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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

31.12.14

Réveillon em família


Luís Alves de Fraga

 

Não sei há quantos anos se passou a história que vos vou contar, mas foi há muitos, muitos mesmo. Eu era bem pequeno, contudo, atento a todos os pormenores, nunca mais me esqueceu da festa familiar de fim de ano.

 

O meu tio, irmão da minha mãe, “obrigou” os meus pais a fazer o réveillon em casa dele. Morava na Praça da Armada, num apartamento pequeno, o da sogra, com a mulher e o meu primo quase ainda bebé. A mãe da minha tia, a D. Hortense, era uma senhora prendada com todos os saberes das mulheres do final do século XIX, mas a sua maior e melhor “arte” era a da culinária onde, para além de fazer maravilhas com um orçamento bastante apertado, porque os tempos eram de guerra e de racionamento, concebia uns pitéus de lamber os dedos e uns doces onde o açúcar parecia multiplicar-se na farinha e nas gemadas. Claro que, como todo o ser humano consciente das suas virtudes, não se permitia descuidos ou imprevistos quando de volta dos tachos, panelas e formas de bolos e pudins.

 

O jantar começou em hora já tardia, pois tinha de se arrastar um pouco para além da meia-noite, dada a razão de ser do mesmo. A mesa estava farta e a sala, ainda que apertada, jorrava luz e havia um esplêndido odor a comida que começava na porta da rua, perto da cozinha, e enchia o ambiente onde nós, os mais pequenos, nos divertíamos em brincadeiras inocentes.

Depois de sentados, a memória já me falha, deve ter sido servida uma canja, pois, naqueles meios e tempos, ainda não havia o costume de iniciar a refeição pelas entradas. Canja, quase pela certa, de peru, com os saborosos “miúdos” rodeados de estranhas figuras amarelas feitas pela gordura derretida do animal sacrificado para o momento.

Depois, foi a vez do peixe – então sempre fresco, porque não se usavam sistemas de congelação – provavelmente assado no forno de lenha rodeado das batatas e da abundante cebola para lhe dar o sabor já apurado pelo vinho de qualidade com que se regava o manjar.

O meu pai, que então, sendo magro e elegante, comia com grande prazer e falava ainda mais, recordo-me, ia fazendo as honras às vitualhas, proclamando as virtudes da cozinheira que, com aquele ar de falsa modéstia, respondia, com um sorriso de contentamento na face:

— Senhor Fraga olhe que isso é bondade sua! São comidas banais… coisinhas simples!

Em seguida, com parte do estômago já forrado, os convivas viram chegar o peru trinchado e pronto a ser devorado com o seu recheio de castanhas. Recordo, cheirava bem! E o meu pai falava, falava sobre tudo, porque tinha o dom de conseguir fazer conversa interessante para todo o tipo de audiências, e ia comendo a suculenta carne dourada daquele animal já então comum nas mesas natalícias. Falava e, tal como em certos pratos, entremeava o discurso, escutado com atenção, com elogios às qualidades culinárias da D. Hortense, que o olhava deleitada, enquanto inclinava a cabeça em jeito de vergonha. E, retirados os destroços do peru, chegou a vez dos doces. E quem não gosta dos doces caseiros, com aquele paladar de outros tempos?!

O meu pai, se estimava um bom pitéu, perdia-se por um doce que fizesse jus ao açúcar! E esclarecia que tal perdição se devia a carências, de um qualquer tipo que não lembro, na fórmula do seu sangue. E a D. Hortense, conhecedora desse fraco do meu pai, lá veio com um pudim concebido especialmente para o senhor Fraga! Claro que sobrou para os restantes comensais, mas quando já nada sobejava na travessa ou prato, o meu progenitor saiu-se com uma exclamação de tristeza:

— Que pena ter-se acabado!

Foi então que a D. Hortense, rendida a tantos elogios, mas inundada do pudor de toda a boa cozinheira, deixou escapar uma explicação que ficou histórica:

— Há lá dentro outro, mas desmanchou-se quando o desenformei!

Os olhos do meu pai, homem para ter feito, havia poucos dias, trinta e seis ou trinta e sete anos de idade, riram de alegria e a frase foi espontânea:

— D. Hortense, que venha o pudim desmanchado que eu lhe dou forma no meu estômago!

E o pudim veio e marchou, entre aplausos da família, em abundantes colheradas, para onde o meu pai lhe reservara o destino.

