Um Estado e dois Presidentes
Já aqui me referi, sem grande comprometimento, à situação venezuelana. Vou voltar ao assunto para evidenciar estranhas posições tomadas por representantes de Estados do continente americano e europeu.
Para começar, vou relembrar o que se entende por soberania de um Estado: é a não aceitação, na ordem externa, de poder superior ao seu e, na ordem interna, de poder igual ao seu. Por vezes, os Estados, em certas circunstâncias bem definidas, aceitam abdicar de parte, plenamente identificada, da sua soberania, para se associarem com outros Estados em organizações supranacionais; é o caso, por exemplo, da União Europeia.
A Venezuela é um Estado soberano e, como tal, não tem que aceitar imposições de outros Estados. Se assim acontecer está a colocar em causa a sua soberania, na ordem externa. Estranho é que outros Estados tenham intimado o Governo venezuelano a aceitar como “legítima” uma revolta, que vai contra o conceito de soberania, na ordem interna.
Ao entramos – nós comunidade internacional – por estes caminhos, ocorre-me fazer uma série de perguntas:
⸺ Qual o motivo de nenhum Estado, até agora, ter contestado as eleições nos EUA, que colocaram na presidência um agressor potencial dos direitos humanos?
⸺ Qual o motivo de nenhum Estado ter contestado as eleições brasileiras que deram a presidência a um potencial ditador, racista e homofóbico?
⸺ Qual o motivo de nenhum Estado contestar a governação chinesa ou russa ou norte-coreana ou polaca?
Percebe-se que, ao deixar as perguntas anteriores sem resposta, estou propositadamente a provocar o desequilíbrio na argumentação de quem acha correcta a ingerência nos problemas políticos de Estados fracos ou depauperados.
Melhor dito, a relação internacional entre Estados é determinada por uma forte carga de cinismo, porque se desrespeita, em relação aos outros, aquilo para que se exige respeito, por parte dos outros. A relação internacional é uma relação de força e dita a norma aquele Estado que tem mais força (económica, financeira e ou militar).
Na Venezuela – função de interpretações diferentes da Constituição – existem dois presidentes da república. É um problema venezuelano. E não se reivindique o desrespeito pelos direitos humanos, porque se está, cinicamente, a usar de um meio para interferir, sem a legitimidade do Direito Internacional, na soberania daquele Estado americano.
No palácio das Necessidades, em Lisboa, deveria ir-se com grande cautela neste assunto, porque temos pouca força para garantir, por todos os meios ou usando de todos os meios, a nossa frágil soberania.
Pessoalmente, é me indiferente que na Venezuela seja presidente o senhor Maduro ou o senhor Guaidó. O que me preocupa é a aceitação de precedentes que possam ser utilizados contra a nossa já fraca e dependente soberania.