Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

27.04.08

Recordar um bom exemplo


Luís Alves de Fraga

 
É de toda a justiça recordar, nesta época do ano, um Homem que nos deixou um bom exemplo de verticalidade, frontalidade e coragem. Tenho a dupla honra de o ter tido como professor e de ambos havermos frequentado, com distância de várias dezenas de anos, o Instituto dos Pupilos do Exército. Chamava-se Joaquim Dias Marcelino Marques e era, no tempo em que se passou o episódio que de seguida vou relatar, coronel de Administração Militar no activo. Antes porém, deixem-me dar dele um retrato tão próximo da realidade quanto as palavras e a minha memória me não atraiçoarem.
 
Era um homem de meia estatura, talvez mais para o baixo do que para o alto. Ligeiramente anafado, sem ser gordo. Tinha um rosto redondo, uns olhos vivos, um sorriso entre o matreiro e o cínico. Falava baixo, mas as palavras saíam-lhe compassadas, marteladas de modo a que não houvesse dúvidas quanto ao que queria dizer. Às vezes, eram sibilinas as frases que proferidas. O sorriso era mais um trejeito facial do que um mostrar de dentes. Desprendia-se dele uma imagem de vontade firme e de incapacidade de recuos ou vacilações quanto ao que queria. Era um homem com aquele quê que geralmente identificamos com a frase: sabe o que quer.
Conheci-o quando eu rondava os meus quinze ou dezasseis anos — teria ele, talvez, trinta e poucos. Foi meu professor dois anos mais tarde. Depois, soube notícias dele por ter sido colocado na Assistência aos Tuberculosos das Forças Armadas, já tenente-coronel, e o meu pai prestar lá, também, serviço e ter-se estabelecido entre ambos uma excelente relação de amizade. Tendo sido promovido a coronel foi transferido e deixou no meu progenitor um grande sentimento de admiração
Passemos, agora, à estória que nos mostra a índole do saudoso coronel Marcelino Marques.
 
Corria o ano de 1973. Estava-se a meio de Outubro ou nos primeiros dias de Novembro. Marcelino Marques havia sido nomeado professor da Academia Militar. Tinha experiência docente, pois já leccionara vários anos no Instituto dos Pupilos do Exército. Eu encontrava-me em Moçambique no cumprimento da minha segunda comissão de serviço e rapidamente me chegou a notícia do acontecimento.
Ia ter lugar a sessão solene de abertura das aulas na Academia Militar que, dessa vez, seria presidida pelo almirante Américo Tomás, Presidente da República do Estado Novo, um dos mais obsequiosos seguidores de António de Oliveira Salazar, o ditador desde 1928.
O Chefe de Estado era uma figura risível, pela sua incapacidade de articular publicamente um discurso com nexo. Havia sido ministro da Marinha e era um dos chefes da linha dura do salazarismo. No meio da sua aparente confusão mental, sabia muitíssimo bem o que pretendia para perpetuar o regime.
 
Embora não conheça pormenores, vou contar o que se passou tal qual mo relataram na altura.
O comandante ou o segundo comandante da Academia Militar, consciente da instabilidade que já se fazia sentir no seio da oficialidade das Forças Armadas — as primeiras reuniões conspiratórias teriam começado havia algumas semanas — terá convocado todos os oficiais em serviço naquele estabelecimento de ensino e, dando-lhes conhecimento da cerimónia que em breve teria lugar, impôs a presença de todos à sessão solene de abertura das aulas. O coronel Marcelino Marques ter-se-á levantado e terá dito com aquela sua muito característica voz sibilina e também cortante:
— Informo V. Exa. de que não estarei presente à cerimónia!
Estranhando a atitude, o comandante ou o segundo comandante perguntou-lhe o motivo ao que Marcelino Marques respondeu no mesmo tom seco e pausado:
— Porque eu me recuso a estar presente em actos presididos por esse senhor!
Foi como se uma bomba tivesse caído no seio daquele grupo de oficiais. Um coronel do Serviço de Administração Militar ousar falar assim do Presidente da República! Crime de lesa Pátria! Crime de traição!
 