 

Foi há tantos anos este réveillon de família! Todavia, nos que sobram vivos do repasto, e já não são muitos, continua fresca a lembrança do pudim desmanchado, que teve um final tão feliz como se se tivesse mantido hirto e escorreito de acordo com a vontade da D. Hortense.

25.12.14

Idiossincrasia e cultura nacional


Luís Alves de Fraga

 

 

Cada vez que olho para o mapa da União Europeia (EU) tento encontrar os pontos comuns entre os Estados, para além das fronteiras. Só numa perspectiva histórica sou capaz de achar alguma comunhão, recuando ao domínio da Roma imperial sobre uma vasta Europa seguido do domínio da Roma católica. Sucessivos no tempo, impuseram, por um lado, super-estratos linguísticos e, por outro, fórmulas éticas comportamentais suportadas por ritos religiosos. Dominante, mesmo, é a geografia física e a forma como os povos souberam superá-la. Neles, e por eles, foram construídas culturas veiculadas, em alguns casos, pela língua romana depois de deformada pelos falares locais. Os arranjos políticos, resultado da ganância senhorial, das desavenças religiosas e das guerras devastadoras, foram desenhando os contornos que hoje definem os espaços estaduais. Mas há uma realidade que se sobrepõe à vontade de todas as políticas, de todos os conflitos, de todos os arranjos diplomáticos: a cultura característica de cada Estado, quase sempre determinante de uma nação ou de várias em coabitação difícil.

 

Se o veículo fundamental de uma cultura é a língua, outros há que são quase tão imutáveis quanto aquela. As crenças religiosas estão nesse domínio, mas outros irei referir neste apontamento, tais como velhos hábitos xenófobos, racismos, comportamentos sociais e, até, comportamentos económicos. Olhemos, dentro do quadro europeu, para os que citámos, tentando fugir aos estereótipos.

 

A língua pode ser comum — caso da França, Bélgica e Luxemburgo — e, todavia, haver diferenças abismais nos comportamentos. Assim, sendo um processo de entendimento fácil não é, como pode parecer, absolutamente determinante na cultura. O obstáculo a tal determinação vem da História! Estados com a mesma língua mais facilmente têm em comum elementos de separação do que de união, pois, por trás de um mesmo falar, estão vontades de autonomias políticas, que se tornaram desejos de independência. A hegemonia globalizante do idioma inglês não está a gerar nem semelhanças políticas nem culturais, no mundo. Não chega falar a mesma língua! É necessário que haja uma identidade de interesses para que se verifique uma aproximação cultural.

 

Na Europa há uma clara clivagem entre os Estados culturalmente identificados com a religião católica romana e os de religião chamada protestante. Dir-se-á, estou a calcular, que, cada vez mais, as práticas religiosas estão fora dos confrontos entre os europeus! E, aparentemente, diz-se uma verdade. Contudo, já não é o fervor prosélito o factor determinante dos desentendimentos culturais, mas antes o que resulta de se ter sido criado e educado numa sociedade que tem como suporte uma ou outra prática religiosa. São elementos muito mais subtis do que o frequentar este ou aquele templo ou, até, não frequentar nenhum, que passam para os comportamentos individuais e, destes, para os colectivos. No instante supremo, no momento da grande aflição, no derradeiro sopro entre a vida e a morte, o que, no plano religioso, vem ao encontro do ser humano em desespero são os ritos e as palavras aprendidas na sociedade e, principalmente, na família e no seio materno. Isso é cultura. E isso pode ser elemento de desagregação ou de união. Repare-se no recente exemplo da Jugoslávia e não se alimentem razões para justificar que as comunidades antes pacíficas se tornaram inimigas e agressivas por motivos alheios ou para satisfazer interesses de terceiros. Se não existisse o germe da diferença cultural a chama do ódio com muita mais dificuldade se teria acendido.

