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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

31.08.19

A guerra em África: As espoletas do conflito


Luís Alves de Fraga

 

Nota explicativa.

Como facilmente se observa, não procurei estabelecer nenhuma ordem cronológica no agrupamento destes textos reflexivos. Contudo, fui expondo os assuntos de modo a conduzi-los até ao termo: fim da ditadura motora da guerra, independências e descolonização. Estava assim decidida a “arrumação”, mas um meu antigo aluno, natural de São Tomé ‒ o Doutor Esterline Gonçalves Género, alto funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros daquele país ‒, pediu-me, há dias, para me não esquecer de escrever sobre o massacre de Batepá. Não quis eximir-me à solicitação, todavia, para haver equilíbrio histórico, terei de relembrar os quatro massacres que, de certa forma, foram a espoleta dos conflitos militares em Angola, Guiné e Moçambique. Eis a razão desta “volta atrás” no tempo.

 

Embora haja historiadores que se negam a estabelecer a relação entre certos movimentos de revolta e o início da guerra colonial, julgo, os problemas sociais, seja qual for a sua natureza, acabam sempre por “contaminar” a sequência posterior, impossibilitando estabelecer fronteiras rígidas e estanques. É isso que me leva a aceitar como uma continuidade factos distantes no tempo, mas embrionários de outros mais evidentes e mais relatados.

Admito não estar longe da verdade se colocar o chamado massacre de Batepá, acontecido em Fevereiro de 1953, em São Tomé, na origem do descontentamento dos povos colonizados por Portugal e, por conseguinte, na raiz da guerra colonial iniciada em 1961, em Angola.

Haverá que perceber esta relação temporal e geograficamente tão longínqua.

 

A colonização portuguesa, com especial ênfase durante a ditadura, assentou em pilares comuns a todos os territórios: exploração de matérias-primas obtidas a custos baixos para venda ao estrangeiro e, raramente, alimentar indústrias nacionais; jogar com conflitos étnicos entre africanos para fazer de uns os “capatazes” de outros; usar a autoridade administrativa, policial, jurídica e, em último recurso, militar para repor uma ordem de submissão. O exemplo acabado deste “modelo” ocorreu no “pacífico” arquipélago de São Tomé.

 

É sabido, aquelas ilhas atingiram, no mundo, o lugar cimeiro da produção de cacau, no final do século XIX. Isto fez-se à custa de mão-de-obra ida de outras colónias ‒ Cabo Verde, Angola e Moçambique ‒ e, muito menos e há muito tempo, por recurso aos chamados “indígenas” (descendentes dos primeiros colonizadores africanos) e dos “negros forros” (descendentes dos antigos escravos libertos).

Havia, por conseguinte, nas ilhas, grupos sociais hierarquizados: os brancos, os “indígenas”, os “forros” e os “contratados” (recrutados nas outras colónias com um contrato que não andava longe do esclavagismo).

 

Foi anunciado, consequência de um plano de fomento, que os indígenas e os forros iriam passar a estar sujeitos a trabalho nas roças de cacau e de café em condições semelhantes às dos contratados. Foi o rastilho para uma revolta dos estratos mais “importantes” (quase todos pequenos comerciantes, funcionários públicos de baixa categoria, pescadores ou pequenos agricultores) se sentirem rebaixados ao nível dos contratados. A revolta começou na zona de Batepá com a morte de um funcionário da administração. O tenente-coronel Gorgulho ‒ governador-geral ‒ mandou reprimir com brutalidade e cometeu o pior, mas o mais comum dos erros, da administração colonial: armou os contratados para se imporem aos indígenas e aos forros. Inventou a existência de células comunistas. Tudo se saldou com elevado número de mortos, deportados para as ilhas do Príncipe e de Timor.

Meses depois - no final de Maio -, a calma voltou, mas a memória da besta colonial ficou e germinou através da família Espírito Santo que, natural de São Tomé, em Lisboa, proporcionou encontros com os estudantes da “Casa do Império” onde já desabrochavam as ideias insurgentes.

 

A 3 de Agosto de 1959, no porto de Pidjiguiti, na Guiné, os marinheiros e estivadores negros, revoltaram-se e exigiram melhor pagamento à Casa Gouveia, entidade representante da grande Companhia União Fabril (CUF), exploradora do trabalho de praticamente todos os assalariados guineenses. O processo de pagamento era essencialmente feito em géneros, restando um valor exíguo em dinheiro, que não chegava para liquidar outras despesas miúdas. Essas necessidades podiam ser satisfeitas através de venda adiantada pela Casa Gouveia. O assalariado, função da impossibilidade da liquidação da dívida, acabava tornando-se em um escravo, jamais liberto das obrigações.

A revolta deu origem a um massacre entre os que reclamavam. O ódio contra o sistema de trabalho na colónia gerou a simpatia pelos ideais divulgados pelo PAIGC. A guerra estava espoletada, bastava detoná-la.

 

Na Baixa do Cassange, em Angola, pelo final do ano de 1960, sucede uma situação semelhante à da Guiné, agora por causa da produção de algodão a preço ridículo para ser vendido à concessionária da exploração naquela zona, a COTONANG. Os trabalhadores/agricultores queixavam-se do baixo valor pago e a revolta foi tomando forma. Variam as descrições dos acontecimentos; vão desde o massacre de milhares de africanos, com uso até de Napalm, à quase inocente repressão de pequenos grupos de indivíduos que, após disparos para o ar, dispersavam ordeiramente. Não acredito em nenhum dos exageros, porque aceito ter sido a repressão suficientemente musculada para gerar a revolta das populações. Revolta que, em curto espaço de tempo, deu frutos com o estalar da acção armada, em Março de 1961. Aliás, são insuspeitas as acusações escritas pelo comandante da Região Aérea de Angola, brigadeiro Resende, que criticou severamente as autoridades administrativas pela sua conivência com a exploração dos trabalhadores.

