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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

30.07.19

A guerra em África: Desenvolvimento urbano


Luís Alves de Fraga

 

Há quarenta e quatro anos (1975) quando as últimas tropas portuguesas deixaram a última colónia entregue a si própria (Angola) dizia-se ‒ quem sabia e conhecia ‒ e eu aceitei como verdade, que, nas antigas colónias africanas da Bélgica, da França, da Grã-Bretanha e de Portugal, aquelas que tinham ficado com melhores infra-estruturas ‒ estradas, cidades, aeroportos, portos marítimos, saneamento básico e electricidade ‒ eram as portuguesas, em especial a de Angola e de Moçambique.

Eu sei o que vi, em certos casos meramente de passagem e, noutros, com permanência prolongada. As cidades e o resto podiam emparceirar com o que de bom existiam em Portugal.

 

Segundo informações colhidas nesses anos já distantes, o grande desenvolvimento começou ‒ como referido anteriormente ‒ nos anos da guerra, o que pode, se não se explicar, parecer confuso e, até mesmo, contraditório.

Realmente, foi entre 1961 e 1974 que se verificou uma explosão de investimento privado na construção civil em todas as cidades de Angola e Moçambique. Não se tratou de grandes capitais colonialistas, mas de médias e pequenas poupanças provenientes de gente que descobriu a possibilidade de por lá se radicar e fazer uma vida melhor e mais abundante do que aquela que tinha em Portugal. Claro que, por trás de tudo, estava a propaganda fascista, dando garantias de uma perenidade indefinida; as forças armadas estavam nas colónias para garantir a paz, uma paz que, segundo o dizer oficial, já existia, porque, realmente, o que os militares faziam no mato, longe das grandes cidades, eram “operações de polícia”!

Quem não quereria ficar num paraíso assim?

 

Naturalmente, os governos de cada uma das colónias, até para dar a aparência de realidade à “verdade oficial”, também investiam em infra-estruturas essenciais à movimentação das tropas, à defesa do território, embora tudo isto surgisse como sendo pensado para benefício das populações. E era-o, mas só lateralmente.

 

Julgo, há duas grandes perguntas que têm de ser feitas para se compreender a frustração dos colonos quando, após 25 de Abril de 1974, começaram a perceber que todo o seu “edifício de sonhos” estava prestes a ruir: uma, qual o motivo de todo o investimento estatal nas colónias, dando-lhes uma feição de comodidade e modernidade? E, outra, qual a razão de não se ter procedido com as colónias como os Belgas, Franceses e Ingleses?

 

Comecemos pela primeira.

Era preciso que o “mundo” acreditasse na mentira oficial: as colónias não o eram como tal, porque constituíam, de modo descontínuo, uma “continuidade” territorial da metrópole, ainda que habitadas por povos com grandes diferenças culturais, tendo cidades, embora pequenas, à altura de qualquer urbe europeia.

Era pouco inteligente este argumento? Parece, mas não era! E não, porque se pretendia “igualar” Portugal e colónias ao que acontecia na África do Sul com os Bóers, ou seja, historicamente, os brancos europeus portugueses tinham tantos direitos àquelas terras, por longínqua ocupação, como os negros nelas nascidos, ainda que, com a “virtude” de, por lá, não se praticar nem separação nem discriminação raciais.

 

Passemos à segunda pergunta.

Os Belgas, Franceses e Britânicos assumiram, a partir do século XIX, as colónias africanas como territórios destinados a serem explorados como fontes de matérias-primas e local de “civilização” dos povos indígenas. Ora, historicamente, a acção “civilizadora” praticada pelos Portugueses já tinha sido levada a cabo nos séculos XV e XVI, aquando da chegada àquelas terras, porque, uma das razões da Expansão ‒ e provam-na as bulas papais ‒ foi levar o cristianismo aos povos que por lá habitavam; até a prática do esclavagismo estava intimamente ligada à “conquista” de almas para engrossar o cristianismo; o comércio foi uma consequência da própria Expansão, pois a angariação de lucros visava a continuação da acção civilizadora.

 

Note-se que, não tendo sido enunciadas exactamente deste modo as teses justificativas da manutenção da luta pela posse dos territórios africanos, a argumentação usada girava à volta do que acabei de dizer.

Assim, quanto mais desenvolvidas estivessem as urbes coloniais e as infra-estruturas, mais seguros estavam os europeus brancos de que aquelas eram terras tão suas como dos negros lá nascidos e de que se estava a praticar uma política de multiculturalidade verificável por estrangeiros que fossem visitar os territórios.

 

Era preciso que tivesse havido liberdade de expressão para poder desmontar, na altura, tal como julgo tê-lo feito agora, esta política cheia de manhosices, de artifícios e falácias. Não se deixaram enganar os líderes dos países que condenavam o colonialismo, nem os que chefiavam os movimentos de libertação, mas foram enganados, e muito, todos os colonos que acreditaram que a prosperidade urbana e infra-estrutural era um sinal de segurança e perpetuidade nas terras onde se haviam radicado eles ou os seus antepassados. Também eles foram vítimas da guerra em África, que só tinha como finalidade manter, até ao limite do possível, uma mentira, que cairia perante uma subida estratégica do patamar do conflito.

29.07.19

A guerra em África: “Apanhados do clima”


Luís Alves de Fraga

 

O stress pós-traumático em vítimas da guerra colonial está, segundo julgo, bastante bem definido. Vou dedicar-lhe um breve apontamento, um dia destes. Contudo, houve um “fenómeno” ‒ se é que assim lhe posso chamar ‒ com contornos muito diferentes, mas também de natureza psíquica, conhecido entre os militares por uma expressão que, admito, nasceu em África: “apanhado do clima”. O que era isto, como e quando surgia?

 

Tal como já relatei em apontamento anterior, nem todos os militares ‒ de soldado a oficial ‒ estavam destinados a fazer comissões no mato e sujeitos aos desgastes resultantes do constante risco de vida, nem sequer aos incómodos da vida em um aquartelamento precário, com pouca água, alimentação deficiente, restrições de saída, noites sobressaltadas e calor ou frio consoante a altitude. Havia muitos militares que ficavam em cidades ‒ enfim, algumas delas só nominalmente o eram, mas eram-no! ‒ em serviços de apoio ou em estados-maiores ou departamentos em tudo a eles semelhantes. Sobre estes últimos, só em casos muito raros e específicos ‒ por exemplo, pessoal do serviço de saúde mal preparado para conviver com situações onde alguns feridos eram mais destroços de seres humanos, que humanos com aspecto de humanos ‒ se podia admitir o espoletar de situações pós-traumáticas. No entanto, alguma coisa acontecia que lhes alterava o comportamento normal. Não se tratava de depressões, nem de algo desse tipo, mas antes de comportamentos descontrolados, entre a alegria excessiva e a zanga repentina, entre um discurso coerente seguido de incoerências, às vezes, impropérios usados diante de superiores hierárquicos, pequenas revoltas disciplinares e más disposições ou explosões de mau humor com amigos, camaradas e, até, com familiares.