Foi mandado instaurar rapidamente o processo disciplinar e, rapidamente também — à boa maneira fascista ou fascistóide — tratou-se de punir com alguns dias de prisão disciplinar agravada o coronel Marcelino Marques, já do antecedente conhecido pela sua rebeldia e antipatia pelo Governo. A transferência de unidade foi imediata.
Esta atitude granjeou-lhe a confiança dos oficiais que começavam a conspirar e terá sido esse o motivo pelo qual, logo no próprio dia 25 de Abril de 1974, se apresentou na Escola Prática de Administração Militar — ali para os lados do Lumiar, quase em frente dos velhos estúdios da Rádio Televisão Portuguesa — e lhe foi entregue, com toda a confiança, o comando da unidade.
 
Foi nesta escola de Homens que procurei aprender alguns ensinamento para a Vida. Foi com Homens como o meu velho professor, coronel Marcelino Marques, que eu — por certo sem o brilho dele nem comungando, talvez, das suas opções políticas — me fui identificando como militar, tentando cultivar a frontalidade e a verticalidade que fizeram dele um militar de Abril.
Recordo-o com muita saudade, num tempo em que se recomeçou a aprender a viver, «navegando» com cautelas e alguns salamaleques para não ferir susceptibilidades com palavras varonis ditadas pela salutar discordância ou o saudável repúdio de quem corta a direito para atalhar caminho.
 
Obrigado meu coronel pelas suas lições; esta que contei e outras que relatar seria moroso.
Obrigado por nos ter deixado o exemplo ao qual presto a minha homenagem.
23.04.08

Falta cumprir Abril!


Luís Alves de Fraga

 
Passam, em breve, 34 anos sobre o dia 25 de Abril, o dia da alvorada nacional, e os mais conscientes de nós, mas, também, os mais velhos, sentimos que o ideal do Programa do Movimento das Forças Armadas, aquilo que de mais profundo estava gravado nas entrelinhas do texto dado a conhecer aos Portugueses, ainda não se cumpriu.
 
Se tomarmos os três D como base para esta análise — os D que são, afinal, a essência do Programa do MFA — vemos que deles só as aparências mais evidentes se concretizaram.
 
Descolonizámos. É certo. Mas descolonizámo-nos? Demos a independência às colónias pela qual elas lutaram e o Estado Novo nos impôs uma guerra de 13 anos — 13 anos de muito sofrimento de parte a parte — mas descolonizar é dar a independência a um território? Ou será que é preciso nós descolonizamo-nos, isto é, ganharmos a nossa própria autonomia, a confiança em nós mesmos, nas nossas capacidades? Será que depois das independências deixámos de nos sentir órfãos? Será que soubemos olhar a Europa e o mundo como senhores dos nossos destinos? Será que conseguimos conquistar o nosso lugar na Península e na Europa depois de termos passado 500 anos virados para fora, para África, para o Oriente, para o Brasil? Será que soubemos regressar à dimensão que tínhamos em 1415, antes da conquista de Ceuta?
Não acredito que nos tenhamos descolonizado! Temos estado nestes trinta e poucos anos amarrados à cicatriz de um passado, à cicatriz de uma amputação. Só assim se explica que, depois da adesão à Comunidade Europeia, depois de se terem derramado rios de ouro sobre nós, tenhamos continuado na cauda dos países desenvolvidos. Esse ouro, julgámos, no nosso inconsciente colectivo, tinha sido outra grande mina que havíamos descoberto como as do Brasil. Esbanjámo-lo na esperança de encontrar outra mina numa outra colónia! Não o soubemos utilizar como a última oportunidade. Éramos ainda a metrópole que se podia dar ao luxo de malbaratar a riqueza, deixando que todos dela tivessem um quinhão improdutivo. Não nos ficou um aqueduto de águas livres nem um mosteiro de Mafra, mas restaram-nos as auto-estradas, uma ponte, um centro cultural e pouco mais, muito pouco mais. Os nossos governantes comportaram-se como um outro D. João V, magnanimamente distribuindo ouro a quem o quisesse agarrar. Portugal continuou pobre! Essa é a prova de que não soubemos descolonizarmo-nos!
Aqui, Abril não se cumpriu!
 