 

Em Junho de 1960, em Mueda, Norte de Moçambique, a cena repetiu-se pelas mesmas razões: melhoria do pagamento dos produtos agrícolas vendidos aos compradores coloniais. Uma vez mais, não se consegue contabilizar o número de mortos, que varia de pouco mais de uma dezena a mais de seis centenas.

 

Quem conduziu estas chacinas? Em primeiro lugar, as autoridades administrativas donde emanaram as ordens e, depois, todo o sistema repressivo criado pelo regime ditatorial, sem exclusão dos militares e, na base, talvez com mais ódio ‒ ditado pelo medo ‒ os colonos brancos cuja consciência pesava pela evidente noção de apropriação de um espaço que lhes não pertencia ou julgavam pertencer pelo “direito de ocupação”. Evidentemente, um regime colonial construído sobre pilares do desrespeito pelo colonizado tinha de acabar em guerra aberta.

Se podia ter sido de outra maneira? Talvez tivesse sido possível, contudo, teriam de ter sido outros os actos e os interesses dos colonizadores.

30.08.19

A guerra colonial: Deficientes das Forças Armadas


Luís Alves de Fraga

 

Para efeitos deste apontamento, não me preocupa nem a definição de deficiente das Forças Armadas, nem o grau de invalidez estabelecido na legislação em vigor. Interessa-me, exclusivamente, tentar olhar “por cima” a situação desses homens, veteranos de guerra, em especial os da guerra colonial, para, por um lado, perceber o que o Estado tem feito por eles e como os encara no seu dia-a-dia, e, por outro, espelhar o sentimento da nação quanto aos seus deficientes militares.

Excluo do conceito de deficiente das Forças Armadas (FFAA) todos os que sofrem de PSPT, por se tratar de uma forma específica de insuficiência não visível, mas acumulável, em alguns casos, com deficiência física.

 

Convirá, para que cada um de nós tome consciência do que é ser deficiente das FFAA, perceber que estes veteranos da guerra colonial sempre foram escondidos da sociedade civil. No passado, antes de 25 Abril de 1974, quer nas capitais das colónias quer em Lisboa, os hospitais onde eram tratados ficavam longe das vistas das populações. O fascismo não queria mostrar os destroços humanos que a guerra fazia. E não se pense que se tratava só de estropiados pelas armas de fogo; eram também os que sofriam acidentes de viação no mato e nas cidades ‒ recordo uma viatura de soldados para-quedistas do BCP-31, que capotou na zona da Gorongosa, em 1973, da qual restaram vivos um ou dois homens paraplégicos. Toda essa gente acabava por ser evacuada, em aviões especiais, para Lisboa e aqui recebiam as próteses ‒ quase todas encomendadas à República Federal da Alemanha ‒ que, mais ou menos, iriam, nos primeiros anos, suprir a falta dos membros amputados. Depois de dados como recuperados eram, sub-repticiamente, recambiados para as suas terras onde passavam a receber uma magra pensão de sobrevivência. Aos poucos foram beneficiando de algumas pequenas regalias sociais: redução nos impostos, isenção de propinas para os filhos estudantes, apoios na aquisição de meios de locomoção. Mas, repare-se, que os valores das pensões se degradaram com a inflação e, alguns anos após a aquisição da deficiência, estes homens estavam na indigência, sem uma máquina montada para lhes dar as ajudas indispensáveis para se não sentirem como farrapos sociais.

 

Nos tempos que se seguiram ao 25 de Abril de 1974, nasceu a Associação dos Deficientes das FFAA, representando um imenso passo em frente na tomada de consciência colectiva de uma das mais negativas e significativas heranças da guerra colonial. Mas a voz perdeu força, pois a dispersão geográfica dos deficientes, impunha uma outra abordagem por parte do Estado na protecção daqueles que deixaram partes de si nos territórios em guerra. O estatuto de veterano de guerra obrigava ao estender de benefícios materiais, mas, mais do que esses, aos de apoio psicológico, pois uma amputação em jovem tem, do ponto de vista psíquico, um peso relativamente leve que, com o rodar dos anos, acaba por ser um pesadelo e, da deficiência física, salta-se, com imensa facilidade, para a deficiência psicológica.

 

E nós, cidadãos de aparência saudável, não temos consciência do que é ser deficiente de uma guerra da qual não tivemos responsabilidade, nem vontade de nela participar, nem de vir de lá com um aleijão quase irremediável. Nós não sabemos o que é acordar de noite, porque se está novamente a reviver o trauma do acidente, dos tratamentos, das operações cirúrgicas, das experiências ortopédicas, dos olhares de vizinhos, de filhos, de mulheres, de familiares e, acima de tudo, da dúvida de que nos aceitam como somos ou porque já só têm o dever, a obrigação, de nos aceitar.

 

Os nossos veteranos de guerra, deficientes físicos, estão escondidos e são escondidos como se tivéssemos vergonha do seu sacrifício, das mazelas, das suas dificuldades.

Os jovens, não só os que já não sabem que houve uma guerra, mas os que, ainda dela sabendo, lhe desconhecem toda a extensão, não respeitam nem conseguem respeitar os nossos deficientes, os nossos veteranos porque, independentemente, da idade, da cultura, da graduação militar, eles merecem o máximo, todo, o respeito de todos nós, pois, se não deram a vida, deram partes de si próprios, continuando a subir um tormentoso calvário, para que se mantivesse uma guerra injusta, que um poder político ignóbil, por razões contranatura e ao arrepio da História, mandou fazer para não ter fim à vista.

 

Cada vez são menos os nossos veteranos deficientes e cada vez é maior o silêncio à sua volta.

27.08.19

A guerra em África: Tropas especiais africanas


Luís Alves de Fraga

 

Já me referi à necessidade sentida pelas autoridades militares portuguesas, no começo da década de 70 do século passado, por falta de jovens em idade de cumprirem serviço militar obrigatório, na metrópole, de recrutarem indígenas das colónias em estado de guerra. Mas, torna-se importante recordar um outro tipo de recrutamento de soldados autóctones: os das chamadas tropas especiais.

