O vendedor
Vivo no último andar de um prédio alto com elevadores. Na escada, no patamar de entrada, encostado à parede, ao lado da porta, de modo a não incomodar ninguém, tenho por hábito colocar objectos velhos que ou se destinam a seguir para a arrecadação, na cave, ou para o lixo, na rua. Há dias, coloquei lá um tapete de média dimensão. Tem algumas nódoas, mas nada que, com jeito, não se tire. A minha mulher havia-se desgostado de o ver na divisão da casa para a qual foi comprado.
Ontem bateu à minha porta um daqueles vendedores que começam por fazer um pequeno inquérito para, depois, nos convencerem da possibilidade de adquirirmos os produtos que representam. No caso, eram livros. A minha mulher abriu e eu deixei-me ficar por trás da pesada porta, pois, nestes tempos conturbados, há quem tudo faça para assaltar uma residência. Ao ouvir o repetido e estafado discurso lembrei-me da minha infância, quando ganhar o magro pão de cada dia era obra para os mais persistentes, lembrei-me, dizia, dos vendedores de obras literárias então famosas – “Os Miseráveis”, de Victor Hugo, por exemplo – sob a forma de folhetins semanais. À porta de casa dos meus pais batiam com muita frequência esses incansáveis lutadores. Ainda tenho, na biblioteca, um desses volumes, posteriormente mandado encadernar pelo meu Pai.
A minha mulher ouviu o vendedor, homem de mais de quarenta anos, com ar de quem já teve melhor emprego do que aquele, possuidor de uma mediana cultura literária, e, mais para o ajudar – pois ganham à percentagem sobre as vendas – do que por necessidade de comprar mais livros (não sei onde colocar os que já tenho!) fiz sinal à minha mulher para aceder a associar-se ao projecto que anunciava. Mais tarde ver-se-á o que poderemos ir comprando de acordo com o catálogo que nos vão enviar, em cada dois meses, durante um ano.
Fechámos a porta e, passados menos de três ou quatro minutos, eis que toca novamente a campainha; era, de novo, o vendedor! O que seria que ele se havia esquecido de dizer, pensei.
Não, não se esquecera de nada. Tinha estado a observar o tapete e perguntou à minha mulher, algo receoso: - Vai pôr no lixo?
Ela, como não havia ainda decidido o destino a dar-lhe, decidiu-se na ocasião: - Vou. É para pôr à porta!
E logo passou pelo olhar do vendedor um sorriso de esperança: - Não se importa que o leve?
Claro que não, respondeu, com voz tranquila e amigável. Então venho buscá-lo mais logo, perto das duas da tarde, retorquiu.
À hora combinada, bateu à porta para dar conhecimento que ia levar o tapete de média dimensão (enrolado tinha quase dois metros de altura). E levou. Levou, não sei se para decorar uma divisão da sua casa, se para o vender em qualquer lugar ou, talvez, para oferecer a um familiar. Sei que aproveitou o que a nós já não servia e isso basta-me para extrair a lição do acontecimento: já há em Lisboa quem, para ganhar a vida, vende oportunidades e recolhe para si o que outros não querem. Chama-se a isto pobreza envergonhada! E esta pobreza está a aumentar de dia para dia, porque houve tempos em que os ministros por nós escolhidos não souberam gerir a riqueza tornando-a socialmente útil e produtiva.