Tudo isto começava a manifestar-se ao fim de uns meses de permanência em África, não com todos os militares, mas com alguns. Tive oportunidade de viver, eu mesmo, situações destas e de acompanhá-las entre militares meus companheiros.

 

A “malta” rapidamente encontrou uma expressão pouco clínica para designar estes comportamentos com contornos de anormalidade: “apanhados do clima”!

Na verdade, nada disto tinha a ver com o estado atmosférico! Se tivesse, muitos colonos seriam “apanhados do clima” e, todavia, não estavam nem mostravam tais sintomas. Até porque, nem todos os militares, como já disse, independentemente do posto, reagiam da mesma forma.

 

Na nossa juventude, descuidados com o nosso estado físico ou psíquico, nada disto nos dava cuidado. Os graduados desculpavam aos subordinados algumas “irresponsabilidades” comportamentais, com um encolher de ombros acompanhado da tal expressão: «Está apanhado do clima»! Gerou-se, assim, uma cadeia de conformidade e desculpa com uma certa forma de estar, aliás passageira, quase sempre.

Mas, hoje, passados tantos anos, interrogo-me sobre esta alteração de comportamentos. O que justificava o “apanhado do clima”?

 

Estando o combate longe da zona logística sobre alguns serviços nesta integrados fazia-se sentir a pressão do trabalho, a velocidade, a exigência, a responsabilidade e a consciência de que uma falha aqui poderia ter graves repercussões lá à frente. Havia um clima de tensão, de nervosismo, de que faltava sempre qualquer coisa. Era por causa desse “clima” que se ficava “apanhado”!

 

Acumulava-se ao “clima” de tensão anteriormente descrito a contagem decrescente do tempo para regressar a Portugal, a qual se tornava mais penosa quanto menos meses faltavam para o fim da comissão. E estava sempre pendente a possibilidade de, colocado num serviço de “retaguarda”, ter de saltar, por qualquer motivo, para uma zona de maior envolvimento nas operações. Isto, junto ao que deixei dito, gerava uma maior tendência para ficar “apanhado do clima”.

 

Este efeito colateral da guerra acabava passadas algumas semanas ou, nos casos mais relutantes, um ou dois meses, após o regresso a Portugal. Depois, depois já cá, ríamo-nos dos sentimentos vividos, das preocupações, sem qualquer consciência de que uma coisa tão “simples” era, também, um efeito da guerra.

28.07.19

A guerra em África: a prostituição


Luís Alves de Fraga

 

Chamaram-lhe já “a mais velha profissão do mundo”, ainda lhe chamam “trabalho do sexo”, mas quando será que alguém reconhece que a prostituição nem é profissão nem é um trabalho? Quando é que se reconhece que a prostituição não é um prazer, mas, na maioria das vezes, o último recurso de sobrevivência para mulheres à beira da fome, do desespero e, acima de tudo, quase sempre, um caso de total perda de auto-estima?

 

Estranhamente, quando, antes da guerra colonial, era difícil migrar para as colónias africanas, não se criavam grandes embaraços de partida às mulheres que, em Portugal, já faziam da prostituição uma forma de ganhar a vida. Elas, brancas e europeias, iam para Angola ou Moçambique onde sabiam poder angariar a fortuna que por cá jamais alcançariam. Eram, para além de tudo, sonhadoras. Pobres sonhadoras.

Desse tempo, ouvi contar a história de uma tal “Marabunta”, que terá feito dinheiro em Luanda, ainda antes da guerra começar. Será verdade?

 

Entre 1961 e 1974, nas colónias de África, a prostituição foi, para mulheres negras e brancas, um recurso para alimentar filhos ou família e, em determinadas circunstâncias, um caso de sobrevivência com a dignidade mínima necessária a um ser humano.

Porque pouco ou nada se disse sobre este assunto, limitar-me-ei a descrever o que vi em Moçambique, onde estive no cumprimento de duas comissões de serviço. Referirei ‒ sem revelar as fontes de informação ‒ um ou dois casos passados com camaradas e amigos meus. Não poderei generalizar as situações e as conclusões às colónias de Angola e da Guiné, no entanto, julgo, não seria abusivo fazê-lo.

Mas, antes, há que contextualizar a situação que desejo abordar fugidiamente.

 

Depois de a guerra colonial já ter três frentes, foram colocados por lá, em média, cerca de trinta mil homens em Angola, o mesmo em Moçambique e vinte mil na Guiné. Estas forças desdobravam-se por toda a extensão dos territórios, podendo dizer-se que a maior concentração se fazia nas zonas de declarada intervenção militar e nas capitais respectivas, onde estavam os estados-maiores (em Moçambique esta “retaguarda” distribuía-se entre Lourenço Marque ‒ hoje Maputo ‒ e Nampula) e os serviços de apoio. Assim, nas cidades, a “população” europeia cresceu uns milhares de homens.

Com esta breve e sintética explicação quero realçar que homens jovens, dispostos a gastar dinheiro sem grande preocupação de onde e como o faziam, apareceram nas capitais das colónias, quebrando bastante as rotinas e tradições de antes da guerra.

 

Em Lourenço Marques, na chamada “Baixa”, duas ruas, a do Major Araújo e a Consiglieri Pedroso, por estarem perto do porto, sendo já, desde o passado, o centro de concentração da diversão nocturna, aumentaram com a guerra. Era por lá que havia os cabarés, as cervejarias e as tascas que se enchiam de homens jovens e de mulheres dispostas a ganhar dinheiro de forma rápida. Nos cabarés “Aquário” e “Tamila” as principais “atracções” e “acompanhantes” eram mulheres brancas, europeias, no entanto, nas cervejarias e tascas a quase totalidade eram negras, algumas com perucas louras, o que estabelecia um contraste exótico. Nessas ruas, a vida começava ao anoitecer.

Era por essas duas artérias que se despejavam os militares, fardados ou à paisana, “residentes” na cidade ou de “passagem” à espera de seguirem para o interior ou de marcharem de regresso a Portugal.

 

Com base num relato verdadeiro, exactamente, aquando do regresso, os oficiais de um batalhão foram ‒ como não podia deixar de ser, dizia-se ‒ até à rua do “camarada” Araújo para verem ‒ ou, talvez mais, para quem estivesse disposto a abrir os cordões à bolsa ‒ um espectáculo de striptease (podia ser feito por uma mulher ou por um travesti). Com eles ia o padre capelão da unidade, que, por ser de baixa estatura, no momento crucial alguém o fez subir para cima da mesa de modo a não perder nada do show.

Este episódio ‒ se calhar repetido dezenas de vezes, noutras ocasiões ‒ dá para perceber como, até homens preparados para resistirem aos “apelos da carne” se “deixavam ir” pelas “sendas do pecado”.

 

Isto, visto hoje com os olhos cansados pela passagem da idade, evidencia, não a aventura da juventude, mas, os estilhaços da guerra, tanto sobre homens-soldados como sobre homens-sacerdotes e, mais do que tudo, sobre mulheres dispostas a “venderem” o corpo para, sabe Deus, angariarem meios de subsistência que não tinham de outras formas. Por favor, que não haja moralistas para as condenar, para os condenar, porque, ou se começa por condenar quem julgou que era pela guerra que se resolvia o problema colonial, ou o melhor é ficar calado.