 

O objectivo, ao proceder a este tipo de recrutamento, era o de preparar soldados africanos com “habilidades castrenses” iguais ou, até, superiores às tropas especiais ‒ comandos, fuzileiros e pára-quedistas ‒ metropolitanas. As soluções foram diferentes nas diferentes colónias.

 

Em Angola, começou por se agrupar autonomamente os “gendarmes” refugiados do Katanga; tinham enquadramento próprio e actuavam à ordem do comando militar do Leste, coordenados pelo comando-chefe. Eram designados, nos corredores do estado-maior, em Luanda, por “Fiéis”. Operavam em reforço de unidades militares portuguesas, especialmente em operações para lá das fronteiras, atacando as bases inimigas.

Além destes, criou-se uma outra tropa auxiliar com os refugiados da Zâmbia, formando uma companhia cuja área de actuação se limitava, também, ao Leste, em especial na região do Cazombo. Eram designados por “Leais”.

Existiram, também, as milícias armadas resultantes da confiança tida em antigos militares, que haviam servido nas fileiras do Exército. Nelas serviram alguns “reconvertidos” à causa portuguesa, depois de terem desertado de um dos movimentos de guerrilha. Eram usados como força de autodefesa dos aldeamentos ou como guias ou pisteiros nas colunas militares (Maria Manuela Cruzeiro, “Pezarat Correia: Do Lado Certo da História”; 125-127).

A estes, que actuavam sob controlo militar, devem juntar-se os “Flechas”, inicialmente constituídos por indígenas da etnia khoisan, também designados por bosquímanos, criados em 1967 pela PIDE, formando uma força privada para actuação comandada por aquela polícia política.

 

Na Guiné, de maneira bastante controversa, formaram-se, sob as ordens do general Spínola, tropas negras com características de elite, integrando comandos e fuzileiros, capitaneados por graduados, também eles, negros. Serviram para intervir, em igualdade de condições, às ordens do comando-chefe, onde e sempre que fosse necessário. Em especial os comandos, tornaram-se legendários dada a eficácia que colocavam no combate. Entre eles destacaram-se alguns, ganhando o estatuto de heróis nacionais portugueses. Foram utilizados na célebre “Operação Mar Verde”, invadindo a Guiné-Conakri, usando armas não regulares nas Forças Armadas portuguesas. Até ao final do conflito foram temidos entre os guerrilheiros do PAIGC.

 

Em Moçambique, no início dos anos 70, formaram-se, com estrutura regular, os Grupos Especiais (GE), com sede no Dondo, perto da cidade da Beira. Eram unidades enquadradas por instrutores europeus, com formação específica, fazendo desses soldados uma tropa capaz de completar ou colmatar a acção dos comandos europeus.

Constou, na altura, que poderiam vir a ser o núcleo de formação do Exército moçambicano, se o processo político avançasse para uma independência consentida ou imposta pela comunidade europeia ao Governo de Lisboa. Admito, sem qualquer prova palpável, que o facto de a sede do aquartelamento ter sido no Dondo não terá resultado de um acaso, mas da proximidade à residência do engenheiro Jorge Jardim, figura controversa da política colonial sobre quem me debruçarei em apontamento próximo.

Depois de formados os GE vieram a constituir-se os Grupos Especiais Pára-quedistas (GEP), também com sede no aquartelamento do Dondo, beneficiando do enquadramento de graduados pára-quedistas, quase todos provenientes do BCP-31. O recrutamento destes instrutores fazia-se entre os furriéis milicianos e as praças daquele batalhão, que, ao assumirem funções nos GEP, passavam a ser graduados, respectivamente, em alferes. O resto do enquadramento era feito por graduados europeus.

 

A “africanização” dos militares portugueses em combate contra a guerrilha nos três teatros de operações constituiu, mais uma vez, uma péssima opção do Governo fascista, aceite, quase sem reticências, pelos mais elevados escalões de comando das Forças Armadas, por dois motivos: admissão da eternização da guerra com a possível vitória da estratégia defendida pelos colonialistas e inconsciência das consequências se se verificasse uma independência negra controlada pelos partidos insurgentes.

 

Na verdade, o envolvimento massivo de africanos na guerra colonial gerou ‒ sem prévio estudo dos desfechos ‒ a estrutura de uma guerra civil em substituição de uma guerra de secessão: já não era um território que se queria autonomizar, mas grupos sociais desse território que se combatiam em defesa de causas distintas e opostas; a vitória de uma delas iria impor pesadas sanções à vencida. Mas, mais grave ainda, foi a ausência de medidas práticas, que deveriam ter sido assumidas pelo Governo democrático português, ainda antes das independências, assegurando protecção aos militares africanos que haviam servido nas fileiras das Forças Armadas de Portugal. Só a alguns graduados foi dada a possibilidade de se refugiarem na metrópole; muitos ficaram nos seus novos países e foram perseguidos e mortos, quando lhes reconheceram responsabilidades no combate à guerrilha ou quando não foram capazes de dar o dito por não dito e mostrarem-se fiéis perante as novas autoridades; pediu-se-lhes a negação de todos os valores em que tinham acreditado ou lhes haviam sido impostos a troco do direito a viverem.

Mais um grande e grave estilhaço provocado pelo regime colonial e fascista na guerra em África.

25.08.19

A guerra em África: Os prisioneiros negros


Luís Alves de Fraga

 

A guerra, geralmente, tem uma só versão: a do vencedor. Os vencidos calam a vergonha de serem derrotados. Mas a História dos vencedores é sempre feita na perspectiva da exaltação dos feitos gloriosos; a dos vencidos deixa escapar, quando deixa, uma raiva surda, um desapontamento contra o antigo (?) inimigo.

Há estantes super recheadas de livros, relatando os sofrimentos dos judeus e presos políticos nos campos de concentração nazis, mas onde estão os livros, os relatos, dos prisioneiros alemães nos campos de concentração aliados? Não houve barbaridades cometidas sobre prisioneiros nazis? É que a História, para não ser um simples relato apologético, tem de contar TUDO, e a honestidade dos historiadores deixa-se “comprar” pela vergonha de desnudar a natureza humana do vencedor!

