É sabida a resistência que o general António de Spínola desenvolveu, quando ainda Presidente da República, contra a independência das colónias. Discutiu-se muito, nessa altura, a diferença entre autonomia, autodeterminação e independência.
É claro que o general tinha os seus receios bem fundamentados na História. Ele sabia que a sobrevivência independente e soberana de Portugal passou, e poderia passar num futuro muito próximo, pela posse de colónias, então, já só em África. Por via de uma política externa bem arquitectada, no mínimo, desde 1640, a afirmação peninsular de Portugal encontrava esteio na aliança com a Grã-Bretanha e no comércio marítimo com os territórios de além-mar. Mas isto era continuar a ver a evolução da política internacional através dos “óculos” de Oliveira Salazar, ou seja, não querer perceber que a Grã-Bretanha havia perdido todo o poder, enquanto potência económica marítima e militar, a favor dos EUA.
Nos anos 70 do século passado, embora parecendo em alta, a afirmação da CEE e da Europa, a verdade é que o equilíbrio estratégico mundial passava pela correcta gestão do conflito entre os EUA e a URSS.
A Europa era um grande “peão” entre as duas superpotências e jamais seria, em quaisquer circunstâncias, discutido o lado para o qual havia de pender naquele quadro do conflito.
Assim, Moscovo não tinha interesse nenhum na existência de pólos de desacordo na Europa ‒ como se fez crer que, Portugal poderia vir a ser, como consequência da sua “revolução”. O que verdadeiramente interessava a Moscovo era a garantia da independência das colónias portuguesas de África dentro do quadro ideológico definido pelos principais partidos de libertação, ou seja, dentro das doutrinas marxistas-leninistas, porque, sendo assim, ficavam adentro do “plano” de divisão de esferas de influência, não interessando nem a Washington nem a Moscovo, a existência de uma intermediação de Lisboa; as duas grandes capitais haviam de decidir, face ao desenrolar dos acontecimentos ‒ entenda-se, independências das colónias africanas ‒, qual ou quais fariam parte da influência soviética ou dos interesses capitalistas americanos.
Isto não o percebeu nem Spínola, nem talvez a maioria dos oficiais do MFA mais destacadamente envolvidos no processo de negociação das independências.
Quem terá compreendido, com largos traços de realismo, esta situação foi o almirante Rosa Coutinho e, quiçá, o major Ernesto Melo Antunes, por saberem que a melhor opção dentro das ideologias insurgentes era a que recaía nas de matriz marxista, porque não tinha como inimigo objectivo nem o branco nem o colono trabalhador e dependente.
Depois de afastado o Presidente Spínola o caminho ficou aberto para as negociações que tinham de ser feitas, porque havia a Guiné onde nada existia para negociar em termos de independência, a não ser a data de saída dos militares e dos últimos representantes da administração colonial.
Moçambique não constituiu problema: a negociação era feita com a FRELIMO. Tinha de se acertar o modo de efectuar a transição de poderes e a entrega do património infra-estrutural, bem como estabelecer as obrigações de parte a parte no tocante aos interesses de ambos os Estados.
Os acontecimentos de Setembro de 1974, na cidade de Lourenço Marques, tiveram, ao que parece, incentivo e apoio de Lisboa, por parte de certos políticos e gente das finanças colada a Spínola, traduzindo-se na exploração dos sentimentos de ódio racial e do muito medo de perda de privilégios adquiridos ao longo dos anos, pela prática de maus hábitos. O centro de exaltação dos ânimos foi estabelecido nas instalações da Emissora do Rádio Clube de Moçambique, muito perto da zona baixa da cidade. Foram horas de grande desorientação, com a clara tentativa de gerar a divisão dos povos moçambicanos e de dar voz a movimentos colaboracionistas com a política do regime ditatorial.
