Eu tenho um outro blog — mais intimista e menos virado para as questões sociais — o qual, de quando em vez, me serve para por lá deixar lembranças e memórias. Foi no dia 14 de Outubro de 2005 que escrevi o texto seguinte. Ao relê-lo, agora, pareceu-me ter cabimento no «Fio de Prumo». Tem cabimento mais pelo que não diz, mas fica intuído, do que por aquilo que diz.
Pode parecer, ao leitor menos atento, uma página lamecha, talvez romanceada, mas creiam, tudo o que nela relato é perfeitamente verdade. E sentido!
Já passaram quase dois anos e meio sobre a data em que redigi o texto. Não vejo qualquer necessidade de acrescentar ou retirar nada ao que está dito.
Aqui fica.
Não sei qual o motivo, mas talvez por causa desta maldita constipação de nariz, na noite de hoje, dormi menos horas que nas anteriores.
Levantei-me um pouco antes das seis da manhã, depois de quatro de bom repouso.
Acordei sob o efeito de um sonho maravilhoso. Estava a passear na minha rua, a rua onde se situa o prédio onde nasci. Porque eu nasci em casa.
Recordo-a sempre como um rio que corre ao contrário, dos Anjos para a Graça, para o largo dos Sapadores, no começo da Penha de França. É a rua Angelina Vidal. Curioso que, entre nós, se cultiva o hábito, inculto, de não averiguar quem foi a personagem que dá nome à artéria onde vivemos. Coisa de gente sem prontidão para o trabalho de saber! Pois bem, Angelina Vidal foi poetisa, ficcionista, dramaturga e jornalista republicana nascida na segunda metade do século XIX e falecida, depois de anos de luta pelos direitos políticos e de cidadania da mulher, em 1917.
Hoje, a minha rua, é feia; encanada entre edifícios do começo do século xx, de um lado, e «modernos» apartamentos dos anos 50, do outro.
Quando era pequenito, onde agora estão as casas «modernas», havia duas moradias térreas, uma oficina de trabalho metalomecânico e uma quinta de pinheiros altos que descia em rápido declive para a rua Damasceno Monteiro. Depois, por cima desta paisagem próxima, estendia-se o olhar até quase alcançar o rio, abarcando-se mais de um terço da velha Lisboa. Lá longe, na linha do horizonte, ainda se vislumbrava a cúpula da basílica da Estrela, mais perto, a meia distância, o edifício do Instituto de Medicina Legal e uma parte do Hospital de S. José; um pouco para a direita, o casario da antiga Escola de Guerra e o hipódromo onde os cadetes, montando cavalos, saltavam obstáculos (como essa visão terá sido, também, determinante para o meu futuro!); tendo já de me debruçar da janela, viam-se as árvores do Parque Eduardo VII; ali, à mão de semear, o Martin Moniz, a avenida Almirante Reis, o começo da «Baixa», fervilhando de gente. Essa era a cidade que me habituei a ver, mas a vida e o mundo estavam mesmo debaixo dos meus olhos, na minha rua.
Logo em frente da porta do prédio onde pela primeira vez chorei trabalhava-se do nascer do dia quase ao anoitecer, ligando barras de ferro (como é bonita a chuva de efémeras estrelas que saltam da soldadura eléctrica! Morrem antes de chegar ao chão, sem deixarem rasto...), martelando, torcendo metais; os sons cadenciados chegavam ao segundo andar ainda palpitantes...