 

Na ordem do dia, na Europa, cada vez mais se ateiam velhos conceitos contra os estranhos e diferentes. Basta que a austeridade se imponha aos nativos e de imediato surgem as garras da xenofobia e do racismo, porque a União está pejada de estrangeiros e de “dissemelhantes” e sobre eles recai a fúria dos que, vivendo dificuldades, vêem nesses grupos a culpa do seu mau passadio. E o que foi que falou mais alto? As diferenças culturais. Nelas radicam, também, os comportamentos sociais: um cidadão da Europa do Sul é bastante diferente, não só em questões de pormenor, na sua actuação quotidiana, de um outro da Europa do Norte. E não há transferências “erásmicas” (estou, como se compreende, a referir-me ao programa de mobilidade inter-estadual designado por Erasmus) que colmatem estas diferenciações, mesmo até entre cidadãos de Estados muito próximos. São valores que parecem não ter importância, que surgem só em momentos especiais, mas, nessas alturas, revelam o modo inconsciente como estão subjacentes às aparências. Aconteceu em Agosto de 1914, quando Jean Jaurés apelava a que os operários franceses não pegassem em armas contra os seus semelhantes alemães, e acontece sempre que for necessário. Stalin, quando quis mobilizar contra os exércitos alemães, não invocou a defesa do socialismo, mas sim a mesma entidade a quem os czares atribuíam valores superiores: a mãe Rússia.

É esse cimento que, durante séculos, na Europa, foi unindo os povos à volta de uma História, de uma bandeira, de um rei, de um território, que chamaram seu, de um modo de vida e lhes deu uma identidade pela qual morreram, lutaram e se afirmaram diferentes, é este cimento que a vontade política de uma elite residente nas diferentes capitais, em Bruxelas ou Estrasburgo, não consegue deslaçar em menos de uma centúria! Este cimento criou idiossincrasias, criou culturas nacionais, criou, até, comportamentos económicos distintos, gerando riquezas e misérias explicáveis com base em formas específicas de viver.

 

A União Europeia pode tentar o entendimento comum com base em acordos políticos, financeiros, orçamentais, aduaneiros, económicos, mas nunca poderá ultrapassar a barreira das diferentes culturas individualizadas por tudo o que separou os povos ao longo de séculos. Parafraseando o conceito bíblico, a União Europeia jamais conseguirá juntar aquilo que a História e os homens separaram.

 

20.12.14

Um pouco de economia


Luís Alves de Fraga

 

Todos nos lembramos do que aconteceu quando o euro se tornou moeda de circulação obrigatória e única em Portugal: os preços dos produtos mais vulgares dispararam. Houve um fenómeno inflacionário. Ninguém ficou satisfeito, pois os salários mantiveram-se na mesma, ou seja, converteram-se de escudos em euros ao câmbio estabelecido para a equivalência. No fundo, bem vistas as coisas, passou-se algo semelhante a um açambarcamento geral de produtos para lhes fazer crescer os custos.

A reacção, quase imediata, de todos aqueles que viviam dos salários resultantes do trabalho, foi exigir novos aumentos para fazer face aos novos custos. E assim iniciou-se o descalabro de uma forma suave, insidiosa e silenciosa. Vamos ver como?

 

As empresas aumentaram a custo os seus empregados, mas, porque tinham de manter as margens de lucro anteriores, tornaram a subir os preços, ou seja, geraram nova inflação; os melhores gestores procuraram substituir mão-de-obra por tecnologia – a aposta era mais rentável. O Estado, porque a pressão também sobre ele era idêntica, aumentou o funcionalismo público sem, todavia, se compensar num descarado aumento de impostos, tendo, assim, de optar por fazer crescer a dívida; era a forma de manter satisfeitas as empresas, tentando travar a inflação dos preços por força da reclamação dos trabalhadores, que viam reduzir a sua capacidade de compra. Mas nisto a banca detectou uma excelente oportunidade de melhorar, a longo prazo, os lucros e, se detectou, melhor executou: fez tornar o dinheiro barato, baixando as taxas de juro e dando facilidades de empréstimo a quase todo o “gato-sapato”. Fundamental era, para os grandes países produtores, que o mercado interno se “animasse” e as famílias comprassem, comprassem, mesmo que à custa de endividamentos sucessivos.

 

Mas o que é que se passava no mercado nacional e na economia portuguesa? Pois bem, algo muito simples: na impossibilidade de concorrer com a produção da Europa, transferiram-se, em força, todas as capacidades disponíveis para o comércio de importação. As margens de lucro poderiam não ser grandes, mas garantiam a sobrevivência num tempo de dinheiro barato. A produção interna e nacional ou estagnou ou baixou. A abertura aos produtos dos mercados europeus reflectiu-se no tecido produtivo português. A aparente prosperidade interna era isso mesmo: só aparente.

Por volta de 2005, 2006, começou a fazer sentir-se a necessidade de travar o buraco orçamental não só por causa do cumprimento dos acordos que a moeda única impôs, mas, essencialmente, por causa do descontrolo interno de uma inflação de que se não falava. E surgiu José Sócrates Pinto de Sousa a prometer milhares de empregos – a tecnologia introduzira a “vantagem” do desemprego – e a adoptar medidas que travassem o endividamento do Estado. Esta foi a primeira fase da situação!