 

Quem foi o vencedor da guerra colonial feita pelas Forças Armadas portuguesas? Os capitães de Abril, que acabaram com o conflito e levaram os territórios à independência, ou os guerrilheiros, que lutaram no mato? Samora Machel declarava-se vencedor, porque, uma guerra que se não ganha, perde-se!

A nossa derrota militar, nos três teatros de operações, tem-se escondido atrás da vitória do derrube do fascismo português, no dia 25 de Abril de 1974.

 

E dos prisioneiros feitos pelos militares portugueses nas operações no mato, quem fala? Esquecem-se? Foram “danos colaterais”?

Não tenho dados sobre a quantidade de guerrilheiros apanhados de armas na mão, combatendo a nossa tropa. Sei de casos esporádicos e deles concluirei uma generalização, com todos os defeitos próprios de uma abusiva universalidade.

 

Em Angola e Moçambique os prisioneiros deveriam ser entregues, com a rapidez possível, à PIDE/DGS, que os interrogava segundo os métodos próprios dessa polícia. O que lhes acontecia depois, não sei, mas, presumo, não seria bom. Houve casos de “conversão” à causa portuguesa. Por medo? Porque lhes foi poupada a vida? Porque lhes foram feitas promessas? Esses “colaboradores” desempenharam vários serviços (no meu livro A Força Aérea na Guerra em África relato o caso de um guerrilheiro guineense que se tornou funcionário da base aérea de Bissalanca), sendo o mais comum o de pisteiros ou guias.

 

Enquanto permaneciam nas unidades militares, que os haviam capturado, os guerrilheiros eram interrogados e, de acordo com uma proposta que ouvi a um graduado com responsabilidade, poder-se-ia ligar-lhe “uns fios eléctricos aos testículos que ele falava num instante”, a qual foi de imediato recusada por um oficial superior.

Quantos terão sido sujeitos a torturas deste tipo?

Todavia, de acordo com o que já expus, o homem negro com cultura africana tem uma resistência à dor física muito superior à do homem branco com cultura “ocidental”. Assim, julgo, os prisioneiros ‒ dos militares ou da polícia política ‒ terão cedido pouco aos maus tratos infligidos. No meu livro, já antes citado, incluo o testemunho de um piloto-aviador que transportou um guerrilheiro ferido e se espantou com a sua resistência à dor. São simples depoimentos carecidos de uma investigação profunda para averiguar daquilo que aqui deixo como mero indício. Julgo que, sobre este assunto, nem mesmo os historiadores africanos se debruçaram e, se o fizerem, teremos de ter sempre em conta a introdução da componente “heróica” própria do relato do vencedor.

 

Sobre os prisioneiros negros feitos na Guiné, foi-me assegurado que, durante o comando do general Spínola, eles ficavam retidos no ambiente militar e não eram entregues à PIDE/DGS, com bastante desgosto desta polícia.

Claro que uma tal política de tratamento dos prisioneiros era ditada pela forma como aquele comandante se posicionava perante a guerra. Parece-me evidente, Spínola não desvalorizava a acção da polícia política, reservando-lhe o papel de actor na obtenção de informações por infiltração nos meios do PAIGC; a informação de campanha, operacional, se se quiser, essa estava intimamente ligada aos militares e, sem ter garantias de qualquer espécie, arrisco-me a afirmar, os interrogatórios estavam muito mais próximo daquilo que está previsto nas Convenções de Genebra do que se fossem levados a cabo pela PIDE/DGS.

Também estou convencido, com base em pressupostos a demonstrar com o tempo e investigação cautelosa, que a resistência à tortura por parte dos prisioneiros não tinha fundamento na convicção política conseguida pela doutrinação feita no meio dos partidos combatentes, mas sim nos aspectos culturais que já apontei.

 

A guerra deixou segredos que ou já se não desvendam ou muito difícil será descobri-los em toda a sua plenitude.

24.08.19

A guerra em África: O sofrimento no Homem africano


Luís Alves de Fraga

 

O texto que se segue parece não ter ligação de qualquer espécie com a temática que venho tratando, contudo, é necessário para se perceber o que virá mais adiante, num outro dia.

 

No começo da década de 70 do século passado, quando iniciei estudos sobre Antropologia Cultural, percebi que o Homem, sendo fisionómica e fisiologicamente semelhante em toda a Terra ‒ variando somente a cor da pele e alguns traços faciais ‒, apresenta diferenças comportamentais resultantes somente de algo que se chama “cultura”. É a Cultura ‒ aquilo que se aprende com a família e a sociedade por vontade daquela e desta ‒ que nos “separa”; a determinante de nos comportarmos de modo distinto de um hindu resulta do facto de este ter uma cultura diferente da nossa, ou seja, de entender a vida, o mundo e a morte de outra forma.

Se tivermos a capacidade e a elasticidade suficientes para compreender o que acabo de afirmar, seremos, também, capazes de perceber que não há culturas (ou civilizações, como alguns teimam em chamar) superiores e inferiores; há culturas diferentes, e mais nada. Em valor absoluto e relativo estão todas ao mesmo nível. Se eu quiser viver numa cubata, no seio de uma aldeia indígena de África, terei dificuldade em adaptar-me, porque, culturalmente, sou diferente daqueles que sempre ali viveram, mas, se fizer um esforço para “esquecer” a minha cultura, ao cabo de algum tempo comportar-me-ei como um negro lá nascido e criado. Em tudo? Não! Haverá sempre uma parte de mim onde residirá a cultura entranhada pela minha família e pela sociedade onde fui inicialmente educado e, nesse núcleo, não vou ser capaz de mexer, embora possa, conscientemente, tentar adaptá-lo à outra forma de estar e de ser própria do negro, que pretendo seguir na aldeia imaginada acima.

 

Passo, agora, a abordar o aspecto que me interessa: a dor física.

A sensação de dor é igual em todo e qualquer ser humano, tal como em qualquer animal com sistema nervoso. Todavia, a forma de expressar a dor, de a manifestar para o exterior, para a sociedade, difere de cultura para cultura, às vezes, até, dentro do mesmo padrão cultural, de indivíduo para indivíduo.

