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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

28.07.11

Os preços


Luís Alves de Fraga

 

Na generalidade, é verdade que, aos diferentes níveis sociais, os Portugueses, nestes últimos vinte a trinta anos, habituaram-se a ganhar acima daquilo que a nossa economia real pode suportar. Até os mais indigentes dos indigentes conseguiram subsídios que noutras circunstâncias não teriam (e quando digo outras circunstâncias estou a pensar em tempos mais recuados como seja há quarenta ou cinquenta anos). Naturalmente que a falta de orientação para a definição de políticas económicas apropriadas não pode ser assacada a qualquer um de nós, meros cidadãos. Os Governos que fomos escolhendo, através do nosso voto (o voto dos que votaram e a abstenção dos que ficaram calados), ao contrário de fazer o que devia ser feito, foram desgovernando, permitindo que umas dúzias de “bons rapazes” se governassem à custa do erário público e que a maioria fosse fazendo a sua vidinha. Ninguém avisou para os excessos de despesismo, nem para a necessidade de poupança, nem para a armadilha do crédito fácil, nem para cilada da aquisição de casa própria a preços disparatados, nem para o ardil montado pela banca para as facilidades de compra de segunda casa, nem para as prestações das viagens ao estrangeiro com férias em praias exóticas, nem para o facto de os cartões de crédito se pagarem a preços elevadíssimos, nem para os encargos dos telemóveis, dos computadores e de toda a parafernália de apelativos electrónicos e não só que a publicidade anuncia e os incautos adquirem, endividando-se. Os Governos e os Portugueses embarcaram nos gastos mais inúteis como se, de facto, a economia nacional estivesse a viver no melhor estado de saúde que imaginar se possa. Como se a economia e o tecido económico português não tivessem sido destruídos com a adesão à CEE. Só se viu o lado imediatista dos milhões a entrarem-nos porta dentro e a política do lucro fácil através do compadrio na implantação de betão por todo o território sem cuidar de lançar indústrias e empreendimentos estratégicos capazes de darem emprego e terem sustentabilidade num futuro mais distante. Estamos agora a viver a força da crise e os ais e rangeres de dentes vêm de todos os lados. Fomos todos, mas todos, pouco previdentes: uns, porque fizeram más escolhas eleitorais, outros, porque não foram honestos na governação.

Metidos agora na engrenagem da crise e na da economia neoliberal temos de viver com esta situação e suportá-la da melhor forma que for possível, ainda que dolorosa para a esmagadora maioria dos Portugueses. Tem de haver um ajuste económico salvaguardando, no entanto, os valores mais essenciais do Estado social: o Serviço Nacional de Saúde, a Segurança Social e, dentro possível, a educação tendencialmente gratuita, com as inerentes bolsas de estudo para os alunos que maiores méritos demonstrem e menores rendimentos possuam.

Mas, ainda obcecados pelos lucros fáceis, estamos a assistir a um novo fenómeno económico que o Governo tem de evitar de qualquer maneira: a elevação dos preços dos produtos, não por via da carga fiscal a que estão sujeitos, mas por força da ganância dos comerciantes que não desejam ver baixar os seus habituais rendimentos. A este efeito nefasto do mercado interno está a associar-se um outro: o da baixa dos salários, aproveitando os cortes que o Estado faz aos seus trabalhadores.

A conjugação destes dois movimentos a curto/médio prazo vai conduzir à retracção do consumo nos bens mais essenciais. Ora, a falta de demanda no mercado induz uma retracção na produção, a qual, por seu turno, provoca um aumento dos preços e, tal como uma espiral, o processo vai acelerar-se, conduzindo a uma clara e marcada recessão económica. Esta, se se limitasse aos bens não essenciais, não representaria perigo de maior, pois teria, até, o efeito benéfico de repor o consumo dentro dos padrões do aconselhável para a capacidade produtiva nacional, mas tudo se modifica quando se faz sentir naquilo que for absolutamente necessário. Chegados a esse ponto entraremos na zona vermelha da revolta social descontrolada. Nessa altura que ninguém venha dizer que são os sindicatos que destabilizam o sistema, pois já não estará na mãos deles nem nas dos partidos políticos de esquerda a sustentação da vontade popular!