E a segunda? Pois, a segunda ocorreu quando se deu o descalabro da economia de casino nos Estados Unidos da América. Na União Europeia não se sabia como reagir e as primeiras indicações foram no sentido de optar pela velha solução keynesiana de, sem olhar ao deficit, fazer funcionar, de qualquer modo, a economia, através do emprego público, de preferência nas aplicações de grandes obras. Assim se explica o interesse, em 2008 e até 2009, pela construção de um novo aeroporto de Lisboa e de lançar as linhas de TGV. Quando na União se percebe que essa via ia acelerar a desvalorização do euro, fazendo-o perder a razão máxima da sua existência – moeda de contra-ponto ao dólar, nos negócios internacionais – arrepiou-se caminho e impuseram-se medidas novamente de moderada austeridade, suportadas pelos PEC’s. E foi então que, os partidos de direita viram a sua oportunidade de cavalgar o poder e acelerar o processo de liberalização máxima da economia nacional – o que restava dela e que era absolutamente estratégico numa perspectiva de mercado global – e, com Ricardo Salgado à cabeça, vá de chumbar as soluções ditadas pela Alemanha e passar ao programa de assistência financeira o qual só teve uma alternativa: fazer igualar o consumo interno à capacidade produtiva interna. Deste modo, o colapso da falsa euforia económica assente em empresas que dependiam quase exclusivamente da importação arrastou ao colapso das empresas parasitárias, que, por seu turno, viviam da aparente euforia gerada pela economia de importação e crédito fácil.

Os partidos da esquerda continuaram coerentes – daí acompanharem, na prática, as posições da direita – pois sempre condenaram o que era evidente: a adesão ao euro e a falta de imposições fortes junto da Comunidade Económica Europeia (CEE) aquando da adesão àquele organismo.

 

Julgo que, de uma forma muito sintética e muito linear, expliquei, usando só os elementos essenciais, a “bomba-relógio” que foi a adesão de uma economia débil e já muito fragilizada à moeda única – o euro – sem prever as perversões que de imediato se iriam fazer sentir nas pequenas bancas do mercado do peixe, da carne, da hortaliça, do pão e nas pastelarias e botequins, nos cabeleireiros e barbeiros de bairro. Essa adesão mal pensada, porque distante da realidade da economia paralela – a única verdadeiramente rentável em Portugal – gerou o fenómeno de “açambarcamento” (entenda-se, inflação espontânea) cuja oportunidade lhe foi dada pelo próprio poder político ao querer agigantar-se sem a perfeita noção de que Portugal é um Estado sem recursos de fundo, nem grandes alternativas industriais.

18.12.14

Os sonhos também morrem


Luís Alves de Fraga

 

Contra-almirante Vitor Crespo.jpg

 

Era começo de Maio de 1974 quando o conheci na Base Aérea n.º 10, na cidade da Beira, em Moçambique. A tez amarelada e o ar cansado levaram-me a pensar que se tratava de um homem próximo do fim. Afinal, Vítor Crespo só morreu quarenta anos depois.

Regressou a Moçambique já graduado em contra-almirante e investido na função de Alto-Comissário, Chefe do Governo de Transição e Comandante-Chefe das Forças Armadas locais. Era um homem tranquilo que acreditou ser possível fazer a transferência de poderes da Administração portuguesa para a FRELIMO sem grandes sobressaltos. Todos nós acreditámos. Joaquim Chissano, um verdadeiro diplomata, um homem que assegurava a transição por parte da FRELIMO, tinha, para além de uma postura tranquila, um discurso pacificador. Ele e Vítor Crespo formavam uma dupla na qual os menos exaltados colonos de Moçambique, parecia, podiam confiar. E, durante alguns poucos meses, começou a crescer o sonho do nascimento de um novo país africano, que não sofreria significativas alterações. A estrutura do MFA (Movimento das Forças Armadas) acreditava que podia confiar em Chissano e em Vítor Crespo. Mas o grande furacão surgiu quando deu entrada no Norte de Moçambique Samora Machel. O seu discurso inflamado foi ateando o fogo do medo e da instabilidade por onde passava. Machel e Chissano eram completamente diferentes e o Poder decisório estava na mão do primeiro e só ilusoriamente na do segundo. Chissano foi o sonho bom de Vítor Crespo e Machel o pesadelo que, ao chegar a Lourenço Marques (Maputo), já havia acordado, quase pela certa, o almirante Crespo de todo o torpor em que a delicadeza e a simpatia de Chissano o haviam adormecido.