 

Na cidade da Beira‒ outro centro de concentração militar ‒, em Moçambique, não havia salões de chá ou boîtes ou discotecas para os casais jovens dançarem nas sextas-feiras e sábados à noite; havia vários cabarets onde, os mais ousados, levavam as mulheres para verem o espectáculo, que incluía striptease e actuação de cançonetistas idos de Portugal. Algumas vezes aconteceram cenas caricatas com pugilismo à mistura, porque, um militar “maçarico” (acabado de chegar à cidade) tomava a acompanhante do cavalheiro por uma “funcionária” e o “caldo entornava-se” sem o jovem perceber a razão!

 

Em Nampula, tal como em Lourenço Marques, nos bairros indígenas, havia mulheres negras dispostas a prostituírem-se a troco de vinte ou vinte e cinco escudos. Era por aí que os soldados ‒ menos abonados do que os oficiais e sargentos ‒ procuravam fazer de conta que esqueciam a distância, as saudades e as ansiedades geradas no mato. E a tudo isto as autoridades policiais e cívicas fechavam os olhos num silêncio cúmplice, porque, este outro lado da guerra, era tão ou mais alienante que o ópio ou a religião, segundo a metáfora marxista.

 

Salazar e a PIDE, a polícia política que a ele reportava, hipocritamente, depois de terem proibido a prostituição legal, assistiam impávidos, com ar seráfico, à degradação moral de todos os envolvidos na guerra, que arrastavam os seus medos e os seus pesadelos. Afinal, eles, os responsáveis, eram muito mais bestiais do que todos quantos no acto sexual buscavam remédio para feridas invisíveis.

Foi a guerra…

26.07.19

A guerra em África: os administradores coloniais


Luís Alves de Fraga

 

Desde o século XVI, mal os navegadores portugueses puseram o pé em certas zonas do litoral africano, foi lançada uma “rede” administrativa sobre as regiões que o poder central achou conveniente “governar” para evitar que outras potências europeias exercessem o seu “governo” nessas áreas. No início ‒ é importante deixar isso bem claro para não alimentar “ódios” actuais contra uma “colonização portuguesa” que, de facto não existiu ‒ a coroa limitou-se a mandar construir uma fortaleza, que funcionava como feitoria ou entreposto comercial, onde se guardavam os produtos para vender aos negros das proximidades e os que se lhes compravam para serem remetidos para o reino, na próxima viagem.

Isto foi assim, na prática, até ao século XVIII e mesmo até ao começo do século XIX. E foi assim, porque a África ao sul do deserto do Saara nunca foi um território de verdadeira fixação dos emigrantes portugueses. Só depois da Conferência de Berlim, como já deixei dito antes, é que Lisboa foi obrigada a proceder sistematicamente à ocupação do interior do continente nas zonas onde já era tradicional a sua presença litoral. Foi, por conseguinte, no final do século XIX que se engendrou uma “rede” administrativa para cobrir os territórios coloniais africanos, levando até ao interior a “autoridade” do Estado. Tal facto conduziu à modificação das relações comerciais entre Portugal e esses territórios. Passou a fazer-se uma ocupação virada para a produção das matérias-primas, que tinham venda nos mercados europeus no quadro da revolução industrial.

 

Surgiu a época, primeiro, dos comissários régios e dos governadores de distrito e, depois, a dos altos comissários seguida dos governadores gerais, governadores de distrito, dos administradores de concelho e dos administradores de posto. Agregada a esta rede vinha a da polícia local chefiada, em regra, por europeus e constituída por indígenas, mais ou menos alfabetizados, com resquícios de comportamentos europeus, que se passaram a designar por sipaios, por abuso extensivo, proveniente do século XIX, quando as forças militares em Moçambique foram indianas.

Foi nessa época que começou o verdadeiro colonialismo com submissão dos indígenas à vontade dos grandes interesses coloniais. Foi, também, nessa época que se fundou, em Lisboa, a Escola Colonial com vista à formação de quadros administrativos para servirem especialmente em África.

 

Se é verdade que toda a hierarquia colonial estava, realmente, ao serviço dos interesses económicos e financeiros, que exploravam as matérias-primas africanas, ainda que supondo estar a servir Portugal, preservando um património histórico, uma boa parte desses funcionários estava, de facto, distante dos indígenas, ficando reservado para o administrador do concelho e para o administrador de posto esse papel directo. Eram eles, em especial os segundos, quem representava o lado mais odioso da exploração colonialista.

Vale a pena recordar como o faziam e qual a razão para o fazer.

 

Muitas vezes, em pequenas localidades perdidas ao lado de uma estrada mal coberta de alcatrão ou nem isso, para além da habitação de um fazendeiro ou do capataz de uma grande propriedade agrícola, havia uma casa de alvenaria onde residia o administrador de posto com a família, tendo anexa uma prisão e um gabinete de trabalho para o chefe da polícia, comandante dos sipaios. Eram eles que impunham a autoridade nas aldeias indígenas próximas. Recebiam ordens do administrador do concelho. E as ordens, antes da guerra, iam quase sempre em dois sentidos: obrigar os nativos a cultivar os produtos determinados pela administração da grande empresa, que comprava a colheita, ou angariar trabalhadores para, por valores irrisórios, servirem, de sol-a-sol, na fazenda dos grandes proprietários agrícolas.

 

Não era trabalho escravo, porque era pago ‒ valores insignificantes ‒, mas era sentido como tal, porque impedia os indígenas de cultivarem as suas lavras e cultivarem o que lhes fazia falta, por ser o tradicional, para se alimentar.

Quando as ameaças feitas pelo chefe da polícia ou pelo cabo de sipaios não eram suficientes, o administrador de posto mandava aplicar palmatoadas, dadas com régua de madeira, até as mãos ficarem inchadas prontas a sangrar.

 

Este é que foi o colonialismo sentido pelas populações. Foi este que as levou à revolta, algumas vezes à morte violenta para reprimir gritos de insurreição e acabou por os empurrar para adesão à guerrilha onde aprenderam os fundamentos teóricos e ideológicos para combater de armas na mão.

 

Foi contra este tipo de actuação que os primeiros contingentes militares, instruídos nos fundamentos da guerrilha, se bateram, enquanto combatiam os homens que lhes montavam emboscadas no mato. Depois dos primeiros momentos de revolta em consequência do massacre no Norte de Angola, os militares impuseram o fim deste colonialismo primário, já que, contra o outro, o dos grandes interesses financeiros, nada podiam fazer. A tropa sabia ‒ pelo menos os quadros de graduação mais elevada ‒ que a estrutura administrativa colonial tinha de ser saneada. Foi uma luta difícil de travar. Nunca foi vencida essa batalha e foi, também, por isso que a guerra se perdeu antes da vitória da independência dos povos colonizados.