O Governo ou olha de frente para a contenção da subida dos preços e para a redução incontrolada dos salários ou vai ter sérios amargos de boca. O oportunismo económico espreita nestas alturas. Se os políticos não sabem, vão estudar o que aconteceu em Portugal nos anos subsequentes a 1916, particularmente em 1917 e 1918, e nos anos da 2.ª Guerra Mundial, em especial, em 1943 (ainda que deste período pouca informação haja por força da acção da censura prévia). A desordem na rua é muito má conselheira para a política e nem tudo se resolve à bastonada, pois os polícias também comem e têm família a quem precisam alimentar!

23.07.11

Os sacrifícios


Luís Alves de Fraga

 

Por força de vários motivos, desde muito jovem, criança ainda, caldearam-se em mim diversas vocações: ora me via como militar, ora como escritor (fosse isso o que fosse, mas sentia uma grande atracção pelo mundo das letras), ora como cientista (continuasse a ser isso o que fosse, mas via-me a descobrir), ora professor. Todos estes chamamentos vinham mesmo cá de dentro, mas sofriam influências do mundo exterior: vivi, na mais tenra idade, a 2.ª Guerra Mundial, o rescaldo da mesma e toda a panóplia de informação cinematográfica subordinada à temática bélica que nos chegava aos ecrãs dos cinemas usualmente frequentados com os meus pais, todos os fins-de-semana; depois, tanto o meu pai como o meu avô materno eram militares e o efeito das descrições dos acontecimentos vividos por ambos foi muito forte sobre a minha imaginação; mas o meu pai era também dado à poesia, à leitura e à escrita em geral o que, de alguma forma, me marcou, pois via-o a escrever ou a ler com muita frequência; conheci a minha saudosa mãe sempre doente e isso levou a minha imaginação para os domínios das descobertas científicas, no desejo infantil de a poder curar; e, por fim, sempre gostei de explicar, desde criança, o pequeno mundo que me rodeava, facto que fazia de mim um mini-mestre dos outros miúdos.

A escola primária, a pré-instrução militar, a que a minha geração esteve sujeita através da Mocidade Portuguesa, e a leitura dos livros escolares, onde se relatavam os feitos heróicos dos Portugueses, fizeram de mim um convicto nacionalista de dez anos de idade. Por “contágio” de um amigo e companheiro de infantis folguedos que morava na minha rua, descobri o Instituto dos Pupilos do Exército e eis que decreto ao meu pai: — É para ali que quero ir. E fui.

Com o rodar do tempo, a maturidade foi chagando e, enquanto perdia o nacionalismo programado pelo ensino civil, fui ganhando o patriotismo fundamentado em valores profundos do ensino militar. Ao terminar os estudos nos Pupilos do Exército não me restavam dúvidas vocacionais: era para a Academia Militar que eu tinha de ir. E tal decisão foi maduramente tomada num ano terrível para Portugal:1961. A guerra em África esperava-nos e por lá teríamos de passar todos. Como seria vivida não o sabíamos. Por quanto tempo a teríamos de suportar desconhecíamos em absoluto. Era um dever patriótico que se afirmava e eu, como todos os meus companheiros de então, não lhe viraria a cara. Assim pensava há cinquenta anos.

O curso foi decorrendo e as notícias da guerra foram chegando até nós, mais ou menos claras. A decisão política apontava para o prolongamento do conflito pelo tempo que fosse necessário.