Um ano depois de Abril de 1974 já não se tinha dúvidas sobre as mudanças radicais que se iam operar na sociedade moçambicana. O sonho tinha acabado. Havia só que minimizar os estragos! Vítor Crespo não podia fazer o discurso do pânico; tinha de dizer o que era esperado dizer de alguém que representava o Governo de Lisboa.

 

Depois do regresso a Portugal continuou empenhado na evolução do processo democrático nacional e tornou a sonhar com um país novo, construído na base de uma pluralidade de vontades e uma honestidade de princípios. Os anos vieram acordá-lo para a triste realidade de hoje.

Depois de regressado ao serviço na Armada, quando os militares acharam que a política e os políticos tinham atingido maioridade e não careciam da tutela das armas, foi promovido a contra-almirante e por aí ficou, sem cargos de confiança nem de destaque, que a sua competência garantiam. Foi mais um dos muitos que, por razões ocultas da política nas Forças Armadas, marcou passo. Ficou como director da Biblioteca da Marinha até atingir o tempo necessário para se retirar do serviço activo.

 

Morreu, ao cabo de quarenta anos sobre a revolução em que tomou parte activa, o almirante Vítor Crespo e com ele estão a morrer os últimos sonhos e os últimos sonhadores de um Portugal democrático, pacífico, e próspero. Estão a morrer os Homens de Abril de 1974.

Quero crer que, se os animais vão para o céu, também lá haverá lugar para gente generosa, que sonhou poder construir países onde, no “mercado da cidadania” a moeda corrente fosse a honestidade subdividida, para fazer os “trocos”, em tolerância.

 

14.12.14

O tempo histórico: Uma reflexão teórica


Luís Alves de Fraga

 

Um dos conceitos que mais confusão faz em História é o do tempo!

Curiosamente, o trabalho do historiador situa-se sobre o tempo; o tempo e os factos ocorridos no tempo. Cronos domina a História, mas são os factos que se transformam em elementos mais determinantes da confusão. Tentemos olhar para estas duas vertentes do problema: tempo e factos.

 

Os factos na História ganham importância e relevo, pelo menos, de duas maneiras: ou, porque estão muito bem documentados, ou, porque foram determinantes, num exacto momento, para uma conjuntura específica. Mas os factos são uma função de uma outra variável: a vontade de quem os relata. Por seu turno, esta depende da importância social ou política que, na época da ocorrência, se lhes deu ou adquiriram posteriormente. Assim, estamos quase num círculo que se justifica por si próprio e é sustentado pelas razões antecedentes.

Para se perceber uma parte desta multiplicidade de ligações, atentemos num exemplo.

 

No plano meramente político e social da História Romana, a vida, a condenação à morte e a própria morte de Jesus, passou despercebida dos historiadores da época. Roma omitiu a morte do Filho de Deus! Ou melhor, os historiadores romanos coevos não acharam realce nesse acontecimento de tal forma que dele não deixaram referência significativa. A vida de Jesus foi, para a História de Roma, um não facto ou um facto insignificante. Jesus ganha importância, não porque a tivesse tido como acontecimento digno de ser realçado na História da Sua época, mas porque gerou um movimento de massas que Lhe consolidou a existência, Lhe deu notoriedade e Lhe conferiu, acima de tudo, perenidade. Jesus não foi, por si só, um marco histórico; passou a sê-lo em função do movimento religioso que desencadeou, em especial, depois da Sua morte. E deve-se essa memória aos Evangelhos — a alguns, que Lhe criaram uma imagem e um contorno imposto pela Igreja Católica, que Lhe deu projecção, pois, parece, outros terão sido silenciados escamoteando-os da História — tornados eles mesmos factores e factos históricos. E tão forte e tão divulgada tem sido a vida de um Homem morto aos trinta e três anos de idade, o qual, no seu tempo, não teve relevo histórico, que Jesus vive no presente e sentimo-Lo com extraordinária actualidade, chegando a haver momentos em que esquecemos a passagem de dois mil e catorze anos para nos catapultarmos a uma época da qual quase mais nada se sabe, para além dos relatos históricos deixados por quem a estudou fora do contexto do facto religioso.