Então, podemos dizer que a manifestação da dor física é, em si mesma, um acto cultural.

Vou tentar ser mais explícito, socorrendo-me de exemplos.

 

Não há nenhum relato bíblico dos gritos de dor de Jesus ao ser pregado na cruz, nem de quando subia até ao Calvário, nem depois de estar suspenso; não há notícia de Aquiles ter gritado quando lhe foi cortado o tendão. O que terá levado estes dois personagens a não expressar com sons a sua dor física? Nenhuma vaca faz sons a manifestar dor quando está a parir o bezerro e, no entanto, tê-las-á; do mesmo modo as mulheres esquimós, depois de fazerem um buraco no gelo, parem os filhos de cócoras, sozinhas e sem gritos. E as mulheres da cultura judaico-cristã? E os homens da mesma cultura, quando sujeitos a sofrimento?

Claro que estou a referir-me a generalidades e não a casos singulares.

 

Chegámos onde eu pretendia chegar. O Homem negro (do sexo masculino e feminino, por isso a letra maiúscula) ‒ refiro-me àquele que recebeu educação no seio da sociedade tradicional africana ‒ culturalmente aprendeu a conter a dor física; não grita, não reclama, não “dá espectáculo”. Sofre em silêncio. Tem dores, mas não as manifesta.

Tive oportunidade de ver ser conduzido a pé, arrastado por um braço, um jovem negro, em África, com fractura exposta da tíbia e do perónio sem dar um grito! Provavelmente, se fosse afro-americano, gritaria! Aqui está a influência da cultura.

Todos os negros que sofriam o castigo das palmatoadas não gritavam, embora se contorcessem com as dores.

O professor Oliveira Marques, há bastantes anos, deu à estampa uma obra intitulada “Portugal Quinhentista” e nela um autor do final do século XVI relata a alegria dos escravos negros quando, ao fim da tarde, iam despejar os canecos de dejectos das famílias ricas e nobres de Lisboa. Por serem escravos, no nosso entender, deveriam viver tristes e macambúzios, mas a cultura de origem levava-os a estarem alegres. Essa mesma alegria foi por eles transportada para o Brasil.

 

Podia continuar com exemplos, correndo, contudo, o risco de ser contestado, mas, para se compreender o que acabei de expor é necessário ter em conta que a observação, a ser verdadeira, só o é para aqueles que ainda estão sujeitos à enculturação tradicional.

Depois perceber-se-á onde pretendo chegar.

22.08.19

A guerra em África: O colonialismo na Guiné


Luís Alves de Fraga

 

O território que foi conhecido por Guiné ‒ colónia portuguesa ‒ hoje Guiné-Bissau, está inserido numa ampla zona que, aquando da Expansão Marítima, no século XV, se designava Guiné e fica a Norte do Golfo com o mesmo nome.

Era, então, já uma zona sob influência islâmica, que passava através do deserto do Saara trazida pelas caravanas que o atravessavam em demanda da cidade de Tombuctu rica pelas trocas, desde o século XII, de escravos e ouro por sal.

Não foi por acaso que os navegadores portugueses procuraram chegar àquela zona: eles sabiam que podiam fazer o mesmo que o império Mali, só que, em vez de usarem o deserto usavam o Atlântico. Aliás, para quem quiser estudar com olhos estratégicos a epopeia marítima portuguesa percebe que toda ela se fez no sentido de retirar ao Islão as suas fontes de comércio, primeiro, em África e, depois, no Oriente. A implantação de feitorias militares e comerciais na região da Guiné são bem demonstrativas dessa estratégia essencialmente mercantil. Os Portugueses não fizeram nada de diferente daquilo que faziam os Islâmicos.

 

A rodagem dos séculos e as mudanças históricas operadas, elevando à categoria de potências marítimas Estados europeus ainda insipientes nos séculos XV e XVI, levou a que o comércio português mudasse de mãos, ficando somente, no que toca à Guiné, alguns postos marítimos por onde se fazia o negócio negreiro, agora destinado ao continente americano. Bolama, Cacheu e outros foram pontos de fixação portuguesa. Por causa dessa presença, depois de 1885 ‒ Conferência de Berlim ‒, Portugal ficou com uma pequena colónia na costa da “velha” Guiné do século XV onde se concentravam mais de vinte etnias negras, muitas delas islamizadas.

Mas a Guiné do final do século XIX, depois de findo o tráfego negreiro e acabada a escravatura nas Américas, pouco ou nada rendia do ponto de vista comercial. Valeu-lhe o aparecimento da industrialização do óleo de palma usado para vários fins e nele e nela (Guiné) ficou interessada a Companhia União Fabril (CUF), de Alfredo da Silva.

 

Acontece que o clima guineense é quase insuportável para os europeus daí que, associado à falta de motivos interessantes para uma exploração económica, a colonização da Guiné foi, habilidosamente, transferida, pela administração portuguesa, para os cabo-verdianos, cujo arquipélago, por ser pobre, não oferecia condições de vida para os que, tendo alguns estudos, queriam uma melhor situação económica do que a ditada pela emigração para a Europa ou Américas.

Assim se encheram os quadros administrativos, comerciais e docentes da Guiné com aqueles ilhéus ‒ veja-se o caso mais emblemático de Honório Barreto ‒ em detrimento dos indígenas confinados à vida agrícola, cultivando arroz e colhendo amendoim.

 

Foi da descendência dessa colonização cabo-verdiana que nasceu o teórico marxista fundador do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde), Amílcar Cabral.

É por demais evidente a estratégia do líder guineense: ligar Cabo Verde à Guiné para lhes dar importância conseguida pela complementaridade: o arquipélago funcionaria para o continente africano como os Açores para Portugal. Claro que, por trás, estava a continuidade de escoamento dos cabo-verdianos e a sua liderança na Guiné. A morte prematura do mentor político e as rivalidades entre guinéus e cabo-verdianos invalidou qualquer tipo de arranjo estratégico.