Aos vinte anos, cada ano que passa traz consigo profundas alterações de natureza comportamental: é a maturidade que se vai afirmando, a consciência do mundo que se define nos seus contornos mais reais. E isso aconteceu comigo. Comecei a saber-me interrogar melhor sobre a Vida e, ao findar a minha formação militar, tinha já consciência de que alguma coisa estava errada na condução da guerra. Meses atrás de meses seguiam para África contingentes de soldados e chegavam-nos de lá as notícias das mortes e dos estropiamentos de muitos jovens como nós. Eu sabia que uma guerra faz sempre mortos e incapacita muitos dos combatentes. O que se começava a desenhar no meu espírito era a justeza dos sacrifícios pedidos a uma geração. Foi isso mesmo que senti quando, já alferes, fui assistir ao embarque de um largo contingente de tropas no cais da Rocha de Conde de Óbidos, em Lisboa. Valeria a pena? Foi essa interrogação que trouxe de Moçambique quando de lá regressei, em Fevereiro de 1969. Valeriam a pena os sacrifícios?

E quem nos pedia os sacrifícios? E quem sacrificava gerações sobre gerações de jovens portugueses? A resposta foi fácil de encontrar. Ela sempre estivera presente na minha mente: o Governo. Os políticos que apelavam para a nossa generosidade e nos apontavam com amanhãs de glória e desafogo, com futuros risonhos em face de um dia-a-dia cinzento e difícil.

 

Passaram-se os anos. Já nada resta da minha juventude, a não ser, de quando em vez, um vago relâmpago que em dia de trovoada me cruza a mente. O tempo das ilusões já se foi. Ficou o tempo das certezas, das frias certezas que nos apontam, inexoravelmente, o fim do caminho e nos dão a capacidade do cálculo concreto, rigoroso, como rigoroso pode ser o resultado das operações matemáticas. Dois mais dois, na base dez, não podem ser cinco… são sempre quatro! E com estas certezas coloca-se-me, tão acutilante como há quarenta anos, a pergunta: — Valem a pena os sacrifícios que os Governos de hoje exigem a todas as gerações de portugueses? A todas, e especialmente às mais jovens? Em nome de uma recuperação económica e financeira que não nos sabe explicar, o Governo, os políticos, de novo, pedem sacrifícios. Sacrifícios que não matam como mata a guerra, que não estropia como estropia a guerra, mas que deixam marcas e traumas tão grandes e tão dolorosos como os deixam os combates no campo da honra.

No final do ano de 1973 uma geração de jovens oficiais militares, a minha, interrogou-se sobre se valia a pena a guerra, se valia a pena eternizar uma crise que nos roía as entranhas e desgraçava os jovens deste país. Na madrugada de 25 de Abril de 1974 estalou o grito de revolta contra a eternização de uma guerra, de um sacrifício. Ele ecoou em todas as gerações de portugueses e por todo o lado se vibrou com a liberdade que despontava no florescer dos cravos.

É tempo de perguntar: — Quando acaba esta crise? Quando acabam os sacrifícios que nos pedem? Se o Governo não sabe dar resposta e pôr ponto final neste desmando, temos de mandá-lo embora.

Para que chegue lá muito acima o nosso grito, temos de gritar bem alto, que basta de sacrifícios. Estamos fartos de sacrifícios. Estamos fartos de crises a seguir a crises. Desejamos um tempo de paz, de abundância e de trabalho.

20.07.11

Marcelo Caetano um legalista


Luís Alves de Fraga

 

Os homens mais inteligentes, mais cultos, mais sabedores são reféns das suas próprias características onde não entram a inteligência, a cultura, nem a sabedoria. Àquelas, para lhes adoçar as arestas mais agrestes, chamamos-lhes coerência, princípios, regras. Poderíamos chamar-lhes falta de elasticidade, de visão, monolitismo, medo.

Vem isto a propósito de um facto do qual tomei conhecimento pela leitura de um livro de memórias intitulado Na Sombra do Poder, da autoria de Pedro Feytor Pinto. Está descrito entre as páginas 250 e 255.

O autor era, no início do ano de 1974, director de serviços na Direcção-Geral de Informação, tendo a seu cargo o relacionamento com a imprensa nacional e estrangeira. Um cargo secundário no aparelho do Estado, mas de primordial importância na formação da imagem de Portugal no exterior e no interior. Tinha, nessa altura, trinta e sete anos a poucos meses de completar trinta e oito. Passemos ao relato.