Não fosse a História e a sua infinidade de relatos, teríamos hoje uma noção de ausência de tempo entre o ano primeiro de vida de Jesus e o momento de agora. E não se julgue que estamos a estabelecer um exagero! Atente-se na vida dos monges em clausura! Para eles o tempo parou há cerca de dois mil anos e mergulham numa História que é, por ela mesma, o quase começo e o fim da História. Quantos de nós, em criança, ao ler os relatos da vida de Jesus, não sentimos o desejo de recuar àquele tempo para poder ter sido uma testemunha daquela vida?! Isso configura, exactamente, a imposição dos factos ao tempo, anulando-o. Mas, por estranho que pareça, a inversa também é verdadeira, ou seja, o tempo faz desaparecer os factos históricos, reais e comprováveis documentalmente. Atentemos noutro exemplo.

 

Olhemos para a presença islâmica na Península Ibérica. Quando estudamos este tempo ele é pouco mais do que exíguo. Surge-nos como uma breve passagem de povos vindos do Norte de África que rapidamente foram expulsos através da gloriosa acção da “Reconquista” (assim, escrita com maiúscula inicial!). Os Mouros foram um episódio na História da Península! Só alguns historiadores, trânsfugas de uma verdade histórica, se deram ao trabalho de explicar exaustivamente essa presença sem que, mesmo assim, conseguissem alterar um tempo rápido de islamização. Ora, a questão que se coloca é muito simples: não houve factos merecedores de figurarem na História da Península durante essa aparentemente fugaz presença islâmica? E que quantidade de fugacidade foi essa? Mas essa transitoriedade não foi, realmente, pequena. Consideremos datas: se Tarik passou o estreito de Gibraltar em 711 e se, no caso português, a última parcela de território a ser conquistada foi o Algarve em 1249, no caso espanhol esse fim islâmico na Península só aconteceu em 1492. Temos, por conseguinte que, no lado nacional, podemos assinalar presença e coexistência de duas culturas durante um pouco mais de quinhentos anos. Tanto como o tempo que passou entre Álvares Cabral chegar ao Brasil e a época presente. E não há nada para contar destes quinhentos anos?!! Coisa estranha! O tempo, por falta de factos, parece que encolheu! Parece que o domínio islâmico se reduziu a uns dias, quiçá, uns anos e poucos!

Quem encolheu o tempo que nos separa de Jesus e da presença islâmica em Portugal? Mas, por um lado, a História do cristianismo, desde Jesus até hoje, é riquíssima em factos que a preenchem e, por outro, a História do islamismo em Portugal é quase vazia de acontecimentos. Como será possível que situações aparentemente diferentes possam gerar sensações semelhantes?

Outros exemplos se podem colocar para se perceber a relação confusa entre História e tempo ou História e factos no tempo. Vejamos três casos paradigmáticos.

 

Na História do Estado Novo, à custa de se denegrir a 1.ª República, exaltando factos reais e omitindo outros, conseguiu-se essa coisa espantosa que foi dar, de dezasseis anos incompletos, a ideia de um longo período de desordem em Portugal. Ainda hoje, quem lê descuidadamente sobre aquele período tem dele uma percepção de tempo maior do que os reais quinze anos e meio que vigorou. Outra armadilha da História ou do tempo na História é o da duração da ditadura imposta e aceite em 1926 e que, para muitos, se confundiu com a mão pesada de Salazar a qual, de facto, só esteve pousada sobre a cabeça dos Portugueses quarenta anos (1928-1968), parecendo imenso tempo. Tanto que não se iguala na escala aos quarenta que levamos de regime democrático! A exaltação do dia 25 de Abril de 1974 — um só facto maior na História de Portugal — parece trazê-lo até nós como coisa do presente.

 

E que conclusão se pode tirar destas sucessivas ilusões históricas, destas aparentes mudanças de escala cronológica quando falamos de milhares de anos ou mesmo de uma mera dezena e meia de primaveras?

Por me ter debruçado longamente sobre esta temática creio que só uma situação justifica as desconformidades que distorcem o tempo na História: os interesses postos em jogo pelos grupos que determinam a opinião histórica, e esta, por seu turno, é sempre veiculada pelos historiadores sensíveis e susceptíveis de aceitar os ventos dos interesses sejam políticos ou religiosos ou, mais modernamente, financeiros. Assim a História é uma teia de Penélope que cada época, cada regime e cada interesse desfaz para fazer novamente. Deste modo o fazer da História não tem fim!