O segundo D — o de Desenvolver — transcorre, em parte, da Descolonização.
Realmente, olhamos agora à nossa volta e podemos perguntar-nos o que fizemos para nos desenvolver. Nada! Deixámos o tempo passar e que o natural progresso por ele trazido chegasse até nós. Somente isso.
Não soubemos e não quisemos gerar riqueza. Ninguém nos impulsionou para a frente — nem nós mesmos o fizemos — de forma a, como país, encontrarmos uma vocação económica, ainda que tardia, na Europa. Somos consumidores e pouco ou nada produtores. A nossa balança comercial não indica uma só especialização através da qual superemos os restantes Estados da União.
De momento, o único desenvolvimento que sabemos ter é o do desemprego, o do espectro da fome e da miséria a curto prazo. Enquanto poucos enriquecem desmesuradamente muitos Portugueses empobrecem assustadoramente.
E o que nos prometem os políticos que tomaram conta do aparelho do Estado? Mais «aperto de cinto» contra vagos sonhos de míseras saídas de uma crise que se arrasta há tempo excessivo.
Em 34 anos teríamos tido oportunidades óptimas para darmos vários saltos em frente, para nos colocarmos ao nível dos países médios da Europa. Não o fizemos, porque negociámos mal a adesão à Comunidade; não soubemos ou não quisemos defender o fraco tecido produtivo que tínhamos; não defendemos os nossos têxteis, a nossa débil frota pesqueira, a nossa cortiça, a nossa vinha, o nosso azeite. Uma única indústria soubemos manter de pé: a da construção civil… A mais pobre de todas em mão-de-obra técnica e em tecnologia; aquela que contribui para o nível de emprego dos imigrantes, dando-nos a sensação de sermos um país desenvolvido. E vai continuar a ilusão desenvolvimentista à custa de mais obras públicas, ou seja, de mais construção civil!
De novo, Abril não se cumpriu!
 
O terceiro D — o de Democracia — apresenta as mais significativas contradições.
É certo que foi derrubada a ditadura, acabou a censura, a polícia política, que existem partidos políticos, um parlamento, eleições livres… Mas chegará isto para dizer que existe uma democracia em Portugal? Será suficiente?
Não, meus amigos! Tudo isso são manifestações exteriores de democracia; falta o mais importante. Falta que as mentalidades se tenham transformado; falta que a liberdade não seja libertinagem; falta que a ordem democrática não seja a «lei da rolha»; que todos saibamos conviver com a livre crítica, com a liberdade dos outros, respeitando-a e admirando-a. Falta o sentido de civismo, a educação, a cautela e a delicadeza públicas. A democracia, infelizmente, porque mal apreendida, deu largas à boçalidade de um povo que esteve aperreado ora por uma Igreja sufocante ora por um Estado ditatorial. Ainda se fazem sentir, aqui e além, assomos da saudade da ditadura — o anteprojecto de Regulamento de Disciplina Militar, que anda por aí a circular, é a prova provada disto mesmo.
Falta a verdadeira compreensão da democracia, porque uma maioria absoluta que governa, comportando-se como se fosse uma ditadura, com arrogância e desprezo pelas oposições, não integrou o real sentido da liberdade. Uma maioria absoluta que, por razões economicistas, põe em causa o bom andamento do Serviço Nacional de Saúde, que decalca modelos estrangeiros de avaliação e de trabalho de professores, que reduz à condição de miséria pouco dourada as suas Forças Armadas, que descarta a assistência sanitária dos seus militares os quais fizeram a guerra e deram ao país a liberdade, uma maioria absoluta assim formada não honra a democracia que diz pretender servir.
E, uma vez mais, Abril não se cumpriu!
 
Falta abrir as portas que Abril abriu. Falta que saibamos crescer em riqueza, em liberdade, em civismo, em respeito. Falta que se estabeleça um verdadeiro programa de cidadania. Por isso, cabe-nos a nós, cidadãos anónimos, mas conscientes, abrir as portas que Abril abriu, usando a nossa voz, o nosso voto, a nossa revolta, a nossa união, para que o Povo unido jamais seja vencido.
20.04.08