 

Esta também é uma História que convém fazer sem receios e sem reticências, para evitar que ‒ por razões compreensíveis à luz da ciência política ‒ os novos Estados africanos inventem a História do colonialismo, que justifica, à sua maneira, a luta armada em que se envolveram.

25.07.19

A guerra em África: feridas que sangram


Luís Alves de Fraga

 

Ao fazer História ‒ aqui não estou a fazê-la, mas a deixar pistas para quem a quiser fazer ou, sobre esta temática, desejar reflectir ‒ há sempre, quando nos debruçamos sobre a guerra, tendência a esquecer o inimigo, a relegá-lo para outro plano. Também, por cá, pouco se tem falado dos guerrilheiros, que se opunham à nossas tropas no mato. Não quero incorrer nessa injustiça ‒ porque acho uma injustiça esquecer o adversário ‒ ainda que tenha pouco a dizer, por não dispor de informação documental e não desejar socorrer-me de relatos, provavelmente, fantasiados.

 

Quase de certeza, também pelo mato ficaram sepultados muitos guerrilheiros, hoje esquecidos das autoridades dos seus países. Sepultados, porque imediatamente mortos pelas nossas tropas ou porque foram morrendo na sequência de terem sido feridos, sem condições de tratamento apropriado.

É verdade que, quando capturados pelas nossas forças, aos guerrilheiros feridos eram dispensados alguns cuidados, pelo menos, na esperança de que dessem informações, que ajudassem à continuação da luta. Só em casos, quase pela certa, excepcionais foram transportados para os hospitais portugueses e ali tratados com a humanidade devida aos prisioneiros de guerra. E, nos casos em que assim não foi, julgo, outro tratamento aconteceu ditado pela natureza do conflito, porque a guerrilha, tendo regras, facilmente as ultrapassa quando a razão da luta é ideológica. Nem sobre uns nem sobre outros há estatísticas válidas. Somente podemos imaginar dramas e não mais do que isso.

 

No ano de 1974, lá pelo mês de Novembro ou começo de Dezembro, na qualidade de oficial mais antigo, acompanhei uma delegação da FRELIMO na visita ao aeródromo de Nova Freixo, no qual eu estava temporariamente colocado. Um dos elementos, o comissário político, olhou o invólucro vazio de uma bomba de napalm e inquiriu-me sobre o que era aquilo. Expliquei e ele, jovem ainda, chamou a atenção para o chefe da delegação, um velho guerrilheiro, que, “fuzilando-o” com o olhar, respondeu: «Conheço bem e conheço os efeitos». Depois, levantou a calça para deixar à mostra, na perna, uma horrível cicatriz de profunda queimadura. Houve um silêncio de morte naquele instante. Sobre mim caiu a culpa daquele bombardeamento, que não fiz, e disfarcei, puxando de um cigarro, que acendi… Ainda fumava!

 

Não imagino em que circunstâncias foi aquele guerrilheiro ferido, mas calculo as dores físicas sofridas e a coragem moral e política para estar ali, com um ar tranquilo, a olhar para o invólucro de uma bomba que, por a guerra ter acabado, não fez mais vítimas.

Ele transportava em si todas as dores e sofrimentos de quem, por uma causa ‒ a da independência do seu país ‒ lutou, morreu, ficou ferido e estropiado.

 

As vítimas das guerras acabam por não ter pátrias. A dor e a capacidade de perdão, de tolerância, ficam sendo a bandeira a que prestam honras maiores.

Provavelmente, já restam nas antigas colónias portuguesas poucos veteranos da guerrilha, mas sobrevivem ainda lembranças do tempo dos combates. Lembranças bem vivas, de carne e osso. Quase pela certa, com uma cor de pele mais clara.

 

Quantos mulatos nasceram de relações ocasionais entre soldados portugueses europeus, e jovens mulheres negras naturais de aldeias, no mato, por onde passaram colunas militares, ou naturais dos bairros periféricos das cidades de betão, que vinham ganhar para o comer?

Também não sabemos! Sabemos que essas mulheres-crianças ‒ a maioria ‒ e as menos jovens carregaram filhos, que tiveram como pais os militares europeus, vindos de longe e que em nada as ajudaram. Elas entregavam-se-lhes por medo ‒ quase sempre ‒, por admiração, atraídas pela diferença, para serem pagas com umas moedas, por indiferença e, não sei, por ignorância. Fosse qual fosse o motivo o “rasto” ficou. Ao ficar, terá, por certo ‒ mesmo admitindo muita tolerância cultural‒, tido de enfrentar os usos e costumes da sua gente, da sua cultura. Ninguém, do lado português, se importou com isso… Com um filho de cor mais clara, marca da passagem do homem branco, ela teve de sobreviver. E não sabemos como.

Continuamos a não querer saber nada sobre isso, sobre esses meninos mulatos ‒ hoje homens e mulheres adultos, se ainda forem vivos ‒ filhos da guerra.

 

O que ditará os “silêncios oficiais” à volta dos dramas íntimos gerados por causa do som das armas? Que medos se querem arrenegar?

24.07.19

A guerra em África: o recrutamento colonial


Luís Alves de Fraga

 

Com o passar dos anos, aí por volta de 1969 ou 1970, o recrutamento do contingente militar metropolitano começou a tornar-se insuficiente para as necessidades nos três teatros de operações. Este facto obrigou a uma tomada de posição, que havia sido evitada antes: recrutar os negros autóctones de cada uma das colónias. É sobre isto que me debruçarei agora, mas, também, sobre o recrutamento dos brancos nascidos nos territórios ultramarinos, porque há certos pormenores a merecerem ser realçados. Acrescentarei mais uma espécie específica de um tipo de recrutamento: os voluntários europeus com conhecimento do mato. Deixarei de fora, para tratamento autónomo, o recrutamento e treino das tropas especiais africanas.

 

Na busca de uma coerência antes não exaltada, surgiu o recrutamento, para o contingente geral do Exército, dos mancebos negros de cada colónia. Esta medida, para além de necessária, pretendia provar que, de facto, aqueles territórios eram tão portugueses como qualquer dos distritos do Portugal peninsular. Assim, também os negros deveriam ser empenhados na luta contra os movimentos independentistas, deixando de lado problemas e responsabilidades morais que tal medida levantava.

Com efeito, ao recrutar jovens locais para integrarem as forças militares regulares portuguesas, estava-se, sem margem para qualquer dúvida, a empurrá-los para serem parte activa numa guerra civil que, até ali, era mais uma guerra de secessão, que opunha opressores ou dominadores a oprimidos ou dominados.

Terá passado pela cabeça dos políticos portugueses, de então, este “empurrar” dos africanos para uma “fogueira” onde, mais tarde, poderiam arder os ódios da vingança em nome da traição? É que foi isso que aconteceu! Aconteceu depois das independências e, mesmo antes, mal esta foi perspectivada pelos negros. Houve, pelo menos em Moçambique, unidades militares constituídas maioritariamente por soldados indígenas que, após o dia 25 de Abril de 1974, ou desertaram ou, em massa, se negaram a continuar ao serviço. Receavam, e bem, as retaliações advenientes.