Em Fevereiro, poucos dias antes do Carnaval, saiu para as bancas dos livreiros a obra putativamente da autoria do general António de Spínola, Portugal e o Futuro que já vinha sendo anunciada há algum tempo. Foi um livro explosivo, na época, porque fazia a apologia de uma autodeterminação das colónias portuguesas, gerando uma comunidade lusófona. Era a saída, que se imaginava possível, para o impasse que treze anos de guerra haviam traçado. Em abono da verdade, a tese defendida pelo general não andava muito longe da que Marcelo Caetano preconizava desde há muito e que, segundo parece, estava a tentar delinear a passos lentos para solucionar a questão ultramarina. Fosse como fosse, o livro teve o efeito, no país e no estrangeiro, de um inesperado terramoto, tanto mais que vinha da pena de um dos oficiais generais com maior prestígio bélico de então.

Logo a seguir ao Carnaval, Marcelo Caetano convocou Pedro Feytor Pinto para uma reunião no palácio de S. Bento. O Presidente do Conselho estava em conferência com os ministros da Defesa, dos Negócios Estrangeiros e do Ultramar. Para ser recebido encontrava-se também João Salgueiro. A cara dos ministros, ao saírem da entrevista, era patibular. Entrou João Salgueiro e, depois da saída deste, finalmente Pedro Feytor Pinto foi recebido numa antecâmara adjacente ao gabinete de trabalho de Marcelo Caetano.

Trocaram-se impressões diversas até que se chegou ao cerne da questão. O Presidente do Conselho considerava o livro e a sua publicação como um verdadeiro golpe de Estado. Retorquiu o interpelado que concordava, mas que o achava como indo em favor de Marcelo Caetano, pois que, na impossibilidade de demitir Spínola, não podia governar na ignorância do retumbante êxito editorial que se verificara. Assim, considerando a conjuntura nacional e internacional existente, o jovem conselheiro sugeriu ao velho lobo político três alternativas: a primeira, aproveitando qualquer pretexto, organizar um acontecimento no qual o general Spínola estivesse junto de Marcelo Caetano – recusou com a afirmação: «Eu, com o meu tutor ao lado!»; a segunda, dar liberdade de imprensa para que todos os comentários ao livro pudessem ser feitos, ao que O Presidente do Conselho respondeu ser impossível por as redacções dos jornais estarem infiltradas de comunistas, sendo que as Forças Armadas iriam considerar isso uma traição; a terceira e mais ousada, passo a transcrevê-la: […] ir a Belém, expor a gravidade da situação ao Presidente da República, sugerindo-lhe que abandonasse o cargo possibilitando, assim, o acesso do general Spínola à Presidência. Se o almirante Thomaz levasse tempo a decidir, pedia-lhe que fosse à janela para ver as Forças Armadas que rodeariam o Palácio. Disse-me [a Feytor Pinto], então, com a maior veemência: «nunca poderei cometer tal ilegalidade».

 

Com esta revelação ficamos a saber, pelo autor de Na Sombra do Poder, que Marcelo Caetano havia sido, por um dos seus mais próximos conselheiros, tentado a dar o mais magistral dos golpes de Estado que imaginar se poderia dentro do regime. Seria a vitória da ala moderada sobre a mais forte e conservadora parcela do salazarismo ainda existente. Tudo poderia acontecer, mas era a tentativa de levar por diante a mudança na continuidade. Mas Marcelo Caetano foi aquilo que era: um legalista. Faltou-lhe o golpe de asa, o olhar de falcão, a coragem dos desesperados, a loucura dos lutadores, a ousadia dos insensatos. Falaram mais alto as suas características. Características das quais todos nós somos reféns e que nada têm a ver com inteligência, cultura e sabedoria. Faltou-lhe o génio que sobrou aos Capitães de Abril.

16.07.11

Recordar o passado, recriar o futuro?