O meu exercício da docência e o RDM


Luís Alves de Fraga

 
Sempre entendi o exercício da docência mais como uma actividade capaz de despertar vontades para a aprendizagem das matérias ensinadas do que uma pura e simples transmissão de conhecimentos. Ensinar é abrir a caixa do desejo onde se guarda o saber.
Naturalmente que a metodologia que se usa para conseguir a adesão dos alunos ao gosto pelo conhecer varia conforme as áreas que se leccionam. Eu, que me dedico a ensinar História, e especialmente História de Portugal, tenho de ter uma grande liberdade de recuo e avanço no tempo para estabelecer comparações que levem os alunos à compreensão plena do que explico. Com imensa frequência venho às realidades por eles conhecidas e vividas para as relacionar com outras do passado de modo a compreenderem as semelhanças ou as diferenças.
Os alunos, nesta troca de vivências, bastas vezes interrogam-me sobre o presente para poderem concluir sobre o passado que desejo sejam capazes de abarcar.
Nas minhas aulas não há tabus. Tudo se pode discutir, porque tudo se relaciona com a vida do Homem em sociedade.
 
Esta atitude aberta e franca só a pude ter depois de Abril de 1974. Antes, muito embora não me amedrontassem os bufos e a perseguição da PIDE/DGS, acautelei-me, porque de mim dependiam os meus filhos e deixá-los à míngua de pão pelo prazer de afrontar um Poder político despótico constituía uma aventura que só uma muito grande militância poderia e deveria aconselhar. Também, por esses tempos, eu leccionava em estabelecimentos do ensino secundário e a juventude dos alunos não constituía um acicate tão grande no desejo de saber como hoje na universidade. Contudo, sempre que me foi possível, deixei margem à curiosidade e às perguntas para, através dos esclarecimentos, conseguir despertar, aqui e além, desejos de se querer conhecer o que era a democracia e a liberdade. Ainda, por vezes, encontro antigos alunos que recordam essas minhas ousadias em terrenos julgados, então, difíceis.
 
Antes do dia redentor de 25 de Abril de 1974 também exerci uma outra espécie de docência: escrevia crónicas para jornais da província: para o «velhinho» Açoriano Oriental e para a Gazeta de Coimbra. Os meus artigos tinham, como todos os outros, de ir à comissão de censura, mas, com a «arte» que, então, desenvolvíamos para saber fazer passar mensagens, muitas vezes consegui ludibriar o censor e ver em letra de forma afirmações que serviam para alertar os leitores. Quem hoje se debruçar sobre o que nessa altura escrevi achará ingénuos os argumentos, contudo, dizê-lo era já muito importante.
Deixo aos meus leitores um pouco da minha prosa desses tempos, tirada ao acaso da Gazeta de Coimbra do dia 9 de Janeiro de 1971:
«(…) o progresso cultural só se fará quando se democratizar o ensino. (…) haveria que tornar a cultura acessível a toda a gente, sendo medida prioritária o aumento do tempo de frequência escolar elementar da juventude. (…). Neste particular, e abstraindo-nos da questão da filiação no partido, os países da Cortina de Ferro, vêm de há anos a esta parte, desenvolvendo um notório auxílio aos jovens comunistas que dão provas de capacidade intelectual. O vulgar sistema de bolsas de estudo, talvez não seja suficiente para resolver a questão, para além da aquisição de livros e da satisfação das necessidades primárias de vida do estudante, fica um mundo de coisas à espera de solução. Só quando o estudante puder ter todos os problemas resolvidos — desde o vestir e calçar, até à aquisição de livros passando pelo ambiente próprio ao estudo e à investigação — se tirará deste «trabalhador» — porque estudar é a forma mais proveitosa de trabalho! — o total rendimento» (os sublinhados foram feitos agora para chamar a atenção do que era, por regra, censurado).
 
Era assim que eu escrevia quando estava prestes a fazer 30 anos de idade; hoje, passados 37, não altero uma vírgula ao que disse!
A minha intervenção pública nesses anos recuados era já pedagógica, porque acredito que é pelo ensino que se dão as grandes mudanças na mentalidade dos grupos sociais humanos. Ora, para se ensinar tem de se gozar da mais ampla liberdade. Não se pode ensinar coisa que jeito tenha com peias e limitações no pensamento!
 
Lendo o anteprojecto do Regulamento de Disciplinar Militar pergunto-me se, na eventualidade mais do que improvável de ser transformado em Lei, eu poderia continuar a exercer a docência. Eu ou outro qualquer militar reformado que, para arredondar financeiramente o mês e a reforma por prazer e necessidade, leccionasse disciplinas universitárias do âmbito das Ciências Sociais e Humanas. Na verdade, em todos os momentos de uma boa lição sobre Portugal estaríamos a infringir o RDM ou, o que me parece profundamente caricato, teríamos de pedir autorização ao Chefe do Estado-Maior do Ramo para nos permitir dar aulas, quando, para haver justiça, ele nos deveria agradecer pelo facto de estarmos a contribuir com o nosso saber e a nossa experiência para a formação académica das gerações futuras.
 