 

Não deixa de ser uma mácula grande e grave no processo de descolonização o total desprezo a que foram votados todos os antigos soldados africanos combatentes no Exército regular português. O Movimento das Forças Armadas (MFA) e os políticos de então preocuparam-se com o processo de democratização nacional e, fazendo jus à sua raiz fascista e colonialista, não souberam salvaguardar a vida e a dignidade daqueles que, a mando do antigo regime ditatorial, serviram para combater os seus irmãos de sangue e de cultura. Claro que, para mim, é fácil hoje, aqui e agora, culpar os que fizemos e quisemos a democracia e as independências coloniais; seria ainda mais fácil limitar-me a culpar o fascismo, que determinou a guerra e a prolongou, mas tal atitude, à luz da minha consciência cívica e histórica, correspondia a tentar tapar o sol com uma peneira bastante esfarrapada.

 

O mesmo já não digo em relação aos mancebos brancos de origem europeia, nascidos nas colónias filhos de pais nelas radicados. A esses competia-lhes, por razão de coerência, serem os primeiros a marchar na luta contra a guerrilha, porque estariam, supostamente, a defender o seu “status quo”. Foram muitos os que se deixaram incorporar nas fileiras do Exército maioritariamente constituído por jovens metropolitanos. Contudo, foram bastantes os que, alegando razões diversas, se escaparam do serviço militar e de participar na luta, no mato, contra aqueles que também estavam a combater pela independência de todos.

Este é um aspecto sensível que nunca foi explicado ‒ nem poderia sê-lo ‒ na altura, aos filhos dos colonos e, até, aos próprios colonos. Disponhamos de um pouco de paciência para compreender esta questão.

 

Excluindo, por quase ausência de colonos europeus, a Guiné ‒ colónia que merece ser analisada em particular ‒ fixemos a atenção, primeiro, em Angola e, depois, em Moçambique.

 

Em Angola, logo de início, surgem dois movimentos de libertação: a UPA (herdeira da UPNA) e o MPLA. O primeiro recebia apoios financeiros idos dos EUA e o segundo da URSS. A UPA (depois FNLA) não tinha uma ideologia política por trás de si para além do desejo da independência e, se possível, com domínio político e social dos povos do Norte de Angola; o MPLA, por via do apoio soviético, fundava a ideologia política no pensamento marxista. Esta diferença ideológica é primordial, pois o marxismo, em África, tendia a neutralizar diferenças étnicas e raciais, polarizando a orientação política naquele que era o inimigo comum de todos os africanos e europeus: a exploração colonialista e capitalista. E, colonialista não eram o colono, nem o funcionário, nem o comerciante, nem o pequeno fazendeiro; colonialistas eram os grandes interesses financeiros que tanto exploravam ‒ embora de maneiras desiguais ‒ europeus e africanos.

Esta diferença entre ideologias, em Angola, levou a que os dois movimentos e, posteriormente, o terceiro ‒ a UNITA ‒, tendo como inimigo comum os defensores do colonial-fascismo, lutassem entre si para, derrotando os restantes, imporem à sociedade, pouco ou nada politizada, a ideologia adoptada.

Numa análise primária e imediata, o MPLA iria permitir a convivência pacífica, tolerante e tolerada dos europeus que, manifestamente, se lhe não opusessem e fossem, realmente, também, vítimas do sistema colonial.

A existência dos três movimentos dificultou tudo em Angola, até a luta militar contra todos.

 

Em Moçambique a situação era claramente mais simples, porque só existia um movimento a lutar pela independência e era de matriz marxista, aplicando-se-lhe tudo o que acabei de referir em relação ao MPLA.

 

Aqui chegados, percebe-se que o pânico dos colonos em relação à guerra se deveria ter virado contra os movimentos não marxistas, se para tal tivessem a devida informação. Mas Lisboa sabia tudo isto com precisão, todavia calava-se, por razões ideológicas, como, também, é compreensível.

 

Os “combatentes” voluntários, europeus, foram figuras ‒ umas mais destacadas do que outras ‒ conhecedoras dos trilhos do mato, dos povos do interior e das formas de se movimentarem. Alguns eram caçadores profissionais, sendo que o mais conhecido de todos foi “combatente” no Norte de Moçambique, na região do lago Niassa, e, mais tarde, oficial do Exército sul-africano, em Angola. Chamava-se Francisco Daniel Roxo.

Julgo que se tratava de aventureiros, vagamente identificados com três princípios: um “patriotismo” pouco esclarecido, um fascismo de propaganda e um racismo selectivo.

 

Como se viu, o recurso ao recrutamento local de mancebos africanos ou europeus não foi, nem seria nunca, solução para uma guerra que antes de ter começado já estava perdida. No entanto, esse recrutamento deixou bem evidente algumas máculas tanto do fascismo como da democracia e pôs a nu aventureirismos e oportunismos egoístas.

As guerras têm destas coisas, tão mais chocantes quanto mais injustas.

23.07.19

A guerra em África: imprensa, rádio e censura


Luís Alves de Fraga

 

Já antes referi que, na maioria das colónias africanas, a acção da polícia política foi, durante muitos anos ‒ até 1960 ‒ reduzida ao mínimo indispensável para assegurar o movimento nas fronteiras mais comuns: portos marítimos habituais e aeroportos. Esse pilar da ditadura fascista estava “encolhido”, por razões também mencionadas. Todavia, os mecanismos de controlo da expressão livre do pensamento mantinham-se activos, por uma questão de princípio. A censura aos jornais, à rádio e aos espectáculos existia para controlar aquilo que os colonos podiam ler, ver e ouvir. Mas esse controlo seria preciso? Não existiria a censura só como um mecanismo embrionário e sem uma acção repressora notória ou só relevante em situações extraordinárias?

 

A censura, como resultado do analfabetismo das populações nativas, virou-se, a partir do começo da guerra, para os colonos, mas ‒ e é só um mas, resultante da minha observação pessoal em Moçambique ‒, provavelmente, com instruções especiais e diferentes das que vigoravam em Portugal.

 

Na verdade, nos anos entre 1966 e 1974 (Abril), as fitas cinematográficas, vindas da África do Sul, na sua quase total e esmagadora maioria, não apresentavam os “saltos” resultantes dos cortes censórios e víamos, na íntegra, as cenas tidas como desaconselháveis em Portugal; o mesmo acontecia com os diálogos. Seria porque a distribuidora era sul-africana e não se podia “estragar” o “celulóide”, porque, caso, para mim inédito, as legendas não eram sobrepostas na “fita”, como em Portugal, mas corriam ‒ muitas vezes desfasadas dos diálogos da língua original ‒ num outro pequeno ecrã por baixo do principal?

 

Também, no ano de 1973, vi, na cidade da Beira, a representação da peça “La Fuente Ovejuna” tendo como figura principal Eunice Muñoz, com a peculiaridade das actrizes representarem uma parte do espectáculo em tronco nu (absolutamente impossível em Portugal, nessa época). Acresce que a voz em segundo plano imitava, na perfeição, a de Salazar.