Luís Alves de Fraga

 

Há pormenores do passado que as gerações mais novas desconhecem e algumas das mais velhas já esqueceram. Hoje vou debruçar-me sobre o que foram certas formas de viver há sessenta, setenta, oitenta e mais anos, num tempo em que Portugal era um país pobre e na Europa e no mundo muita gente vivia com grandes dificuldades financeiras. E faço este exercício, porque, por força de conjunturas diversas, Portugal tornou a ser um país pobre, e caminha a passos bem largos, para o ser ainda mais.

 

Os salários que se praticavam entre a baixa média burguesia (assumindo que, para além dela, há uma média média burguesia e uma alta média burguesia) eram pequeníssimos. Vivia-se com fortes dificuldades e carências de quase toda a ordem. O sistema de saúde deixava tanto a desejar que, entre o Povo, se adoptou um provérbio que, só por si, dizia tudo: «Mal por mal, antes na prisão do que no hospital»! A taxa de mortalidade era elevadíssima e, entre as crianças, altíssima. Não havia dinheiro para medicamentos… As doenças tratavam-se com chás e mezinhas que o conhecimento popular passava de boca em boca, de geração em geração. Alguns requintes na ordem da prevenção sanitária estavam só ao alcance da alta média burguesia, ou seja, por exemplo, um bom advogado, um chefe de repartição pública, um professor catedrático, um juiz, um general (e, mesmo assim, este já vivia com algumas dificuldades!). Um professor primário, um sargento das Forças Armadas, um funcionário público de médio escalão, um empregado de escritório, estavam na faixa da média média burguesia e um contínuo, um cobrador, um polícia, um soldado da Guarda Nacional Republicana ou da Guarda Fiscal, um barbeiro, um empregado de balcão, encontravam-se na baixa média burguesia.

Da média média burguesia à alta média burguesia, consoante a localidade onde se vivia, era possível ter uma empregada doméstica interna, vinda da província, a quem se pagava miseravelmente. A baixa média burguesia já não se podia dar a esse “luxo”.

O sistema de aposentações era extremamente precário. Só os funcionários públicos auferiam reforma e sempre muito baixa, sem actualizações ao longo do tempo. A idade da aposentadoria era aos setenta anos e a fórmula de cálculo da pensão era simples: o vencimento mensal vezes o número de anos de serviço a dividir por quarenta (que era o número de anos máximo para auferir uma pensão completa). Não havia direito a qualquer tença para a viúva ou filhos menores ou deficientes por morte do pensionista a não ser que este fosse militar e tivesse falecido em consequência de acção de guerra ou resultado de doença adquirida em campanha. Era a chamada pensão de sangue. Para a alcançar, se a morte não ocorresse em serviço de campanha, era muitíssimo difícil, pois exigia o parecer de uma junta médica rigorosíssima. As pensões de viuvez resultavam dos descontos que o funcionário, normalmente do Estado (os empregados civis não possuíam qualquer tipo de protecção oficial), fazia de sua livre vontade para organismos com matriz cooperativa: Cofre de Previdência do Ministério das Finanças, Cofre de Previdência das Forças Armadas, Cofre de Previdência dos Professores Primários e muitos outros que se formavam para poder pagar à viúva uma mísera pensão que dava, quase sempre, para ela estar um pouco, muito pouco, acima do nível da indigência.

 

Para o sustento da casa, num tempo em que o crédito passava pelo livro de fiados do merceeiro da rua e, às vezes, raras, pelo do lugar da hortaliça e pelo açougueiro (mais raro ainda) havia, em certas cidades de significativa envergadura populacional, as cooperativas de consumo. O que eram? Associações de cidadãos que compravam uma ou mais acções cooperativas para poderem realizar capital suficiente destinado à aquisição por grosso de géneros de toda a ordem, que vendiam aos associados por um preço quase igual ao do fornecedor, realizando uma margem de lucro ínfima. As cooperativas de consumo podiam, consoante o tipo de cooperantes, complexificar a sua área de actividade, chegando ao ponto de até oferecerem, por preço insignificante, consultas médicas ou praticar empréstimos (recordo a Cooperativa Militar).

