A guerra em África: As espoletas do conflito
Nota explicativa.
Como facilmente se observa, não procurei estabelecer nenhuma ordem cronológica no agrupamento destes textos reflexivos. Contudo, fui expondo os assuntos de modo a conduzi-los até ao termo: fim da ditadura motora da guerra, independências e descolonização. Estava assim decidida a “arrumação”, mas um meu antigo aluno, natural de São Tomé ‒ o Doutor Esterline Gonçalves Género, alto funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros daquele país ‒, pediu-me, há dias, para me não esquecer de escrever sobre o massacre de Batepá. Não quis eximir-me à solicitação, todavia, para haver equilíbrio histórico, terei de relembrar os quatro massacres que, de certa forma, foram a espoleta dos conflitos militares em Angola, Guiné e Moçambique. Eis a razão desta “volta atrás” no tempo.
Embora haja historiadores que se negam a estabelecer a relação entre certos movimentos de revolta e o início da guerra colonial, julgo, os problemas sociais, seja qual for a sua natureza, acabam sempre por “contaminar” a sequência posterior, impossibilitando estabelecer fronteiras rígidas e estanques. É isso que me leva a aceitar como uma continuidade factos distantes no tempo, mas embrionários de outros mais evidentes e mais relatados.
Admito não estar longe da verdade se colocar o chamado massacre de Batepá, acontecido em Fevereiro de 1953, em São Tomé, na origem do descontentamento dos povos colonizados por Portugal e, por conseguinte, na raiz da guerra colonial iniciada em 1961, em Angola.
Haverá que perceber esta relação temporal e geograficamente tão longínqua.
A colonização portuguesa, com especial ênfase durante a ditadura, assentou em pilares comuns a todos os territórios: exploração de matérias-primas obtidas a custos baixos para venda ao estrangeiro e, raramente, alimentar indústrias nacionais; jogar com conflitos étnicos entre africanos para fazer de uns os “capatazes” de outros; usar a autoridade administrativa, policial, jurídica e, em último recurso, militar para repor uma ordem de submissão. O exemplo acabado deste “modelo” ocorreu no “pacífico” arquipélago de São Tomé.
É sabido, aquelas ilhas atingiram, no mundo, o lugar cimeiro da produção de cacau, no final do século XIX. Isto fez-se à custa de mão-de-obra ida de outras colónias ‒ Cabo Verde, Angola e Moçambique ‒ e, muito menos e há muito tempo, por recurso aos chamados “indígenas” (descendentes dos primeiros colonizadores africanos) e dos “negros forros” (descendentes dos antigos escravos libertos).
Havia, por conseguinte, nas ilhas, grupos sociais hierarquizados: os brancos, os “indígenas”, os “forros” e os “contratados” (recrutados nas outras colónias com um contrato que não andava longe do esclavagismo).
Foi anunciado, consequência de um plano de fomento, que os indígenas e os forros iriam passar a estar sujeitos a trabalho nas roças de cacau e de café em condições semelhantes às dos contratados. Foi o rastilho para uma revolta dos estratos mais “importantes” (quase todos pequenos comerciantes, funcionários públicos de baixa categoria, pescadores ou pequenos agricultores) se sentirem rebaixados ao nível dos contratados. A revolta começou na zona de Batepá com a morte de um funcionário da administração. O tenente-coronel Gorgulho ‒ governador-geral ‒ mandou reprimir com brutalidade e cometeu o pior, mas o mais comum dos erros, da administração colonial: armou os contratados para se imporem aos indígenas e aos forros. Inventou a existência de células comunistas. Tudo se saldou com elevado número de mortos, deportados para as ilhas do Príncipe e de Timor.
Meses depois - no final de Maio -, a calma voltou, mas a memória da besta colonial ficou e germinou através da família Espírito Santo que, natural de São Tomé, em Lisboa, proporcionou encontros com os estudantes da “Casa do Império” onde já desabrochavam as ideias insurgentes.
A 3 de Agosto de 1959, no porto de Pidjiguiti, na Guiné, os marinheiros e estivadores negros, revoltaram-se e exigiram melhor pagamento à Casa Gouveia, entidade representante da grande Companhia União Fabril (CUF), exploradora do trabalho de praticamente todos os assalariados guineenses. O processo de pagamento era essencialmente feito em géneros, restando um valor exíguo em dinheiro, que não chegava para liquidar outras despesas miúdas. Essas necessidades podiam ser satisfeitas através de venda adiantada pela Casa Gouveia. O assalariado, função da impossibilidade da liquidação da dívida, acabava tornando-se em um escravo, jamais liberto das obrigações.
A revolta deu origem a um massacre entre os que reclamavam. O ódio contra o sistema de trabalho na colónia gerou a simpatia pelos ideais divulgados pelo PAIGC. A guerra estava espoletada, bastava detoná-la.
Na Baixa do Cassange, em Angola, pelo final do ano de 1960, sucede uma situação semelhante à da Guiné, agora por causa da produção de algodão a preço ridículo para ser vendido à concessionária da exploração naquela zona, a COTONANG. Os trabalhadores/agricultores queixavam-se do baixo valor pago e a revolta foi tomando forma. Variam as descrições dos acontecimentos; vão desde o massacre de milhares de africanos, com uso até de Napalm, à quase inocente repressão de pequenos grupos de indivíduos que, após disparos para o ar, dispersavam ordeiramente. Não acredito em nenhum dos exageros, porque aceito ter sido a repressão suficientemente musculada para gerar a revolta das populações. Revolta que, em curto espaço de tempo, deu frutos com o estalar da acção armada, em Março de 1961. Aliás, são insuspeitas as acusações escritas pelo comandante da Região Aérea de Angola, brigadeiro Resende, que criticou severamente as autoridades administrativas pela sua conivência com a exploração dos trabalhadores.
Em Junho de 1960, em Mueda, Norte de Moçambique, a cena repetiu-se pelas mesmas razões: melhoria do pagamento dos produtos agrícolas vendidos aos compradores coloniais. Uma vez mais, não se consegue contabilizar o número de mortos, que varia de pouco mais de uma dezena a mais de seis centenas.
Quem conduziu estas chacinas? Em primeiro lugar, as autoridades administrativas donde emanaram as ordens e, depois, todo o sistema repressivo criado pelo regime ditatorial, sem exclusão dos militares e, na base, talvez com mais ódio ‒ ditado pelo medo ‒ os colonos brancos cuja consciência pesava pela evidente noção de apropriação de um espaço que lhes não pertencia ou julgavam pertencer pelo “direito de ocupação”. Evidentemente, um regime colonial construído sobre pilares do desrespeito pelo colonizado tinha de acabar em guerra aberta.
Se podia ter sido de outra maneira? Talvez tivesse sido possível, contudo, teriam de ter sido outros os actos e os interesses dos colonizadores.