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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

31.01.08

Mudam as caras não mudam as políticas


Luís Alves de Fraga

 
Há por aí alguns Portugueses a julgar que, pelo facto de terem mudado os ministros da Saúde e da Cultura, vão ocorrer alterações significativas nas políticas dos respectivos ministérios! Nem pensem nisso!
É necessário perceber que a chamada política de contenção na saúde pública não é uma invenção do anterior ministro. Não senhor. A contenção é uma determinação do programa de Governo de José Sócrates Pinto de Sousa. Quem quiser ver alterada a política tem de ver o primeiro-ministro abandonar o Governo. Só assim haverá, ou poderá haver, mudança.
 
Este Governo elegeu a redução do deficit como objectivo principal e, deste modo, tem de agir sobre as despesas; as despesas que julga supérfluas ou excessivas. Assim, a única coisa que vai variar com a mudança de ministros é a escolha dos cortes a fazer. Há urgências que vão fechar; podem é não ser as que o anterior detentor da pasta da Saúde escolheria, mas que fecham, fecham, sem dúvida! Há medicamentos — mais — que vão deixar de ser comparticipados; não serão os que a cegueira do anterior ministro decretava, mas serão outros!
O mal está em se ter elegido a correcção do deficit como objectivo governamental através do corte das despesas e do aumento da carga fiscal. Poder-se-ia ter atingido os mesmos fins, escolhendo o aumento da produção e da exportação de produtos nacionais. Quer dizer, escolheu-se a via do emagrecimento económico para reduzir o consumo público; podia ter-se escolhido a da engorda da economia para preencher o lado negativo do orçamento. Mas isso obrigava a uma revisão da fiscalidade, ter-se-ia de passar a tributar mais quem produz e a procurar evitar o desenvolvimento da economia paralela. Isso equivalia a meter a mão num vespeiro e ninguém quer tal coisa! Deste modo, podemos dizer, sem receio, que ao cabo de 32 anos sobre o 11 de Março de 1975 — próximo de 33 — a situação de privilégio dos grupos económicos está quase na mesma, se não estiver, em alguns casos, melhor (para eles, claro!).
 
A grande maioria de nós tem a memória curta e só se lembra dos factos recentes. Ao mesmo tempo, tem uma extrema relutância a fazer contas. Vou dar uma pequena ajuda.
Em 28 de Maio de 1926 iniciou-se a ditadura militar que, teoricamente, acabou em 19 de Março de 1933 (data da votação da nova Constituição Política); desta última em diante viveu-se o chamado período do Estado Novo que findou em 25 de Abril de 1974, ou seja, há 33, quase 34 anos.
A ditadura do Estado Novo, isto é, a ditadura do rigor orçamental vigorou cerca de 41 anos. Tempo de miséria para a média classe média e para o campesinato, mas tempo de enriquecimento para a pouca indústria existente, para os grandes agrários e para o patronato em geral, por causa das leis que impunham a aceitação de baixos salários, impossibilidade de greve, de direito de reclamação e facilidade de desemprego.
A desordem financeira e orçamental começou pouco depois das nacionalizações da banca, lá por volta de 1977 — por essa altura já Mário Soares falava em crise! Podemos, então dizer que faltam só 10 anos para se cumprir um ciclo de desordem igual, em duração temporal, ao ciclo de ordem orçamental.
Deixo no ar, para os mais astutos dos meus leitores — ou para os mais afoitos — a pergunta:
— Serão necessários mais 10 anos para chegar ao ponto de se nacionalizar, outra vez, os bancos? Para recuperarmos, durante alguns anos, um aparente vigor económico? Para reencontrarmos um novo caminho que nos leve à prosperidade relativa e fingida que se gozou durante os 10 anos de Cavaco Silva?
Responda quem quiser arriscar ou quem tiver artes de adivinhação.
29.01.08

Políticos corruptos, em Portugal?


Luís Alves de Fraga

 
Corrupção é coisa que não existe em Portugal! Isto, toda a gente sabe! Aliás, todos nós nunca convivemos com corrupção! Nem com ilegalidades! E o mal é este de sermos completamente virgens e, consequentemente, inocentes, em tais matérias.
 