Que censura era esta?

Percebe-se a razão de tantas interrogações.

 

Mas a censura actuava sobre os jornais, embora esteja convencido, que, também de forma branda, com a única exclusão das notícias sobre a guerra. Dessas pouco ou nada surgia. A guerra era um assunto tabu. E era aqui que a censura dava o braço à propaganda alienante da opinião dos colonos, empurrando-os para um desconhecimento que lhes dava a sensação de segurança. Neste particular há que destacar a declarada perseguição de que foi alvo o bispo da Beira e o jornal da diocese dele dependente. E foi alvo dessa perseguição, porque, entre outras atitudes politicamente “pouco recomendáveis”, ousou criticar os gastos sumptuosos feitos, no começo de 1969, com o casamento de uma das filhas do enigmático e “secreto” engenheiro Jorge Jardim, figura, supostamente, da confiança do regime.

 

Em Moçambique a emissora de rádio que cobria todo o território era a do Rádio Clube de Moçambique. Tinha várias frequências, algumas das quais emitidas em línguas nativas. Não percebíamos nada, mas era, de certeza, sobre essas frequências que a censura e a PIDE/DGS mantinham uma apertada vigilância, pois serviam para fazer a contrapropaganda. E devia resultar, porque um dos grandes prazeres do homem da rua, negro, descalço e às vezes andrajosamente vestido, era levar ao ombro um aparelho de rádio, a pilhas, ouvindo as músicas sincopadas do folclore africano; o outro era usar óculos escuros.

 

Da minha experiência, posso dar testemunho, entre 1973 e 1974, que na Emissora do Aeroclube da Beira (controlada pela influência política do engenheiro Jorge Jardim) nada do que era transmitido em língua portuguesa era censurado pela Comissão de Censura, até ao dia em que, depois da morte de Salvador Allende, resolvi fazer um apontamento sobre as virtudes do regime chileno presidido pelo recente assassinado. Todas as minhas crónicas passaram a ter de receber autorização prévia para irem para o ar.

Não sei como se passava em Angola, mas recordo-me que na Guiné, sob o governo de Spínola, foi mandado fazer e distribuir a todos os naturais um rádio portátil sintonizado para uma só emissora, que transmitia propaganda organizada no estado-maior do comando-chefe.

 

A única conclusão que tiro daquilo que escrevi e vivi nas comissões militares em Moçambique é que a censura, todo o tipo de censura, estava virada para o que podia moralizar a guerrilha e “desnortear” as populações autóctones, porque, sobre os colonos, havia a certeza da sua concordância com a guerra e o regime que a suportava.

Em suma, os europeus eram “fiéis” ao salazarismo e ao colonialismo fascista que se praticava, ainda que houvesse divergências, mas estas não eram de molde a desviar as atenções do que, em Lisboa, se considerava essencial: a guerra.

22.07.19

A guerra em África: amores destroçados


Luís Alves de Fraga

 

Pelo menos, nas décadas de 50 e 60 do século passado, em Portugal, na Europa e se calhar no âmbito da, então, chamada “civilização ocidental”, a juventude “acabava” por volta dos vinte e um anos, mais coisa, menos coisa; em muitos casos, “acabava” bem mais cedo. Isto quer dizer que os jovens ‒ do sexo masculino e feminino ‒ estavam dispostos a assumir responsabilidades de gente adulta mal entravam no mundo do trabalho. Dito de outra maneira, para toda a gente compreender, começavam-se namoros “sérios” ‒ com intenção de casar ‒ quando se ganhava dinheiro para sair de casa dos pais, sustentar uma família, arrendar uma habitação e poder pensar em ter descendência.

 

Nos rapazes, esta atitude era assumida como uma forma de ganhar respeitabilidade social, de maioridade cívica e familiar, pois viver debaixo do telhado paterno constituía, invariavelmente, obrigação de aceitar as “regras” estabelecidas pela autoridade dos progenitores; nas meninas, casar, julgavam, passava por um processo de obter maior liberdade, pois, entre obedecer ao pai e à mãe e compartilhar “direitos” com o marido, era preferível a segunda hipótese, nem sempre verdadeira. Claro que, sobre esta explicação generalista, sobrepunha-se uma outra, subsidiária ou não desta, que posso, para simplificar, designar por “tradição”. O casamento jovem era tradicional.

 

O começo da guerra em África, em 1961, contribuiu para o início da alteração dos “hábitos” enunciados anteriormente, umas vezes, acelerando todo o processo de autonomia familiar, noutras, retardando-o. Vejamos, um pouco ‒ e só um pouco ‒ como tudo isto se foi modificando.

 

Namoros de aldeia, começados quase durante a frequência da instrução primária, eram coisa comum naqueles tempos de gente a viver lá nos confins de Portugal, onde a electricidade não chegava e a estrada próxima ficava distante meias horas de caminho.

Ele ia para a guerra e não queria deixar a namorada, em idade casadoira, para ser cobiçada por outro mais atrevido do lugar ou da aldeia ou vila cercana. Ela queria ter casa, um telhado a que chamasse seu, porque, das portas para dentro, passava a ser a rainha, única senhora da sua vontade e ‒ quem sabe? ‒ dos seus desejos.

Casavam antes do embarque. Era uma alegria cheia de lágrimas e suspiros, angústias e esperanças. Os meses passavam e ele escrevia cartas mal-alinhavadas; ela ou ficava fiel, esperando-o sem mácula, porque as vozes da aldeia prendiam mais do que grades ou arame farpado, ou partia para a vila, para a cidade, tentar emprego mais remunerado sem o esforço de andar de enxada na mão e a guardar as cabras. E lá, ainda fresca e rosada com as cores louçãs do campo, as tentações eram mais do que muitas e a saudade de um carinho, retardado pelo uso de uma G3, motivavam-na para a infidelidade. Tudo, então, podia acontecer. E ele, longe de imaginar, porque alguém pressuroso lhe dava a notícia, ou rompia, com uma escrita analfabeta, o casamento, que jamais seria igual, ou enfiava um tiro na cabeça ou deixava-se morrer com vergonha e desgosto ou, alternativa derradeira, voltava desmiolado, incapaz de regressar à aldeia, deixando-se ficar ao deus dará, na cidade grande, à procura de emprego e pronto a maltratar uma nova companheira, que pagava as culpas que não tinha. Ele, dir-se-ia depois, sofria de stress pós-traumático. E não é que sofria mesmo!

 

Mas, muitas vezes, a sensatez própria dos mais instruídos, mais cautelosos, mais ambiciosos, levava-os a deixarem para o regresso o desejado casamento. Escreviam-se com frequência ‒ a frequência das voltas do SPM ‒ e as promessas de amor cresciam com a saudade, enquanto cresciam os planos para o casório. Ele juntava quanto podia dos dinheiros pagos pelo Estado em troca do suor vertido, da saudade e, quase sempre, dos sacrifícios e riscos vividos. Um dia, um dia malfadado, chegava a carta a derribar esperanças, sonhos, desejos: «Olha, tenho de ser sincera contigo, já não aguento mais. Estou apaixonada por outro e vamos casar». A dor no estômago, que o atormentava há já tempos, aumentava abruptamente. Era agora uma úlcera nervosa ou não. E a vergonha caía-lhe em cima mais pesada que todas as mochilas do batalhão. Voltar, para quê? Ou, então, passar a olhar todas as mulheres ‒ brancas ou negras ‒ com a moralidade daquela em que acreditara: umas putas! E isso, se passasse, só passava muitos anos depois.