 

O mais curioso é que a artimanha portuguesa de colonizar a Guiné com gente ida de Cabo Verde se virou contra o fascismo colonial de Salazar. A História e a Vida têm coisas inesperadas!

21.08.19

A guerra em África: As digressões de artistas


Luís Alves de Fraga

 

Seria estultícia minha fazer passar em desfile, num mero apontamento de poucas linhas, as digressões de artistas, em especial de cançonetistas, que se fizeram “para as tropas” nos três teatros de operações. O que pretendo é “abrir” uma janela sobre um possível campo de investigação para investigadores mais jovens se debruçarem e analisarem com cautela esta acção levada a cabo, umas vezes, pela máquina propagandística fascista e, outras, pelos comandos militares responsáveis.

 

Durante a 2.ª Guerra Mundial surgiu a moda ‒ especialmente desenvolvida pelos EUA ‒ de levar até junto das tropas artistas com algum renome na canção, no teatro e no cinema. Este tipo de “apoio moral” dado aos militares continuou durante a guerra da Coreia e, mais tarde, na do Vietnam.

Deve dizer-se que, no caso das tropas dos EUA, estas digressões chegaram, algumas vezes, e no que respeita a artistas de pequena projecção, a ser feitas junto dos militares empenhados em combate. Contudo, reservavam-se os espectáculos com artistas de maior “grandeza” para aqueles efectivos que se posicionavam bem mais recuados em relação ao inimigo.

 

Julgo que, na guerra colonial, não houve digressões de artistas nas zonas mais perigosas; os operadores de televisão foram a unidades destacadas no mato para, no Natal, recolher curtas mensagens dos soldados ‒ quase analfabetos que desejavam «Feliz Natal e muitas “propriedades”» aos seus familiares ‒ passadas, depois, na RTP em horários menos “nobres”. Quase tudo, no Portugal fascista de Salazar, era “pequenino”, por isso, não se corriam riscos significativos nem se movimentava muito dinheiro para elevar o moral das tropas combatentes.

Em alguns aquartelamentos junto de povoações onde habitavam europeus e raras famílias de graduados militares, ao que julgo saber, havia, de quando em vez, sessões de “cinema”, passando-se fitas antigas e devidamente seleccionadas; depois de acabar a sessão “oficial” havia uma projecção “particular” para os soldados onde, à socapa, se exibia uma pequena fita pornográfica de desenhos animados! Era uma minguada compensação para os sofrimentos e agruras das colunas automóveis pelos trilhos do mato onde podia haver uma mina inesperada que punha fim a vidas jovens ao serviço de uma causa para eles pouco importante.

 

Recordo-me de, em 1968, na cidade da Beira, Moçambique, ter estado em digressão, parece-me, só para espectáculos nas bases e aeródromos da Força Aérea, uma cançonetista, já nessa época em começo de declínio, chamada Maria de Lurdes Resende. Tratava-se de uma senhora, mãe de família, que se havia notabilizado uma dezena de anos antes com as canções “Alcobaça” e “Feia”. Servia-lhe de companhia a esposa do general comandante da Região Aérea.

Por essa altura, ainda se acreditava, em alguns meios, ser possível uma solução militar para a questão ultramarina.

 

No ano de 1973, também na Beira, mas na sede do Batalhão de Caçadores Pára-Quedistas n.º 31, o comando conseguiu organizar, para os militares daquela unidade, um show, vindo directamente de um dos cabarés da cidade, onde a principal atracção era um prolongado striptease feito por uma escultural jovem proveniente não sei de que país.

A guerra, naquele teatro de operações, já estava a assumir contornos de derrota em espaço de tempo bastante curto ‒ havia infiltração de guerrilheiros a cem quilómetros da cidade; para a província da Zambézia previam-se acções bélicas num futuro muito próximo.

 

Não sei se na acção de moralização das tropas a combater em África o fascismo português investiu grande coisa, mas, se o não fez, foi coerente com a sua política de sempre: pedir os máximos sacrifícios e dar ao povo o mínimo possível.

20.08.19

A guerra em África: Aldeamentos indígenas


Luís Alves de Fraga

 

É conhecida a frase de Mao Tse-tung: «O povo está para o guerrilheiro como a água está para o peixe». Ela ajudou a definir uma estratégia na contraguerrilha utilizada pelas forças armadas francesas na Argélia e copiada pelos comandos militares portugueses na guerra em África: controlando o povo, “tirava-se a água ao peixe”.

 

Ora, por volta do final da década de 60 do pretérito século, começou a ensaiar-se uma solução “original” nos territórios de Moçambique (em especial na zona de Tete) e de Angola (em especial no Leste): fazer deslocar as populações de aldeias tradicionais indígenas para aldeamentos próximos de aquartelamentos militares onde estavam vigiadas, controladas e apoiadas, também, pelos serviços de saúde militar.

Parecia ideal a solução, pois, para além de se passar a disponibilizar de aglomerados urbanos, com amplas ruas entre as casas, escolas, enfermarias, água canalizada e outros serviços básicos, ainda que mínimos, podiam ensaiar-se meios de defesa autónomos liderados ou por autoridades administrativas ou por chefes autóctones. Nas proximidades dos aldeamentos havia terrenos para fazer lavras tradicionais entre os povos “controlados”.

Esperava-se que, através desta “adesão” das populações à causa portuguesa, não fosse dado abrigo aos guerrilheiros.

Tudo muito inteligentemente preparado, tudo muito “asséptico” do ponto de vista operacional, tudo muito bem feito à maneira dos estados-maiores pensantes!

 

Mas, quem imaginou esta solução, não conhecia a cultura da maior parte destas populações indígenas, nada sabia dos seus hábitos nem das suas crenças!

