O Chico
Na rua onde nasci – “a minha rua” – havia, um pouco antes da esquina, do lado esquerdo de quem a subia, um “restaurante” tipo taberna que pertencia a um homem, o Chico, que havia sido marinheiro da nossa Armada e, à força de muitos sacrifícios, tinha conseguido o dinheiro suficiente para tomar de trespasse a “casa”. Quando a freguesia era pouca – o que acontecia com muita frequência – lá vinha ele para a porta do estabelecimento dar conta do movimento e dois dedos de conversa a quem passava.
Vindo de cima, obrigatoriamente, tinha de passar à porta da taberna para chegar a casa. Habituei-me a cumprimentá-lo, não por o conhecer com intimidade, mas porque o meu Pai o fazia sempre, exclamando a meia voz: “Olá, Chiico. Como vai isso?”
Estão, por esta altura, a fazer cinquenta e dois anos, quando entrei para a Academia Militar, que ocorreu um episódio marcante e inesquecível. E é esse que vos vou contar.
Vencer barreiras na vida, superar obstáculos, alcançar sonhos, quando se tem vinte anos de idade, traz-nos um sabor muito bom e pode provocar alterações profundas no nosso comportamento se não tivermos quem corrija rumos com mão rija e segura.
Ser cadete e estar a preparar-me para, finalmente, conseguir o direito a usar os galões de oficial encheu-me o peito de uma vaidade que me tornou um sujeito ufano! Ufano de coisa nenhuma, pois cadete era ainda o caminho que tinha de percorrer para me profissionalizar militarmente. Mas aos vinte anos quem pensava nisso há pouco mais de meio século?
Ora, aos domingos, depois do “santo sacrifício da saída da missa” onde me ia expor para exibir a farda e tentar a “conquista” de algum coração feminino que andasse livre e gostasse de uniformes militares, descia eu a minha rua em direcção a casa dos meus pais e lá estava à porta do seu “restaurante/taberna”, vazio de clientes para almoçar, o Chico, antigo marujo da nossa Armada.
Bolas! Eu vinha fardado de cadete, garboso nas minhas botas altas de montar, hirto como convinha, mirar a direito, e, em vez de olhar para o antigo marinheiro, marcava um ponto distante lá no fundo da rua, e passava sem dizer palavra.
Um domingo, já o ano lectivo ia avançado, o meu Pai, primeiro-sargento enfermeiro da Armada, já na situação de reserva, à mesa do almoço, com a frontalidade que o caracterizava, disse-me, colhendo-me de surpresa: “Oh, menino! O Chico da taberna disse-me que já várias vezes passaste por ele e desvias o olhar para não teres de cumprimentar. O que é que se passa contigo?”
Sabem quando de repente se nos abre um buraco sob os pés e desconhecemos em absoluto como nos salvarmos de uma situação? Pois foi isso mesmo que eu senti naquele momento! A comida não ia para baixo no esófago nem as palavras convenientes me saíam pela boca fora! Depois, depois, cobardemente, menti: “Nunca reparei no Chico, Papá!”
Fez-se o silêncio com que o meu Pai gostava de castigar-me e, com voz calma, disse-me: “Pois então passa a reparar! Os galões que ainda não tens não te caem na lama se o fizeres! E, quando os tiveres – se algum dia o conseguires – eles ganham brilho e deixam de ser símbolo da miséria dourada em que vivemos, se souberes cumprimentar todos, em especial os cidadãos honrados e que ganham a vida com o suor do seu rosto!”
Já não me lembro, mas acho que o almoço me caiu muito mal no estômago, porque a frase do meu Pai me caiu bem demais na consciência!
Passei a cumprimentar o Chico do “restaurante/taberna” da minha rua e todos os Chicos que ao longo da minha vida fui encontrando nas ruas que cruzo, agora já sem a altivez balofa dos vinte anos, mas com a certeza de ser dono de todas as incertezas que a idade nos vai dando.
Não sou eu que sou assim! O meu Pai é que era assim!