O trânsito era pouco; a rua vivia os sons de dentro não se deixando encantar com os que velozmente por ela deslizavam. De manhã, por esta hora a que escrevo, ouvia-se a voz sonora da mulher da fava-rica. Depois, mais tarde, era todo o desfilar de pregões das vendedeiras de fruta (de, no seu tempo, os «figos de capa rota»), de hortaliça (alface fresquinha), do peixe «do alto» (a pescada e o carapau). À tarde eram só frequentes as peixeiras com as canastras à cabeça, batendo o salto da chinela no empedrado da rua, quando bamboleavam os quadris em jeito de onda sensual; os longos peixes-espada cinzentos dependurados a enfeitar-lhes as canastras enquanto, ao meio, sobressaíam os cachuchos rosados de mistura com amêijoas, berbigões, sardinhas, chicharros e besugos já moles de muito mexidos. Às vezes, anunciando a chuva para o dia seguinte, lá vinha o amolador, soprando de modo especial uma gaita que soltava sons de paradoxal melodia e estridência. Sem dias nem horas certas, passava o ferro-velho, enquanto o limpa-chaminés, enfarruscado, vasculho na mão e cordas ao ombro, oferecia os seus serviços de manhã. O fim da tarde era o tempo da camioneta que fazia a distribuição dos cântaros de água de Caneças tapados com uma rolha de cortiça embrulhada num papel verde-alface. De tempos a tempos, ronceiro na ascensão e veloz na descida, vinha o carro «eléctrico» que, ao subir, tinha paragem mesmo em frente da porta do prédio donde observava o mundo. Saía gente e raramente alguém entrava (não valia a pena pagar bilhete para chegar ao largo da Graça! Tempos difíceis!).
Um pouco mais a baixo e um pouco mais acima da oficina, as duas vivendas eram habitadas por oficiais do Exército e suas famílias (mais outro apelo a seguir a carreira castrense): o Sr. Engenheiro (coronel daquela Arma) e o Sr. Major. Lá no prédio já sobranceiro às escadinhas, na curva, vivia um outro... Chegou a general e malogradamente morreu em Angola num acidente de aviação que ceifou todos quantos o acompanhavam: chamava-se Silva Freire (dou comigo a pensar neste momento: — Com tantos oficiais na minha «frente», será que funcionaram como uma espécie de espelho para o meu futuro? Ter-me-ei deixado impressionar com o aparato das fardas ou prevaleceram a educação nos Pupilos do Exército e a influência familiar?).
Ao ver todos quantos calcorreavam a minha rua, sem infantário para onde ir, foi, olhando-os, com a testa encostada à vidraça, que aprendi, pela mera observação, a crueldade das diferenças sociais, a brutalidade dos sistemas repressivos. Na maior parte das vezes, a aprendizagem era lenta e inconsciente, mas, momentos houve, em que a marca se fez como quem, pelo ferro em brasa, garante a posse do animal.
Hoje, a grande janela dos meninos para o mundo tem um nome novo! Chama-se televisão. Deixa-os ver o que outros programam. O sonho e a fantasia, a realidade, a alegria e a tristeza são fornecidos a conta-gotas como quem dá remédios ou venenos. Mas a vidraça é tão grossa que o real ganha tons de brincadeira, por isso a violência pode ser disponibilizada sob todas as formas e em todos os momentos. Comigo foi doutro modo. Eu conto.
Comecei por me aperceber do trabalho, fosse mecânico, braçal, intelectual, comercial ou de qualquer outro tipo. Na minha televisão os actores eram reais. Se para eles fazia sol e calor, para mim também; o frio chegava ao mesmo tempo à rua e à minha janela, tal como a chuva e o vento. Estávamos todos de pé; eles, porque na rua, eu, porque no banquito que me dava tamanho para alcançar o parapeito.
A primeira experiência com a mão pesada da repressão foi vivida à minha janela. Caso curioso, sobre quem queria ganhar a vida fugindo aos impostos!
Realmente, mais ao fim da tarde que de manhã, lá vinham, quase todos os dias, do lado de Sapadores os polícias cívicos perseguir as vendedeiras as quais, não olhando a prejuízos, fugiam rua abaixo, deixando cair o que das cestas ou canastras estava mal seguro; por vezes, até um chinelo ficava para trás. De todos os «cívicos» um, à paisana, aterrorizava-as mais do que qualquer outro: o «seis dedos»! Era expressão que soava com a rapidez do relâmpago: — Vem aí o «seis dedos». Antes perder parte da mercadoria que ir para a esquadra do «seis dedos»! Era uma repressão que me incomodava. Não compreendia como tão poucos podiam assustar tantos!