Pôs fim às desordens uma companhia de pára-quedistas embarcada na cidade da Beira, cujo avião conseguiu aterrar no aeroporto e base da Força Aérea graças à intervenção dos oficiais daquele ramo, que prestavam serviço no aeródromo militar. A partir desta data instalou-se a descrença no futuro de Moçambique. A colónia ia avançar para a independência.
Em Angola, pouco depois do dia 25 de Abril de 1974, já em Luanda se estabelecia um clima de guerra civil. As conversações, fosse para o que fosse, iam ser difíceis, porque três movimentos ou partidos se perfilavam na linha dos direitos: um ‒ a FNLA ‒, recebia apoios do Presidente Mobutu, do Zaire, e dos EUA; outro ‒ o MPLA ‒, recebia apoio da URSS e de Cuba; e, por fim, o terceiro ‒ a UNITA ‒, reivindicava a importância dos povos do Sul de Angola, não tendo, por esta altura, apoios notáveis, mas veio a recebê-los da África do Sul.
Devo esclarecer que para além desta situação tripartida, dentro do MPLA havia, também, “tendências” que se opunham, tornando-se necessário o entendimento prévio para encontrar uma base para o diálogo. Esse passo foi dado e avançou-se, em Janeiro de 1975, em Alvor, no Algarve, rumo a um aparente apaziguamento entre os dirigentes angolanos.
Mesmo para quem negociou os termos do acordo, do lado português, houve a certeza de se estar a abrir a oportunidade para um conflito interno em Angola. E, na verdade, assim aconteceu.
Logo na altura ‒ e hoje por maioria de razão ‒ achei a tentativa de valorizar de igual forma os três movimentos insurgentes um erro histórico com graves resultados para os angolanos e, em particular, para o futuro das relações diplomáticas entre os dois Estados.
Realmente, para ser possível compreender erros, temos de os colocar no tempo e verificar a existência ou não de condições de acção diversa daquela que efectivamente aconteceu.
Portugal, no imediato pós-25 de Abril, entrou em convulsão social e política dado o confronto de ideologias em presença, ainda que todos falassem em adoptar e seguir o “socialismo”. Os militares pouco ou nada sabiam de política e os civis, que lideravam partidos, pouco ou nenhuma experiência tinham da condução real da vida pública de um Estado. Faltava a todos a visão, compreensão e interiorização de um elemento que, em abono da justiça, foi realçado e evidenciado, cinco ou seis anos depois da data do golpe libertador, por um professor, vindo da direita, mas largo conhecedor dos mecanismos de condução política dos Estados, refiro-me a Adriano Moreira. Foi ele quem ousou enunciar a necessidade, no começo dos anos 80, de se definir o conceito estratégico nacional.
De Álvaro Cunhal a Freitas do Amaral, passando por Sá Carneiro, Mário Soares e José Manuel Tengarrinha, ninguém se interessou pela necessidade de definir, em concreto, as linhas de força explicativas da sobrevivência nacional, ou seja, como é que se interligou, ao longo de séculos, a geografia portuguesa com a condução político-diplomática deste país. Cada um trazia o seu projecto político, concebido, em abstracto, segundo a ideologia defendida, para “aplicar” a Portugal. Ora, o que deu perenidade ao nosso país, depois de “arrumados” os conflitos peninsulares, foi, como já disse no início, o comércio marítimo com o ultramar e a aliança com a potência marítima prevalecente.
Era essa a linha condutora que deveria ter sido traçada quando se negociaram as independências das colónias: manter excelentes relações diplomáticas, políticas e comerciais com os governos emergentes, independentemente da ideologia prosseguida por eles, de modo a conservar intactas as vias de colaboração, apoio e cooperação de todo o tipo.
Não foi possível seguir este rumo, porque, internamente, a luta política e ideológica, com larga margem de mesquinhez, subvalorizou os interesses permanentes nacionais. Faltou estudo, faltou visão de Estado, faltou grandeza de alma.
A nossa maneira própria de estar na vida interna e externa atrapalhou e cegou as escolhas mais certas de quem negociou as independências e de quem governou depois da estabilização política.