Como facilmente se percebe, foi minha intenção, ao escrever este artigo, deixar aqui bem expressas várias mensagens: pode exercer-se a docência de várias maneiras e ao longo de vários momentos da vida, porque para se ser professor é fundamental ser-se pedagogo e a pedagogia do exercício da cidadania é a pedra por onde se começa a construir qualquer lição; a liberdade de expressar a opinião é fundamental a quem quer ensinar; aqueles que, com intenções ainda não plenamente esclarecidas, lançaram para o conhecimento público o anteprojecto de um novo RDM têm vistas tão limitadas que nem lhes passou pelo bestunto a hipótese de um militar reformado exercer a docência e, por isso, não poder nem dever estar limitado no seu direito de opinião; finalmente, pelo exemplo que dei do que e como escrevia há 37 anos, percebe-se como, afinal, o Governo democrático de hoje pretende ser bem mais repressivo do que o ditatorial de então.
 
Deixo no ar duas perguntas que cada qual responderá como melhor lhe aprouver: — Para onde estamos nós, Portugueses, a ir ou a ser levados? Saberemos reagir como é esperado e a tempo?
19.04.08

As inconsequências de uma atitude


Luís Alves de Fraga

 
No dia 18 do corrente mês de Abril, o ministro da Defesa Nacional veio dar o dito por não dito. Se não fosse um assunto muito sério parecia que o ministro andava a brincar com a tropa.
O leitor que se interessa por assuntos de natureza militar ou somente por política nacional pode ir ver, clicando aqui, o Expresso on-line e consultar a notícia na qual Severiano Teixeira, ao cabo e ao resto, diz, por outras palavras, que o anteprojecto de RDM era só um teste à capacidade de entendimento e, talvez, de reacção das Associações Militares e, por outro lado, se pode concluir que se demarca da atitude do CEMFA, deixando-lhe o ónus de uma atitude inesperada e inusitada.
 
Realmente, ao apreciarmos a acção política deste Governo, parece que estamos a olhar para um carrossel em andamento: umas vezes a girafa está lá em cima cheia de força e vontade de saltar e outras está cá em baixo receosa de dar um passo em frente. Atente-se no que aconteceu com o Ministério da Saúde, com o da Educação e, agora, com o da Defesa… Isto no mínimo!

 

11.04.08

Homem de causas


Luís Alves de Fraga

 
Tenho sido, ao longo da minha vida, um homem de causas. Em abono do que afirmo recordo muito vagamente um episódio ocorrido, quando teria cinco ou seis anos, no pequeno jardim do miradouro da Senhora do Monte, lá para as bandas do bairro da Graça.
 
Era Verão e, naquele tempo, as mães levavam os filhos até pontos frescos na cidade, para eles poderem correr e brincar.
Certa noite a minha progenitora, porque estaria de conversa com a minha irmã, mais velha do que eu sete anos, perdeu-me de vista e, quando sentiu a minha falta, mandou-a procurar-me. Ela descobriu-me — não era difícil — mas foi chamar a minha mãe, porque não sabia como resolver a situação. Vou contar o que me lembro.
No miradouro, por trás de um velha e frondosa árvore, ainda existe um longo banco de pedra. Eu estava sobre um dos lados desse banco, rodeado de uma pequena multidão de adultos, a interpelar o guarda da PSP que ali fazia serviço. Perguntava-lhe porque é que eles, em vez de andarem atrás das varinas que vendiam o peixe no passeio da minha rua, não iam para a guerra lutar como soldados. O cívico, homem pacato e com sentido de humor — maior do que o de certos responsáveis dos dias de hoje — dava-me conversa para, como soe dizer-se, me puxar pela língua e eu replicava que era na guerra que se via a coragem dos homens e não a correr atrás de pobres peixeiras.
Foi com grande sobressalto que a minha saudosa mãe interrompeu aquele infantil comício que estava a divertir quem me ouvia e, provavelmente, dava prazer ao polícia. Mas a minha progenitora, sabendo como a PIDE actuava temeu, durante uns dias, que a minha precoce tendência para defesa da causa dos oprimidos e dos que não têm voz valesse ao meu pai — sargento enfermeiro da Armada — algum incómodo. Nada aconteceu, para além de ter passado à história da família esta minha ousadia e o meu grito de revolta.
 