A par das cooperativas existiam a associações de socorros mútuos, as quais estavam viradas para acções de apoio financeiro ou sanitário, mediante o pagamento de uma quota de valor comportável pelos diferentes tipos de bolsa dos associados. As associações de bombeiros voluntários ainda são, no nosso tempo, um resquício deste mundo de mútuo auxílio. Os mais velhos naturais de Lisboa (do Porto e Coimbra nada sei) ainda se recordarão da figura do guarda-nocturno que, embora fardado com um uniforme quase policial, vivia da quotização dos moradores de uma área que ele rondava armado de um chanfalho trazendo na mão ou à cinta um avultado molho de chaves.

 

Quis, com a brevidade possível, mostrar como a média burguesia, em geral (porque aos pobres só restava a generosidade alheia, mais tarde as instituições genericamente designadas por sopa dos pobres, e as organizações filantrópicas de certas sociedades de gente rica ou caritativas das diferentes igrejas), enfrentou o capitalismo liberal do século XIX e da primeira metade do século XX.

Meditem, os meus leitores, no horror que foi a vida dos nossos pais e dos nossos avós! Pelo menos aquela parte dos meus leitores que não descende de nascimentos em berços de ouro.

Vai ser desta forma que nós, Portugueses, teremos de enfrentar de novo o resultado do neoliberalismo? Vamos ter de recuar ao associativismo mútuo para garantirmos a saúde, a educação, o alimento, o empréstimo financeiro quando a necessidade apertar? Vamos deixar que nos coloquem a canga no pescoço para puxarmos a carroça do grande capital? Vamos ser mansos cordeiros que pachorrentamente nos deixamos ir para o matadouro sem um balido de desacordo, sem uma marrada de luta?

 

Está na hora do grito de revolta. A classe média é hoje o alvo do grande capital! Somos nós, agora, os proletários do século XXI. Temos de encontrar a nossa forma de luta. Temos de nos organizar para dizer aos políticos, que servem o capital, uma palavra muito simples: BASTA! Um basta que estrondeie por montes e vales e chegue aos gabinetes de Bruxelas e faça estremecer as cadeiras do Poder europeu. Já fomos, noutros tempos, capazes de maiores façanhas! Mereçamos os nossos maiores.

09.07.11

Lições da História


Luís Alves de Fraga

 

Quando, em Abril de1945, apaz pairou sobre a Europa, depois de os Aliados terem derrotado a Alemanha nazi e a Itália fascista, qual era o panorama que se podia ver no Velho Continente e nos EUA?

Na Europa, era tanta a fome na Alemanha, na Áustria, na Itália, como na vitoriosa Grã-Bretanha ou na desocupada França e na mártir Bélgica. A fome estendia-se, também, aos países neutros como Portugal e Espanha. Os circuitos produtivos estavam completamente destruídos e as correntes comerciais eram quase inexistentes. Milhões de desalojados deambulavam de um lado para o outro à procura das suas antigas raízes. Era dantescamente um caos. Em contrapartida, nos EUA, pesem embora as elevadíssimas perdas de vida entre a juventude americana, não havia desemprego, a economia era florescente, as fábricas trabalhavam a bom ritmo e produziam em abundância. Este cenário era magnífico para os americanos e péssimo para os europeus. Mas o que interessa uma economia florescente se não puder expandir-se? Rigorosamente nada, porque transporta no seu seio o feto da crise. Uma crise que, mais tarde ou mais cedo, estalará em função da retracção que se irá verificar no mercado interno por estar saturado. Assim, interessa expandir-se, abrir-se ao exterior, para continuar a fazer crescer a produção, as vendas, o emprego e o rendimento das famílias e o lucro dos capitais.