Houve aqueles que calavam vinganças, sofrimentos, recalcando silêncios, mas, quando se deitavam, à noite, ao lado da mulher sacrificada pela guerra, dormiam com ela e com a desconfiança de uma, duas, várias infidelidades do tempo em que, em África, fizeram a guerra, no mato ou na cidade.

 

E quantos casamentos acabaram lá, nas colónias, quando eles, oficiais ou sargentos, levaram as esposas e as tinham de deixar na cidade, na messe ou no apartamento alugado, quando iam de marcha para o mato, ao encontro com as minas e as emboscadas? Quantas, ou consumidas pela saudade ou pelo medo e, acima de tudo, pela solidão, aceitaram romances imaginados que, na cabeça do atrevido, não passavam de mais uma aventura? Quantas impuseram um regresso antecipado, para acabar um casamento destroçado?

 

E tudo isto poderia ter acontecido sem haver guerra, mas tudo isto aconteceu porque houve guerra colonial.

Tratando-se de dramas muito íntimos, estes amores destroçados, merecem um historiador cauteloso antes que os factos passem ao esquecimento ou os documentos desapareçam. Os anos que tenho ‒ com grande pena minha ‒ não me permitem nem me dão forças para meter ombros à tarefa; deixo a ideia esboçada nos seus contornos para jovens estudiosos e interessados no conhecimento das mentalidades ainda recentes se embrenharem neste emaranhado de sentimentos feridos e, com o recato e a ponderação que se impõe à História, contarem e explicarem como foi.

21.07.19

A guerra em África: PIDE/DGS


Luís Alves de Fraga

 

As ditaduras implantam-se com o consentimento tácito dos povos ‒ demorou tempo até eu perceber que assim é, mas, hoje, tenho a certeza do que afirmo ‒ embora subsistam, ao longo dos anos, apoiadas em mecanismos repressivos, em especial a propaganda, a polícia política e a censura. Foi assim, exactamente, que aconteceu em Portugal. Oliveira Salazar foi o “ponto de apoio” para a “alavanca” fascista; quem lhe deu “força” foi a Igreja Católica, as forças armadas e a pequena burguesia urbana desejosa de ordem nas ruas e travagem da inflação. A propaganda, montada na década de 30 do século passado, gerou, ao ditador, a auréola de “insubstituível” e de “salvador da pátria”. A polícia política teve mão livre para perseguir, encarcerar e conceber provas capazes de tribunais especiais determinarem longas penas de prisão para quem discordasse do sistema. Os não discordantes, pelo silêncio, pela apatia e ou pelo medo, tornaram-se em concordantes. Daí a longevidade da ditadura.

 

Mas, nas colónias, em especial nas do continente africano, o temor de conspiração contra a ditadura era quase nulo. Se algum receio houve, entre 1930 e 1960, foi da hipótese de uma declaração de independência “branca”, contudo, bastante remota, pois os grandes interesses coloniais estavam radicados em Portugal e a fixação de colonos europeus era altamente controlada para evitar estranhos apetites. Assim, a polícia política quase não existia, com actuação digna de qualquer nota, naqueles territórios. No entanto, com a eclosão das primeiras manifestações negras de rebeldia contra a ordem instituída, a PIDE instalou-se e organizou-se em Angola, Moçambique e Guiné.

 

Pode dizer-se, de forma simplista, que a sua actuação se orientou, com a eclosão da guerra, em dois sentidos: controlar as oposições internas contra a política fascista e desenvolver acções de espionagem junto dos movimentos de libertação.

 

A primeira, passou, também, por infiltrar agentes ou informadores junto dos grupos de exilados portugueses no estrangeiro. Para esta actividade terá contado com a ajuda de fugitivos já arrependidos e que passaram a “trabalhar” para a PIDE, relatando o que se congeminava entre os portugueses perseguidos e conspiradores. Um exemplo bem patente e evidente desta forma de agir foi o da movimentação que conduziu ao assassinato do general Humberto Delgado. Note-se que o antigo candidato à Presidência da República era tão ou mais perigoso para a ditadura do que a maioria dos restantes exilados por causa da sua espontaneidade e da falta de alinhamento com as sugestões do PCP, muito cauteloso quanto ao empenhamento de militantes seus em golpes sem grande margem de sucesso.

 

A segunda actividade da PIDE passou por infiltrar, próximo das cúpulas dos movimentos de libertação, informadores seus, o mesmo acontecendo no terreno, junto de grupos operacionais.

Em boa verdade, a polícia política trabalhou, em África, com agentes ou informadores autóctones que aderiram à propaganda do fascismo e ficaram imunes à acção das ideologias dos movimentos libertadores, prova evidente da tese de que a luta pela independência era política, esbatendo-se os contornos racistas e tribalistas da maioria dos defensores da autodeterminação dos povos colonizados.

 

Também é certo que, ao não se permitir que as informações militares e operacionais fossem conduzidas pelas forças armadas, os ideólogos do fascismo temiam a dispersão da obtenção de dados e, por conseguinte, que os militares viessem a perceber, no calor da acção, quanto estavam a ser utilizados como elementos de uma ideologia política e jamais como defensores da Pátria e dos seus interesses.

Estando o monopólio da informação nas mãos da PIDE/DGS isso indiciava que os militares, eles mesmos, eram suspeitos de traição ideológica. As forças armadas foram, na verdade, meros executantes da repressão levada a cabo pela polícia política em África, chamando a essa repressão “guerra”, quando, com muita coerência política, em 1961, Salazar a havia classificado como “acções de polícia”, como se pode ler nos jornais da época. Assim se evidencia a relutância do general Spínola ‒ um oficial notadamente fascista e identificado com o fascismo ‒, no pós 25 de Abril de 1974, em concordar com o desmantelamento da polícia política, apontando-lhe a utilidade em África; desmantelá-la era gerar liberdade para as forças armadas assumirem o papel político que, efectivamente, assumiram.

Foram estes “nadas” que não se explicaram aos Portugueses depois do golpe militar libertador e democrático, cuja compreensão teria facilitado o processo de democratização e de descolonização.

 

Nas colónias, em especial Angola e Moçambique, a PIDE/DGS levou a cabo, pelas suas próprias mãos, massacres de populações para reprimir a expansão da guerrilha, mas fê-lo sempre com a cobertura de contingentes militares, que, pelo menos, garantiam a segurança “externa” dos recintos onde os seus agentes actuavam.

Tudo isso foi “convenientemente” esquecido, tal como a acção dos agentes ou informadores que serviam de guias às colunas militares no mato, em zonas já fortemente controladas pela guerrilha.

