim, ao olhar para a Península Ibérica, podemos dizer que há uma região ‒ a meseta ibérica ‒ pobre que, por o ser, o poder político que sobre ela se exerceu soube desenvolver uma capacidade especial: a de se expandir sobre as áreas que lhe são periféricas e mais ricas, havendo, todavia, uma que lhe escapou por entre os dedos: Portugal.

Tal fuga deveu-se ao conjunto de duas manobras coincidentes no tempo: a afirmação de poder fora da Península e uma aliança com uma potência marítima geograficamente mais distante (a Inglaterra).

Se olharmos para a História de Portugal, partindo de uma perspectiva de topo (como se fossemos omnipresentes ou viajando num balão, lá no alto) e sem nos prendermos a pormenores, percebemos que houve sempre ‒ salvo no período do domínio dos Filipes ‒ uma espécie de vasos comunicantes entre Portugal e Espanha, para evitar situações de atracção de Madrid sobre Lisboa: se lá imperou a Inquisição o mesmo aconteceu cá; se cá houve expansão marítima lá houve conquista no Novo Mundo; se lá era absoluto o poder, por cá também o era; se lá venceu o liberalismo cá procurou ajustar-se o regime à mesma ideologia. Os grandes ciclos de mudança quase foram simultâneos no tempo tanto de um lado da fronteira como do outro.

 

Nada disto se trata de um acaso, mas de uma sensibilidade colectiva que se não explica de outra forma que não seja o desejo de fugir a um destino imposto pela geografia.

Ora, vamos, à luz do que tentei explicar, perceber o 28 de Maio de 1926, num contexto ibérico e, até, um pouco mais amplo.

 

Acabada a Grande Guerra, como já referido, as economias europeia e portuguesa ficaram de rastos. A Grã-Bretanha estava financeiramente exausta e Portugal carecia de apoios que já não podiam vir de Londres, como habitual. Ou seja, a velha aliança não tinha condições de funcionar em pleno, especialmente, para defesa do nosso país. A Espanha, embora neutral, passou por dificuldades económicas tão significativas como se tivesse sido beligerante. Tal facto ditou-lhe a necessidade de recorrer a uma ditadura militar, em 1923, com a qual se conseguiram vários resultados seguros: crescimento do emprego na indústria, melhoria dos salários e algumas vitórias militares em Marrocos.

Foi dessa estabilidade que, em Lisboa, se desconfiou, em círculos militares nacionalistas muito restritos, pois podia, eventualmente, renascer o desejo, face à instabilidade política portuguesa, de anexação por parte da Espanha para gerar uma ampla zona de paz e tranquilidade na Península.

 

Este pormenor ‒ e outros ‒ não é destacado pela historiografia versada no 28 de Maio de 1926, no entanto, podemos deduzi-lo através do rasgado elogio da ditadura militar portuguesa tecido, em 1941, pelo historiador sevilhano Jesus Pabon, homem de direita, conservador, monárquico e nacionalista, feito no livro A Revolução Portuguesa, demonstrando que a igualdade de regimes políticos em ambos os lados da fronteira era a única forma de os dois vizinhos conviverem sem desejos anexionistas de Madrid. Para a explicação histórica este é um elemento a não descartar.