Isto mesmo percebeu George Marshall, Secretário de Estado dos EUA, que propôs uma ajuda financeira à Europa, para recuperação da máquina produtiva. Claro que a ajuda saía por um lado, mas o retorno fazia-se por outro, na medida em que o Velho Continente passou a ser um excelente comprador dos produtos americanos. Isso permitiu, de facto, a recuperação europeia, mas uma recuperação dependente dos EUA que se concretizou melhor e mais eficientemente na imediata criação da OTAN ou NATO.

O progresso europeu foi tal que, uma dezena de anos após a guerra, vivia-se por cá um boom económico muito significativo. Ao romper a década de 60 do século passado a Europa tinha recuperado e estava a lançar as bases da Comunidade Económica Europeia (CEE). Era o nascer de uma nova temporada. Uma temporada que veio desembocar na União Europeia e na moeda única, o Euro. De repente (duas dezenas de anos em História é um curto lapso de tempo), aquilo que começou por ser um plano para manter os altos padrões de produção e de consumo da economia dos EUA tornou-se numa ameaça série à economia americana. A palavra de ordem, depois da última crise económica dos EUA, foi simples: destrua-se o Euro, destruindo, se necessário for, a Europa. E por onde se inicia essa destruição? Pelos flancos mais frágeis: Grécia, Portugal e Irlanda, passando, depois aos restantes. E até onde se pode e deve ir? Até que a Europa fique, sem nela rebentar uma bomba, tal e qual como estava em 1945, ou seja, com os circuitos económicos todos destruídos. Para quê? Para que os EUA possam, uma vez mais, desenvolver um qualquer programa de auxílio semelhante ao plano Marshall. Um plano que auxilia mais quem o dá do que quem o recebe.

Só não vê quem não quer ver! A História dá as lições… é necessário saber interpretá-las! Esse era (é) o motivo porque nas Academias Militares se ensinava (ensina) História militar, pois, os campos de batalha podem variar e mudar os intervenientes, mas não mudam as táctica nem as estratégias… Alteram-se em função da tecnologia, nada mais! Infelizmente, não há academias para formar os políticos… Assim, poderiam estudar História e saber que nihil sub solo novum.

08.07.11

Prisões e prisioneiros políticos


Luís Alves de Fraga

 

Há tempos reli com redobrado prazer o livro intitulado Memórias da Condessa de Mangualde que relata com bastante soma de pormenores a vida e a luta do seu marido contra a República, logo após a proclamação desta, em Outubro de 1910.

Combater por ideais, especialmente políticos, representa sempre um conjunto de sacrifícios difíceis de avaliar por quem nunca passou por tais situações. É sempre impressionante, belo e épico, embora se não concorde com a razão de fundo da luta em questão. Sendo eu republicano, não me escuso a admirar a pugna que os monárquicos desenvolveram para repor no trono um rei.

 

Acabei, hoje de manhã, a leitura do livro Memórias de Um Resistente às Ditaduras, da autoria do coronel Manuel António Correia, que era soldado, na Rotunda do Parque Eduardo VII, na noite de 4 para 5 de Outubro de 1910. Promovido por distinção a primeiro-sargento, já como alferes participou na Grande Guerra, em França, e era tenente quando, em 28 de Maio de 1926, foi imposta aos Portugueses a ditadura. Daí em diante passou a lutar pela democracia. Conheceu a clandestinidade, a prisão, as deportações, as perseguições levadas a cabo pelas polícias políticas.

Numa análise tão isenta quanto me é possível, lendo o primeiro relato e o segundo chego à conclusão de que, por muito má que tenha sido a vida de todos os que combateram pela restauração monárquica em Portugal, nada se compara ao tratamento que foi dado aos lutadores contra a ditadura. A prisão e a tortura ultrapassaram muito de longe os maus-tratos que o conde de Mangualde relata nas cartas que remeteu para a sua mulher ou nos documentos que deixou escritos. Realmente, as ditaduras sejam elas quais forem, permitem que o pior da condição humana se possa manifestar contra quem discorda do Poder.

Pelas visões que encerram, são dois livros que aconselho a quem quer perceber o lado negro da Liberdade e da Opressão.