Acordei eram quatro horas da madrugada. Mexi-me na cama, olhei o relógio e lá estavam os números implacáveis a dizer-me que o sono se tinha ido embora. Acordei a pensar na crise. Acordei assaltado pelos mais diversos receios e por todas as lembranças de estudos feitos há muitos anos. Acordei a recordar-me de uma conversa tida há dias com um doutor em Economia, professor de profissão, que me confessava: “Já não consigo ler os artigos especializados das revistas económicas! Hoje abundam os estudos matematizados, os ensaios construídos à volta dos números e de fórmulas complexas e faltam as soluções racionais que se baseiam nos juízos simples da Economia; juízos que vêm do século XVIII e XIX e se mantêm imutáveis até aos nossos dias”.
Fiquei a pensar em David Ricardo, em Adam Smith, Thomas Malthus, Karl Marx e, mais recentemente, John Maynard Keynes. Revi, mentalmente, nas horas de insónia e de voltas e reviravoltas na cama, as ideias basilares destes teóricos da Economia Política e dos problemas que tentaram resolver, tendo sempre por base princípios tão elementares como a finitude e escassez dos bens materiais económicos, o lucro, a crise de subprodução e de superprodução. Tentei perceber, à luz destas velhas ideias que continuam actuais, as atitudes dos governos nacionais: o de José Sócrates e o de Passos Coelho. Nesta luta comigo mesmo, tentei aceitar – coisa difícil, é bem de ver – que os ministros das Finanças de ambos os governos fizeram e fazem obra honesta. Tentei dar-lhes o benefício da dúvida. Que diabo, nem toda a gente é absolutamente malvada! Tenho de aceitar que Teixeira dos Santos e Vítor Louçã Gaspar (primo de Francisco Louçã) não são casos escolhidos de maus portugueses; poderão ver e compreender os fenómenos económicos de maneiras diversas da minha, mas, à partida, serem adversários dos seus próprios cidadãos, julgo que é uma sentença excessiva.
Acordei com bom coração, que se há-de fazer!
A insónia deu-me para tentar perceber sinais, tentar perceber o que os governantes não querem dizer frontalmente aos Portugueses. Não querem ou não podem.
Analisemos as medidas económicas tomadas mais ou menos de chofre nos últimos meses por este Governo: corte de subsídios de férias e de Natal à função pública e aos reformados, redução e controlo apertado de todos os subsídios abonados às classes temporariamente inactivas, aumento das taxas moderadoras do SNS, aumento dos impostos, redução das deduções à colecta, racionalização dos consumos, encerramento de hospitais (a maternidade Alfredo da Costa é o último caso), congelamento de promoções, redução das comparticipações medicamentosas, enfim, uma interminável panóplia de restrições que se reflectem directamente ou no lado da despesa ou no lado da receita do Estado. Muitas destas medidas vão para além do que foi imposto pela troika. E porquê? Porque se quer fazer passar mal os Portugueses? Por um qualquer prazer sádico? Não julgo que assim seja! Tão simplesmente, porque o Estado português está à beira da falência se é que não está já falido!
E como é que um Estado chega à falência? Porque gasta mais do que aquilo que produz! Simples! Portugal está a consumir mais do que aquilo que produz. Mas, o busílis está em ser capaz de perceber o que é “produzir”. É aqui que entram os velhos teóricos da Economia Política.
Um professor produz alguma coisa? Um telefonista produz alguma coisa? Um massagista produz alguma coisa? Um barbeiro produz alguma coisa? Um publicitário produz alguma coisa? Um jornalista produz alguma coisa? Por muito que nos custe, do ponto de vista restritamente económico, nenhum deles e tantos outros profissionais, produz nada! Quem produz é o trabalhador rural, o pescador, o caçador, o trabalhador industrial e, em certa medida, o trabalhador da actividade comercial (e nem toda). É sobre a agricultura, as pescas, a caça e a indústria que assenta todo o edifício económico; a distribuição dos bens produzidos é feita pelos trabalhadores do comércio, tudo o resto são “adjacências” que se encontram “penduradas” nestas actividades “primárias”! Ora, se as “adjacências” forem superiores em quantidade e consumo financeiro às actividades “primárias” está a gerar-se um desequilíbrio económico, porque o essencial não satisfaz em produção (entenda-se em geração financeira) os excedentes necessários para poder pagar às “adjacências”. O Estado, como entidade coordenadora, mais ou menos interventora no processo económico, tem de cobrar junto da produção para pagar “serviços” “auxiliares” necessários à ordem, à segurança e bem-estar da nação.
Portugal há muito – principalmente desde que aderiu à CEE – deixou de produzir nos sectores “primários” em quantidade suficiente que desse para suportar as “adjacências” que cresceram desmesuradamente, por isso, teve de começar a endividar-se. Mas a dívida até nem estava errada se a União Europeia funcionasse como um todo económico, porque haveria sectores “primários” noutros Estados que produziriam para que, através da acção comercial, os seus bens excedentários fossem aqui consumidos e eles tivessem o respectivo retorno financeiro. Ora, não é isso o que acontece! Para desmantelar os nossos sectores “primários” e passarmos a ser consumidores dos bens dos outros Estados, até nos pagaram, mas, agora, em período de recessão e crise, obrigam-nos a viver sujeitos à nossa exclusiva capacidade produtiva, ou seja, condenam-nos à asfixia económica. Assim sendo, pode dizer-se que a União Europeia funcionou bem enquanto fomos consumidores activos da produção dos produtores, podendo nós fazer crescer internamente as “adjacências” improdutivas, mas quando toca ao momento de obrigar os Estados produtores a baixarem significativamente os seus rendimentos para subsidiarem as nossas “adjacências” tudo muda de figura.
O que é que o Governo está a querer fazer? Demonstrar que somos capazes de reduzir as “adjacências” até ao limite do quase impossível para levar os Estados ricos e produtores dos sectores “primários” da União a auxiliarem-nos na situação de esmoler a que vamos ficar reduzidos.
Meus Caros Amigos e leitores, isto, que de maneira pouco escolástica, procurei deixar dito não pode ser esclarecido pelo ministro Vítor Gaspar; nem por ele nem pelo primeiro-ministro, porque isto corresponde à confissão de falência, ou quase, da economia nacional. Seja qual for o sistema político que tome conta da situação não consegue, por um passe de magia, alterar o estado de coisas. Teremos sempre de enfrentar a miséria. Pode-se é atenuá-la através das negociações que se for capaz de estabelecer com a troika e com o governo da União Europeia. Pode alterar-se a situação, se os Estados directores da União Europeia optarem pela prática de uma política de solidariedade económica e social.
É o que nos resta! Foi o que me ficou de uma madrugada de insónia…