 

A memória militar colectiva ainda tem grande dificuldade em aceitar que as operações bélicas nas colónias fizeram parte de uma “guerra suja”, que, de patriótica, pouco teve. Ser capaz de distinguir isto da grandiosidade do sacrifício dos militares quando andavam em combate é um exercício que exige liberdade política, coragem e isenção. Nem toda a gente a possui.

20.07.19

A guerra em África: censura da correspondência postal


Luís Alves de Fraga

 

Controlar a informação, quando um Estado está em guerra, é absolutamente natural, pois todo e qualquer dado permite, a uma razoável rede de espionagem, perceber as intenções do inimigo e, porque a guerra é um acto dialéctico, antecipar acções com vista a gorar os desejos do adversário.

Se aceitarmos como legítimo o conceito anterior, podemos concluir, de imediato, que o Estado Novo ‒ o fascismo português ‒ viveu sempre em estado de guerra, pois fez da censura, em todos os seus mais variados aspectos, o instrumento de controlo do “adversário”, talvez do inimigo, que era o cidadão comum com opiniões divergentes da “verdade” oficial.

No decurso da guerra colonial acentuou-se ‒ se é possível dizer ‒ ainda mais esse controlo, exercido agora sobre todos os que, de alguma forma, se manifestavam em desagrado, mesmo que ínfimo, com a política salazarista.

 

Seria compreensível que se instalasse uma censura prévia no seio das forças armadas, para evitar fugas de informação. Podia, até, assumir os contornos da que se usou na Grande Guerra: a correspondência ser lida pelo graduado respectivo, que a fechava, depois de ter ocultado o que devia ser reservado. Mas não foi assim que se fez. Essa função fiscalizadora era exercida por serviços especiais junto dos centros de tratamento e encaminhamento das cartas e encomendas. Não se conheciam as caras daqueles que abriam ‒ declaradamente, violavam ‒ a correspondência para a desviar do seu destino, se nela figurassem informações inconvenientes ao regular desenvolvimento das operações militares.

 

Mas, nesta guerra, atendendo à sua especificidade e aos fracos meios de espionagem, chamemos-lhe, estratégica dos movimentos de libertação ‒ porque seria aquela que colheria informações antecipadas dos movimentos militares ‒ o verdadeiro perigo não recaía sobre o conhecimento precoce daquilo que as tropas iriam ou não fazer, mas sim na corrosão da retaguarda e da vontade anímica do combatente. Este facto facilitava muitíssimo a actividade da censura postal de Portugal para as colónias e destas para Portugal e, também, entre elas. Facilitava, porque bastava vigiar a correspondência dos indivíduos previamente identificados como “subversivos” ou “politicamente suspeitos”. A partir da vigilância das cartas de um, a rede ampliava-se, dando origem a um simples jogo de paciências.

 

Julgo, não passa de uma atoarda maldosa acusar seja quem for de fornecer informações ao inimigo quanto aos movimentos das nossas tropas, pois, em regra, as operações de certa envergadura eram planeadas em segredo e só delas tomavam conhecimento os militares quando já estavam em movimento. E mesmo que soubessem com algumas horas de antecedência, a rede de transmissões dos guerrilheiros era tão fraca que, com muita dificuldade, a informação chegaria aos operacionais em tempo útil.

Tudo isto justificava que a censura postal seguisse os trâmites já indicados anteriormente. E, para reforçar esta hipótese ‒ porque não tenho ainda outra forma de olhar para a questão ‒ vou socorrer-me do relato de dois episódios passados comigo, na segunda comissão em Moçambique ‒ cidade da Beira ‒ logo nos meses de Abril a Junho de 1973.

 

Mal cheguei à minha unidade ‒ Batalhão de Caçadores Pára-quedistas n.º 31 ‒ expedi uma carta, começada a escrever ainda em Lisboa, endereçada à direcção do jornal “Expresso”, para ser publicada na secção dedicada aos leitores. Acompanhava-a um cartão de visita meu, com algumas palavras para Pinto Balsemão. Nela, se a memória não me falha, de acordo com as limitações impostas pela Censura, defendia que a defesa das “Províncias Ultramarinas” devia ser feita até ao limite do aconselhável e possível de suportar pela Nação, tendo, depois, de se escolher o momento para negociar a independência ou entrega aos movimentos de libertação, tal como tinha acontecido, no reinado de D. João III, quando se decidiu sair das praças fortes do Norte de África, desistindo de um esforço inútil e custoso para os cofres da coroa.

 

Como se comprova pela consulta do processo de Pinto Balsemão na PIDE/DGS, de Lisboa, a minha carta e o cartão de visita foram fotocopiados e remetidos pela delegação daquela polícia política para a sede em Lisboa. Ou seja, porque me escrevi com um cidadão alvo de vigilância policial, passei a estar referenciado pela PIDE/DGS da cidade da Beira (pode verificar-se, as linhas gerais do que relato, por simples consulta na Internet).

Admito que eu, antes deste episódio, não estivesse identificado pela famigerada polícia. Todavia, a carta para Pinto Balsemão deve ter sido o rastilho para o que se seguiu.

 

Sem certeza quanto a datas, em Abril ou Maio, talvez começo de Junho, escrevi uma longa, muito longa, carta, em papel de avião, para o meu pai, relatando com muitos pormenores, o massacre de Wiriyamu, perto de Tete. Fi-lo, por me ter sido contado por um médico da Força Aérea ‒ capitão Simões ‒ a prestar serviço no hospital daquela cidade do interior de Moçambique. Ou seja, o meu relato estava muito próximo das fontes de primeira mão, pois o clínico encontrava-se junto do director do hospital quando este foi avisado, por uma freira-enfermeira, da chegada dos primeiros feridos à cidade com a indicação de haver mortos pelo caminho.

Em Portugal, Marcelo Caetano negara, na televisão, em uma das suas célebres “Conversas em Família”, a existência de qualquer povoação com o nome de “Williyamu” ‒ os negros daquela zona não pronunciavam os erres e trocavam-nos por eles ‒ bem como de qualquer massacre.

 

Porque a carta, dado o seu volume, não cabia em um só envelope, dividi-a por dois sobrescritos e meti-a na caixa do correio do aeroporto da Beira. Nenhum deles chegou à mão do destinatário.

Porque o meu pai também era militar, para confirmar a vigilância e abertura da minha correspondência, pelo correio militar e oficial, alertei-o para a necessidade de observar bem os sobrescritos e ver se apresentavam sinais de violação. Todos eram abertos de modo fácil de identificar. Eu estava referenciado na PIDE/DGS, da cidade da Beira, e assim fiquei até ao 25 de Abril de 1974; um ano para me “fazerem a folha” com a agravante de que colaborava com jornais de província portugueses e na emissora local tinha um programa de política internacional.

 

Afinal, tudo terá, julgo eu, começado por uma carta remetida a alguém já alvo de observação pela polícia política, justificando a minha hipótese quanto ao funcionamento da censura postal.

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