Vou dar-me como exemplo. Filho de uma família da pequena burguesia urbana de Lisboa, nascido durante os anos difíceis da 2.ª Guerra Mundial, convivi, ainda criança, com as célebres senhas de racionamento e as infindáveis bichas, ou como agora se diz, fugindo ao brejeiro brasileirismo, filas do peixe e de outros géneros com que a minha Mãe tinha de alimentar a família. Claro que nessa época de falta e consumo controlado nunca houve falcatruas, nunca houve padeiro que fizesse misturas ilícitas na farinha, nem distribuidor de leite que tivesse urinado no dito para acrescentar mais um litro ao precioso líquido necessário ao alimento das crianças! Não, porque em Portugal sempre imperou a honestidade! Claro que não houve armazenistas que praticassem o açambarcamento para depois venderem mais caro o que haviam comprado a preço de dez réis o mel coado! Claro que nunca houve fortunas feitas de um dia para o outro e que ninguém sabe explicar! Claro que muitos homens da minha idade que usufruíram de uma excelente vida, quando os pais haviam nascidos tão pobres como Job, não fazem ideia nenhuma do que tenha sido corrupção e desonestidade! Foram milagres! Foram outras tantas Senhoras de Fátima que apareceram a uns pobres pastores conferindo-lhes poderes mágicos para ficarem ricos como Ali-Babá! Porque corrupção nunca houve em Portugal!
 
Senhores chega de ironia!
Eu cresci os meus primeiros anos a conviver com corrupção e com corruptos! Digo-o sem qualquer tipo de receio.
Quando ia, diariamente, às compras com a minha Mãe bem ouvia ela dizer ao talhante lá do bairro: — Senhor António, um quilograma de bifes, mas dos especiais — e lá ia o senhor António à câmara frigorífica especial tirar um bom naco de carne tenrinha e cortar os desejados bifes. Bifes que eram vendidos acima do preço tabelado, claro está! A minha saudosa Mãe, na ânsia de pôr na mesa o melhor, de alimentar a família com carne, peixe, manteiga, chouriço e outros artigos de qualidade extra, alimentava, também, contra-vontade, a corrupção dos pequenos comerciantes que, entretanto, já tinham vivendas nos arredores de Lisboa.
Foi com esta corrupção que eu cresci.
Com ela cresceram todos os jovens da minha geração e das gerações mais próximas. Habituámo-nos a ver pactuar com a falcatrua. Mais. Habituámo-nos a fazer parte da falcatrua. Mas, estávamos, vão-me dizer, em ditadura! Uma vez mais, tenho de dizer: claro! Estávamos em ditadura e se não houvesse esta cedência perante a corrupção iríamos comer os bifes mais duros que houvesse nos talhos de Lisboa, nos talhos de Portugal! Iríamos, nós a gente da chamada classe média remediada ou abastada, porque os pobres nem bife tinham para comer…
 
O medo da denúncia política cresci eu com ele, convivi com ele. Todavia, tive, também, sempre medo das consequências da denúncia da corrupção, por causa das consequências… Depois não havia à mesa aquelas coisas boas de que eu tanto gostava!
Foi este sentimento que moldou gerações e gerações de Portugueses e possibilitou que nuns se fosse implantando a cumplicidade do silêncio e noutros a certeza da impunidade.
 
Quando um afoito bastonário da Ordem dos Advogados vem dizer «existe em Portugal uma criminalidade muito importante, do mais nocivo para o Estado e para a sociedade, e que andam por aí impunemente alguns a exibir os benefícios e os lucros dessa criminalidade e não há mecanismos para lhes tocar. Alguns até ostensivamente ocupam cargos relevantes no Estado português» há cadeiras que estremecem como resultado do tremor que se apoderou de quem nelas está sentado. António Marinho Pinto não tem medo de comer bifes duros ou, até, de não comer bifes! Mas o tremor de quem treme não resulta do medo… provém da raiva. Raiva, porque alguém com responsabilidades na sociedade civil ousou fazer uma acusação que muitos fazem sem terem a audição do bastonário.
O impoluto engenheiro Cravinho já havia sugerido, em tempos, a aprovação de uma lei contra a corrupção… Despacharam-no para bem longe! Igual sorte teve Ferro Rodrigues. Será que vão mandar Marinho Pinto para outro lugar que não aquele que os seus pares lhe atribuíram?
 