Sou um homem de causas. O meu blog está aqui para o demonstrar. Continuo e continuarei a bater-me com os «cívicos» mal-humorados, estando ao lado de todos quantos sejam vítimas de injustiças. Quem me conhece da juventude sabe como eu sou: frontal e “diplomata” na medida em que a “diplomacia” não constitua uma cedência aos valores que defendo.
 
Através de vários meios de informação, mas também pelo Diário de Notícias, tomei conhecimento do anteprojecto de reforma do Regulamento de Disciplina Militar. Este, segundo a agência de notícias Lusa, nas palavras do secretário de Estado da Defesa, João Mira Gomes, terá sido trabalhado no Ministério da Defesa Nacional com as chefias militares e a colaboração do Ministério da Justiça.
É curiosa a forma como o senhor secretário de Estado coloca o problema da restrição das liberdades e garantias dos reformados militares, pois diz, segundo a Lusa, textualmente o seguinte: «não há nenhuma intenção do Ministério da Defesa em limitar os direitos dos militares, constitucionalmente consagrados, excepto aqueles de que voluntariamente abdicam quando abraçam a vida militar». É que, quando se lê o famigerado anteprojecto, salta de imediato à vista a pretensão de que os reformados fiquem abrangidos por deveres que são próprios e constitucionalmente previstos para os militares na efectividade de serviço. A quem é que o senhor secretário de Estado pretende enganar quando faz a afirmação transcrita?
 
«Abraçam a vida militar». Eis o cerne de toda a questão!
O senhor secretário de Estado está a partir do princípio de que a condição militar é também motivo para limitar direitos a cidadãos que, tendo servido durante longos anos a vida castrense, ao reformarem-se continuam amarrados às obrigações militares. É essa a volta que se pretende dar para retirar direitos constitucionais aos reformados. Esquece-se o senhor secretário de Estado que todos os direitos que os militares reformados têm, e foram conquistando desde a Guerra Peninsular, são uma forma reduzida de o Estado e a Nação compensarem três vertentes da sua conduta ao longo de uma carreira: a disponibilidade absoluta para o serviço em qualquer parte sem limitações de horários nem necessidade de pagamentos extraordinários; a dádiva da própria vida, se tal for exigido pelo serviço da Pátria; e a limitação do exercício de certos direitos de cidadania quando estão na efectividade de serviço. A reforma liberta o militar desta última grilheta que só o serviço activo justifica.
«Abraçar a vida militar» não é fazer voto de silêncio e de obediência; é jurar servir a Pátria enquanto se tem possibilidades físicas para o fazer. Depois, quando o corpo já só é um tropeço, quando só se pode fazer bom uso das faculdades intelectuais, calar os militares reformados, ao invés de os estar a honrar, está-se a brutalizá-los, retirando-lhes a dignidade da cidadania completa a qual já não pode ser compensada com a dignidade do serviço castrense.
 
Acima de tudo, é estranho que as chefias militares, segundo o despacho da Lusa, hajam trabalhado com o Ministério da Defesa neste anteprojecto e não tenham sabido interpretar o que de negativo ele contém quanto aos reformados. Trabalhar com o Ministério da Defesa não passa por aceitar tudo o que aquele pretende pôr em execução, a não ser que haja concordância, e, está claro, a ser verdadeira esta última hipótese, agindo de tal forma, mostrarem à saciedade o desejo de calar a voz da crítica e da denúncia salutar dos erros que eventualmente possam cometer ou deixar cometer. E, já agora, deixem os meus leitores que lhes coloque uma pergunta “ingénua”: — Haverá por aí algum precedente que justifique a afirmação?
 
Seja como for, a inconstitucionalidade do anteprojecto é mais do que evidente — como inconstitucional é mandar aplicar aos reformados o actual Regulamento de Disciplina Militar — e, só por isso, deve apelar-se para o Presidente da República para, na devida altura e se o que está errado não sofrer alterações, mandá-lo apreciar pelo Tribunal Constitucional.