Anatomopatologia histórica
Acordei eram cinco horas da madrugada. Acordei preocupado com os meus alunos. Fiz-lhes um teste de avaliação de conhecimentos e desconfio que foram poucos os que conseguiram perceber o alcance dos temas que lhes propus para desenvolverem.
São alunos da licenciatura em Relações Internacionais e às matérias que lecciono procuro dar-lhes um alcance que vá para além do mero facto histórico. Tenho sempre presente que a História é, para as Relações Internacionais, um instrumento, mais um instrumento de análise da Ciência Política, de um certo tipo de Ciência Política: a que se preocupa com a relação entre os actores da cena internacional. É uma História que se não esgota no relato do facto passado. Tem de ser uma História que enterra as suas raízes nas vertentes sociais, económicas, culturais, políticas que estão na origem dos acontecimentos. Tem de ser uma Anatomopatologia Histórica, ou seja, uma História que se compara com um cadáver que se sujeita ao rigor da análise feita pelo patologista (o historiador e politólogo) que procura na anatomia dos órgãos (o mesmo é dizer, dos factos históricos) a explicação para a causa patológica que determinou a falência ou, por outras palavras, a explicação profunda e logicamente fundamentada para que o acontecimento tenha ocorrido da forma como ocorreu. O órgão não faliu porque simplesmente deixou de funcionar: o órgão faliu, porque existiu uma razão que o levou àquela falência. E a explicação pode ser social, política, económica, cultural, diplomática, bélica, geográfica, estratégica. Assim, o analista tem de ter, por um lado, uma grande intuição, uma inteligência que o desperte para os pormenores e para os liames que entre eles poderão existir e, por outro, uma cultura sociológica, económica, política, militar, geopolítica e geoestratégica que lhe facilite o desenvolvimento da compreensão das tais interligações que levam a que a explicação do facto histórico não se faça pelo relato dele mesmo, mas pelo relato das intervenções de actores que ditaram a ocorrência do facto.
Acordei com a angústia de saber se fui capaz de fazer com que os meus alunos tenham percebido este mecanismo e o tenham sabido aplicar. Claro, tenho por certo que a muitos faltará a perspicácia, a maturidade, a cultura geral para se tornarem em anatomopatologistas da Ciência Política e, em particular, das Relações Internacionais, através do estudo da História. As Relações Internacionais, para esses, serão sempre o simples comentário do acontecimento do dia-a-dia que se relaciona com o facto imediatamente anterior, que se explica por ele mesmo ou por razões evidentes. Mas há os outros, aqueles que eu gostaria de ver alcandorados aos patamares do estudo científico das Relações Internacionais e que se não contentam com explicações simples, tão comuns nas certidões de óbito passadas por muitos médicos: paragem cardíaca! Sim, paragem cardíaca, mas o que causou a paragem? Qual a origem? O que funcionou mal para que ela se verificasse? O coração pára, porque alguma coisa se passou para ele parar. O coração existe para trabalhar e não pára por uma razão inexplicável.
Os acontecimentos ocorrem na vida dos Povos por uma razão que quase sempre não é aquela que parece, mas outra mais profunda, mais escondida, mais complexa. É essa razão que os meus alunos – os mais interessados, os mais vocacionados – têm de saber descobrir treinando-se no teatro anatómico que é a História, porque lhes oferece acontecimentos já falecidos sobre os quais podem trabalhar com segurança, expondo explicações, aventando hipóteses, sugerindo novas interpretações.
Esta insónia da madrugada não a paga a universidade onde eu lecciono. Esta insónia é o motor que me anima para me superar no acto sublime de ensinar, de abrir horizontes às mentes virgens dos meus alunos. Felizmente, em cada ano que acaba, há sempre dois ou três discípulos que me deixam a sensação de ter atingido os meus fins, os meus objectivos, os meus mais íntimos propósitos. Vejo-os partir da universidade com a mesma esperança que, se calhar, anima um velho falcão ao ver a sua cria elevar-se nos ares pronta para a caçada.