Ainda o Panteão Nacional
A Lei, qualquer Lei, e eu – não por lhe ser avesso, mas porque considero que ela só pode ter verdadeira aceitação se estiver em conformidade com a realidade social – estamos em constante conflito. Conflito, porque, para mim, prevalece sobre a Lei a legitimidade, pois só esta dá força àquela e a torna aceitável pela sociedade, só esta a justifica como coactiva e coerciva. Ora, se assim é para mim, naturalmente procuro em cada momento identificar os traços legitimadores da norma que me é imposta, ou seja, busco-lhe os fundamentos sociais que lhe servem de alicerces, interpreto-a, interrogo-a, escalpelizo-a, de forma a perceber a relação entre a sua letra e a sociedade que a tem de cumprir. E, meu Deus, quantas Leis há por aí que são tão desconformes!
Vem este arrazoado a propósito do que diz a Lei n.º 28/2000, de 29 de Novembro, sobre as condições de “entrada” no Panteão Nacional. E o que diz o n.º 1 do Art.º 2.º?
Destina-se o Panteão Nacional a «[…] homenagear e perpetuar a memória dos cidadãos que se distinguiram por serviços prestados ao país, no exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade.»
Analisemos esta prosa gramaticalmente escorreita cheia de lugares comuns. Vejamos o que efectivamente se define e como se define.
“Serviços prestados ao país”! Se por país se entender somente o espaço geográfico demarcado pelas fronteiras, convenhamos que é uma péssima definição, mas se formos generosos e aceitarmos que o legislador quis dizer Pátria ou Nação podemos deixar passar esta expressão sem reparo maior do que aquele que agora lhe fazemos!
Contudo, andemos para a frente e vejamos quão pouco erudito, conciso e claro foi o legislador!
Logo de seguida vêm duas outras graves imprecisões: “altos cargos públicos” e “altos serviços militares”! O que é isto de “altos cargos” e de “altos serviços”? Nesta disposição cabe tudo o que se quiser e todos aqueles que, em dado momento, nos der na real gana! Um alto cargo público pode ser o de Presidente da República como o de presidente da câmara municipal mais modesta da nossa realidade administrativa! E mais vaga ainda é a expressão “altos serviços” aplicada aos militares! Alto serviço é o do general que comanda tropas ou o do soldado que morre no seu posto de combate?
Continuemos.
“Expansão da cultura portuguesa”.
É aqui que o legislador se baralha e mostra a sua ignorância, os seus preconceitos, o seu desconhecimento das mais elementares matrizes científicas! O que entende ele por cultura? O fado? O corridinho? A olaria tradicional? Ou a Língua, o Teatro, o Canto, a Literatura a par do artesanato? Escolheu, o legislador, o conceito de cultura na perspectiva do antropólogo, ou do sociólogo, ou simplesmente por ignorância? É que, logo de seguida, dispara de rajada vários disparates contraditórios se soubesse o que é cultura: “criação literária, científica e artística”! Meu Deus, que é isto?! O legislador terá acaso ouvido falar do nome, para citar só um, Jorge Dias? Ou, mais modernamente, António José Saraiva? O legislador só mostra ignorância cultural e científica ao escrever o que escreveu! Desculpem-me, mas o legislador é uma besta! Uma besta que estudou, provavelmente, Direito e muito mal! E continua a bolçar chorrilho de asneiras: “defesa dos valores da civilização”! Qual civilização? O que quer dizer quando usa tal vocábulo? Saberá o significado antropológico do termo? Ou ainda estará eivado dos conceitos anti-comunistas que opunham a “civilização ocidental” à do Bloco de Leste?
Senhores, como vedes, em tão poucas linhas diz-se tanta vulgaridade ao tratar de um assunto tão elevado como o que se refere ao Panteão Nacional! Mas, para rematar, sai-se ainda o legislador com mais dois lugares comuns: “dignificação da pessoa humana” (haverá alguma pessoa que não seja humana?) e “causa da liberdade”! No Estado Novo fascista também se defendia a “liberdade”!
Como se percebe, pelas interrogações que deixei expostas, o legislador não passa de um tipo comum que fundamentou o seu raciocínio em vacuidades, sem cautela e sem rebuço de dizer asneiras sobre asneiras ao tratar de um assunto excessivamente sério para um bestunto tão pouco erudito.
Assim, todos vão entrar pela porta grande do Panteão Nacional, até haver alguém de bom senso que encerre um lugar que devia ser sagrado como altar da Pátria.