O mais brutal encontro com a repressão, com a violência gratuita, injustificada foi no fim de tarde de 8 de Maio de 1945 (a data soube-a mais tarde, como é evidente!).
Espontaneamente, vinda não sei de onde, começaram a descer a minha rua duas ou três dezenas de pessoas, talvez mais. À frente, um homem com uma bandeira de Portugal presa num pau. Pareceu-me grande a bandeira, muito grande. Lá em cima, na curva, junto às escadinhas, estava parada uma camioneta da PSP. Daquelas que não tinham portas, de bancos corridos como certos carros «eléctricos». De lá saltaram os «cívicos» de cassetete em punho e vá de dispersar, à pancada, todos quantos davam largas à satisfação de a Alemanha se ter rendido. Quem mais apanhou foi o homem da bandeira. Eu já sabia (fora o meu Avô quem me ensinara) que aquele pano verde e vermelho com umas coisas no meio era a bandeira de Portugal (os homens paravam, punham-se direitos, tiravam o chapéu quando a tropa passava com a bandeira à frente ou, quando ao pôr-do-sol, à porta dos quartéis, ela descia do mastro grande ao som de cornetas). A bandeira era Portugal; a República Portuguesa.
Nessa tarde de Maio, na insegurança dos meus quatro anos ainda há pouco completados, rebentava-me no peito a fúria da injustiça a que assistia da janela da casa que me viu nascer. Segurava-me a minha Mãe, não fosse baldar do banquito de onde via o mundo.
Como poderia a polícia bater em quem levantava tão alto a bandeira tão grande de Portugal? Ele, esse herói desconhecido da minha meninice, quanto mais era sovado mais erguia a mão onde segurava o símbolo que muitos respeitavam. Caiu no empedrado do passeio, junto à porta da oficina de metalomecânica, mesmo em frente da minha janela, quando, cercado de «cívicos», lhe batiam na cabeça, no tronco e lhe davam pontapés. Inconsciente, arrastaram-no para a camioneta sinistramente parada lá em cima na curva, junto às escadinhas. A bandeira, essa ficou no chão, espezinhada e rasgada.
Ainda hoje sinto a revolta daquele momento, a onda que me sufoca, a raiva que me dói. Afinal, a bandeira, a grande bandeira que um herói desconhecido levantava bem alto em sinal de alegria por se terem rendido os tiranos, continua rasgada, mais espezinhada, quase esfarrapada, caída no passeio em frente da minha janela, onde já não há oficina de metalomecânica, mas uma loja de ocasião num prédio «moderno», dos anos 50 do século passado. Uma só vez, depois do fim de tarde desse longínquo Maio, ela se ergueu, restaurada, remoçada, drapejando alegremente ao sol de uma nova aurora. Uma só vez! Faltava pouco para fazer vinte e nove anos que ali estava, aos olhos de todos sem que ninguém a visse... Foi na madrugada de 25 de Abril de 1974. Eu já era oficial. Fardava como os outros da minha infância, mas sonhava um Portugal onde jamais alguém batesse no Homem da bandeira! Um Portugal justo, alegre, feliz, sem miséria e com trabalho para todos.
Quem foi que de novo derrubou, no empedrado do passeio, em frente da minha janela, a bandeira, a grande bandeira de Portugal? Quem matou, nos matou a esperança daquela madrugada? De que curva das ruas da vida e do mundo saíram estes cívicos que destroçaram os nossos sonhos? Que nos estão arrastando exangues, quase inconscientes, para um qualquer calabouço?
Desliguem as televisões, silenciem os rádios, tirem as letras aos jornais, mas deixem-nos sonhar com a Liberdade. Deixem as crianças do meu país crescer na esperança desintoxicada de terem uma janela para verem o mundo ser feliz.
Deixem…