É que, a maioria dos autóctones, não “civilizados” nem “cristianizados” pelos homens brancos, praticava o animismo! Para estas populações os espíritos dos seus mortos continuavam a coabitar com elas nos seus lugares habituais, debaixo das mesmas árvores e ao lado dos seus animais. É que os espíritos dos mortos e das coisas são muito, mesmo muito, importantes para os negros distantes da cultura europeia e ocidental, por isso, sentem como uma agressão, uma ofensa, a separação dos seus locais de vida, porque os mortos continuam vivos, dando-lhes o amparo e a protecção de que carecem em todos os momentos.

 

Explicado isto, em poucas linhas, percebe-se o tremendo erro cometido com a “brilhante” ideia dos aldeamentos! Os oficiais de estado-maior deveriam ter estudado, mas com olhos e cabeça bem abertos, a Expansão Marítima para perceberem que, tanto os nossos navegadores como os islâmicos, começaram por tentar a conversão religiosa, pois, só desse modo se conseguia a boa relação com os povos. A solução dos aldeamentos foi uma não solução, um ataque aos usos e costumes indígenas e, por isso, as populações, sempre que tal foi possível, apoiaram os guerrilheiros, levando-os, até, a beneficiarem de consultas médicas e de tratamentos de enfermagem.

 

Na Guiné a política de aldeamentos tornou-se muito mais complicada do que nas outras duas colónias em guerra. Com efeito, existiu a intenção de aldear as populações, mas, devido à pequena superfície do território nem era possível criar grandes aglomerados populacionais nem era possível garantir o seu total isolamento da influência do PAIGC. Assim, pode dizer-se, redundou num tremendo fracasso a ideia posta em prática nos outros teatros de operações.

O general Spínola, rodeado de bons executantes, constitutivos do estado-maior e de alguns “bem-pensantes”, optou por uma outra abordagem para “tirar a água ao peixe”: usar, dentro dos limites do possível, os mesmos argumentos do PAIGC e satisfazer as necessidades e reclamações dos das populações. Assim nasceram os Congressos do Povo”.

A ideia foi, incontestavelmente, excelente, mas a sua ineficácia foi, também, evidente, por ter sido tomada já muito tarde; já só aqueles povos naturalmente fiéis ao regime colonial integraram as “banjas” (no dizer moçambicano) spinolistas. A medida imposta limitou-se a evitar que aumentasse a adesão ao partido dos guerrilheiros.

 

O regime fascista e colonialista, em Portugal, pecou, primeiro, por não ter querido aceitar os “ventos da História”, compreendendo que o tempo dos impérios tinha chegado ao fim e, segundo, porque, querendo vencer militarmente um conflito à partida já perdido, não soube, com larga antecipação, mandar preparar os quadros militares de média e alta graduação de modo a aprenderem a lidar com um novo tipo de guerra já, então, experimentado pela Grã-Bretanha e pela França.

Afinal, ao querer “tirar a água ao peixe”, os altos comandos militares portugueses “abriram a torneira” facilitando a vida aos guerrilheiros, que viram simplificada a sua acção de propaganda contra o colonialismo e o fascismo.

19.08.19

A guerra em África: Stress pós-traumático


Luís Alves de Fraga

 

Está a ser aceite, entre nós, a nova designação para este transtorno psicológico ‒ perturbação de stress pós-traumático (PSPT) ‒ introduzida na linguagem científica nos EUA, depois do estudo e análise das consequências em veteranos da guerra do Vietnam.

É evidente que este distúrbio sempre existiu, mas só há poucas dezenas de anos se lhe deu importância efectiva. Recordo-me, quando era criança, de se apontarem como “gaseados” os antigos militares combatentes na Grande Guerra, em França. Era gente que, do nada, começava a gritar, se exaltava sem razão para tal, aparentava um excessivo nervosismo motor ou descontrolo emocional. As mulheres diziam, com ar entristecido: «São os gases da guerra!», e tudo ficava por aí.

Muitos anos depois, em Portugal, esse fenómeno voltou a ser um tormento social e sanitário, quando começaram a regressar os grandes contingentes de militares vindos das frentes de combate de África.

 

Não quero estabelecer qualquer tipo de doutrina quanto a este tipo de problema, porque não tenho competência científica para o fazer nem experiência de convívio com ele, todavia, julgo poder usar do meu conhecimento empírico para o explicar.

Vou tentar.

 

Tanto quanto me é dado saber, são muito mais raros os casos de PSPT entre graduados dos quadros permanentes do que entre militares no cumprimento do serviço militar obrigatório.

Creio poder aclarar este facto recorrendo à lógica, sem, contudo, deixar de admitir a existência de excepções.

 

O tempo de preparação de um recruta para se conseguir a transformação comportamental e psíquica de civil em soldado era, por longa que fosse ‒ e não ia além de cinco ou seis meses ‒, sempre muito pouco. O apresto do soldado para a vida num teatro de operações passava por o ensinar a pouco mais do que defender-se, obedecer às ordens superiores, manter a disciplina, utilizar de modo correcto o material próprio da especialidade conseguida e enfrentar a fome e a sede. Em qualquer caso ‒ mesmo tratando-se de um graduado do quadro permanente ‒ há sempre o baptismo de fogo, no qual se atestam as capacidades individuais, porque o medo do perigo é inevitável, embora dominável.

Mas não era em consequência da primeira experiência de combate que a fractura psicológica se manifestava; surgia, quando surgia, da sequência da pressão sentida, continuadamente, perante a situação de risco e pela visão dos estragos que o contacto com o inimigo ou com as armas por ele disseminadas no terreno ‒ minas anticarro ou antipessoal ‒ provocava. Surgia quando, repetidamente, se via um camarada esfacelado, morto a tiro ou vítima de desastre automóvel (acidentes ou ataques). Surgia depois de meses fechado num quartel precário, no mato, sujeito a bombardeamentos inimigos. Surgia depois de se ter disparado o primeiro tiro e matado o primeiro ser humano ou depois de ter matado vários inimigos ou sacrificado populações inocentes. Mas surgia, especialmente, meses depois dos acontecimentos traumáticos, depois do regresso a Portugal, à vida civil, de noite, quando os pesadelos atacam com lembranças macabras, quando fazem reviver aquilo que a memória quer esquecer. Surgia face à primeira contrariedade, ao primeiro insulto, ao primeiro estrondo inesperado. Acima de tudo, surgia quando se ambicionava uma noite tranquila e ela era de insónia e tensão e medo e recusa de paz e desejo de sofrimento.

