Os "donos" dos hospitais militares
Recordo-me de, quando era muito menino, a figura central do Hospital de Marinha ser a do Senhor Fiscal. Era um segundo-tenente do Serviço Auxiliar oriundo da classe de sargentos enfermeiros. Não sei, com exactidão, quais as funções que desempenhava, mas sei que mandava na enfermagem e que os enfermeiros eram os elementos de maior suporte do Hospital. Havia o médico de serviço ao banco, mas todos os restantes, depois de cumprido o horário, retiravam-se para os seus consultórios onde completavam os ordenados de oficiais de Marinha. O Hospital ficava entregue aos enfermeiros de vela!
Vem esta recordação ao caso, porque, entre nós, se falou de saúde militar, esquecendo o papel fundamental dos enfermeiros nesse complexo que está presente em todas as situações em que o militar ou a sua família carece de serviços sanitários, desde o hospital até à tenda de primeiros socorros em campanha. O enfermeiro já não é o tipo que só sabe fazer pensos e dar injecções e cumprir sem perceber as ordens do médico! O enfermeiro é, cada vez mais, um precioso auxiliar deste, porque está em permanência à cabeceira do enfermo e sabe, e deve, transmitir ao clínico as alterações que exigem a sua intervenção. Hoje em dia não é enfermeiro quem quer, mas quem tem vocação. Isso mesmo já o meu pai — enfermeiro da Armada — afirmava, em 1944, no Arquivo do Enfermeiro, n.º 11, do mês de Março, nas páginas 19 e 20, num artigo intitulado “Posso ser enfermeiro? Considerações sobre a orientação na escolha da profissão” citado por Ana Isabel Silva, na obra A Arte de Enfermeiro: Escola de Enfermagem Dr. Ângelo da Fonseca, editada pela Imprensa da Universidade de Coimbra no ano de 2008. Há setenta anos ele preconizava testes psicológicos de selecção vocacional.
O enfermeiro militar é o elemento de saúde de primeira linha: ele está entre as tropas de assalto tal como no hospital de retaguarda; ele faz o primeiro diagnóstico e indica o primeiro socorro. A saúde militar não é só um assunto de médicos e de altas patentes militares. É um tema que tem de ser discutido de raiz e nela está o enfermeiro.
Os hospitais, para serem o que se pratica ainda em alguns países, deviam ter uma direcção clínica e uma direcção funcional; ocupava-se da primeira um médico, porque a sua competência se orienta para a acção terapêutica, e, da segunda, um enfermeiro devidamente habilitado, porque a sua acção se orienta para a subsistência da instalação e dos seus ocupantes na ausência do médico; é ele quem sabe quantos e quais os meios necessários à boa gestão técnica e funcional da unidade hospitalar. Claro que pode haver um administrador, mas esse só lida com as disponibilidades financeiras e um hospital é muito mais que uma questão de dinheiro!
A saúde militar não se confina ao tempo de paz e ao hospital e, neste, aos doentes internados, às consultas externas, aos militares no activo, na reserva e na reforma bem como às suas famílias; o hospital é a unidade de recuperação na retaguarda para quem se entrega ao esforço do combate; é o local onde se concentram diligências para tratar todos quantos já receberam os primeiros apoios nas unidades de saúde da frente; mas é também o estabelecimento onde, pela diversidade de enfermidades que por lá passam, dá experiência ao pessoal para alcançar conhecimentos e treino que só beneficia os mais carenciados de cuidados clínicos. E neste treino é angular a figura do enfermeiro que, muitas vezes, colmata silenciosamente as falhas do médico ou o auxilia dando-lhe o apoio nas decisões a tomar.
É tempo de, entre nós, ao enfermeiro militar ser reconhecido o seu papel fundamental na saúde, tanto quando empenhado em operações e treinos no campo como, especialmente, dentro do hospital. Há hierarquias técnicas e hierarquias castrenses e, na minha opinião, as primeiras não têm que estar subordinadas à rigidez das segundas, porque podem caminhar a par e passo, completando-se tal como se completam para cumprir o dever mais sagrado a ambos: salvar vidas e ajudar a morrer bem.