 

Mesmo os graduados mais experientes, veteranos de guerra, não confessam, mas são assaltados pelos seus receios, os seus sonhos, os seus fantasmas; foram, contudo, treinados para ultrapassar os traumas e vencê-los.

 

PSPT é um mal que ainda persiste entre alguns ‒ os restantes ‒ combatentes da guerra de África. Quase não têm apoio por parte do Estado. Na Liga dos Combatentes recebem alguma ajuda psicológica. São estilhaços desse conflito onde se foi obrigado a participar para matar ou ser morto ou ser ferido. E, muitos deles, sem cicatrizes no corpo têm-nas na psique.

17.08.19

A guerra em África: os orçamentos financeiros do Estado


Luís Alves de Fraga

 

É comum ouvir dizer que a guerra colonial custou muito dinheiro ao Estado português. E custou, mas é necessário perceber quem pagou a guerra, como e quando. Para tal, tenho de, sem grandes explicações técnicas, expor generalidades pouco conhecidas dos Portugueses no passado e quase nada conhecidas nesta altura, decorridos mais de cinquenta anos desde o começo do conflito em Angola, Guiné e Moçambique.

 

Em primeiro lugar, julgo ser importante começar por esclarecer que, havendo um orçamento do Estado em Portugal, cada colónia tinha o seu orçamento próprio, sem relação directa com o da metrópole. Ou seja, as colónias funcionavam como Estados autónomos de Portugal, tal qual como se fossem países estrangeiros. A grande distinção era que os saldos positivos dos orçamentos coloniais revertiam a favor da metrópole e os negativos eram também sustentados por Lisboa. Mas a regra imposta pelo Terreiro do Paço era a do equilíbrio financeiro, limitando, deste modo, o crescimento económico de cada colónia. Havia-as constantemente deficitárias ‒ Cabo Verde e o Estado da Índia ‒, levando a que os governadores se vissem obrigados a impor restrições no consumo para conseguirem saldos negativos com valores baixos.

Do ponto de vista da defesa e segurança dos territórios, eram encargos de cada colónia o pagamento dos vencimentos das respectivas forças militares e paramilitares; o mesmo acontecia com os restantes funcionários públicos.

Este era o panorama genérico nas colónias antes do início da guerra.

 

A partir de 1961, para além dos orçamentos já existentes, foi criado, na metrópole, um orçamento extraordinário de defesa, onde se previam os custos da guerra, mas com algumas condicionantes: por ele pagavam-se as despesas com aquisição de armamento, munições, transporte de tropas por via marítima e aérea e outros equipamentos com fins militares. Pelos orçamentos das colónias de Angola e Moçambique corriam as outras despesas militares, incluindo as que se faziam com infra-estruturas, com alimentação, saúde, instrução e transportes internos. Na Guiné, era um pouco diferente, já que os rendimentos não tinham a dimensão dos das outras colónias; Lisboa suportava, através do orçamento extraordinário, os excedentes incomportáveis no orçamento de Bissau.

 

Tenho de acrescentar que a cobertura em ouro da circulação do papel-moeda de cada colónia estava depositada nos cofres do Banco Nacional Ultramarino, em Lisboa, facto que, aliado à superior direcção dos negócios dos territórios concentrada no Ministério do Ultramar, fazia do respectivo ministro uma “super figura” da governação. Nesse Ministério havia múltiplas secretarias gerais para governar os diferentes assuntos ultramarinos. Esta era a prova evidente da descriminação existente entre o território metropolitano e os do ultramar. Descriminação que demonstrava, na prática, a inexistência da apregoada nação do Minho a Timor.

 

Para completar a análise política, posso dizer que, de uma forma muito simples ‒ socorrendo-me da gestão orçamental ‒ se deixa bem evidente que a guerra colonial não foi só uma despesa suportada pela massa de cidadãos pagadores de Portugal, mas, também, dos de cada uma das colónias onde se combatia. Assim, é evidente que a fantasiada unidade nacional do Minho a Timor fica esfarrapada e reduzida à dimensão de uma mentira fabricada para consumo interno e externo, muito embora, internacionalmente, estes dados e muitos outros fossem bem conhecidos nos meios diplomáticos e políticos.

 

Esta dispersão orçamental dificulta bastante o cálculo exacto do custo da guerra, porque este não é o somatório da despesa dos orçamentos extraordinários de defesa com o somatório dos valores da contribuição directa de cada colónia, mais os saldos positivos ‒ quando os houve ‒ das chamadas “províncias ultramarinas” usados para suprir despesas indirectas de defesa na metrópole; há que acrescentar despesas “invisíveis”, mascaradas pela frieza dos números, sendo que já escasseiam os homens capazes de interpretar essas “fugas” que, postas à luz do dia, ajudam a compreender e conhecer o valor total de um encargo imposto a todos quantos podiam e deviam pagar.

A avareza salazarista era de tal ordem que a trasladação dos cadáveres dos militares mortos nas colónias, até ao ano de 1967, tinha de ser paga pelos familiares residentes em Portugal; depois, passou a correr por conta do Estado, ainda que as famílias tivessem de suportar alguns custos mais baixos. Contudo, casos houve de enterramentos no mato ou junto a quartéis precários, hoje desaparecidos. As despesas que se vão fazer para dar uma sepultura digna a tais militares terão de ser acrescentadas às que se efectuaram há mais de cinquenta anos.

 

Os diferentes “estilhaços” da guerra colonial espalhados na vida dos portugueses causaram feridas que estão, ainda, por sarar através de estudos cautelosos quer no âmbito da História quer no da Sociologia. Este ‒ o dos orçamentos ‒ merece ser cautelosamente analisado para hoje ou amanhã percebermos quanto custou em metal sonante uma guerra que, afinal, a esmagadora maioria de quem a fez não a queria fazer.

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