O bastonário, face aos níveis de corrupção que todos os dias se verificam no nosso país, tinha de começar por algum lado e começou por atacar o Governo, pois dele dimana o exemplo — o mau e o bom. Agora, clama-se que Marinho Pinto tem de fazer prova, denunciando. Ora essa! A prova de inocência tem de ser feita pelo acusado; por todos quantos, como há sessenta anos ocorreu, de um dia para o outro, deram sinais exteriores de riqueza! Cabe ao Estado identificar esses sinais e, se o Estado nada receia, porque nada receiam os seus agentes, deve pedir as explicações que entender.
 
Claro que Marinho Pinto sabe, tão bem como eu sei, que as suas palavras só vão servir para ocuparem um parágrafo — pequeno — na História da actualidade, porque Portugal, todo o Portugal, todos nós, é uma Nação de corruptos. Corruptos, porque colaboramos passivamente com a corrupção ou porque somos agentes activos da mesma. Cada um que escolha o lugar que mais lhe convém!
Eu, tal como o bastonário da Ordem dos Advogados, já optei: acuso. O leitor fará como melhor lhe convier.
21.01.08

Ingresso na carreira docente


Luís Alves de Fraga

 
Foi aprovado hoje, dia 21 de Janeiro, o diploma que impõe a avaliação, num exame, dos candidatos a docentes do ensino nacional.
Naturalmente, a posição que vou defender pode não estar politicamente correcta, contudo, com a liberdade que sempre advoguei para os outros e para mim mesmo, defenderei a ideia que, julgo, terá presidido à elaboração do decreto.
A notícia pode ser lida on-line no Educare.pt jornal electrónico que recebo todos os dias no meu computador, ao fim da tarde.
 
Concordo com o princípio que presidiu à elaboração do diploma, porque, sendo professor do ensino universitário, há muitos anos me apercebi da fraca qualidade dos alunos que chegavam e chegam ao fim dos cursos secundários e dão entrada nas universidades. Muitos, mal sabem escrever e a maioria não sabe fazer as mais elementares contas sem recurso a uma máquina de calcular. Isto é inadmissível!
 
É mais do que evidente — para quem já leu um ou dois textos aqui deixados por mim — que, desde a mais tenra idade, não simpatizei com o Estado Novo, nem com o regime que ele impôs. Por isso, o que possa parecer uma apologia desse sistema ditatorial é meramente ilusório; não posso é deixar de reconhecer que o salazarismo se fundamentou na existência de excelentes técnicos que fizeram o seu melhor em prol do regime que defendiam e serviam. Uma das áreas onde isso mesmo ficou mais claramente vincado foi no ensino. Ali, os professores eram, na perspectiva fascizante do Poder político, de elevada craveira e competência. Uma competência que a Democracia, em trinta e três anos de existência, ainda não conseguiu adquirir e, muito menos, pôr em prática.
Hoje o cidadão com o 12.º ano de escolaridade sabe menos, em muitas áreas do conhecimento, do que sabia uma criança alfabetizada com o 4.º ano de frequência escolar há 40 ou 50 anos atrás. Já não falo na comparação entre um aluno com o 11.º ano de escolaridade daquele tempo e um de igual nível da actualidade. Paradoxalmente, em 30 anos a taxa de analfabetismo baixou, mas subiu a taxa de ignorância ou, como agora se diz, de competências adquiridas.
 
Se olharmos para trás verificamos que aos professores do ensino pré-escolar e do ensino elementar ou primário não lhes era pedido mais do que o 9.º ano de escolaridade e a frequência de um curso que, com estágio incluído, não ia além de três anos. Todavia, ao professor do ensino secundário era-lhe exigido um curso superior universitário — com a duração mínima de cinco anos — e mais as chamadas, em linguagem vulgar, pedagógicas, ou seja a aprovação num curso de Ciências Pedagógicas com a duração de um ano lectivo e mais outro de estágio.
Apoiado neste escol de docentes, o Estado, através de um Governo de mão pesada, definiu, com grande clareza e muita objectividade, os programas do ensino. E aí não havia margens para flexibilidades: ou se ensinava e se sabia ou se falhava por completo, tanto mais que os exames do ensino secundário liceal eram de âmbito nacional — ainda que os do ensino técnico estivessem sujeitos a uma maleabilidade maior e ficassem pela competência das respectivas escolas. E deve ter-se em conta que este rigor só era possível por estar apoiado no sistema de livro único; livro que, em algumas matérias, chegou a durar décadas sem a mínima alteração!
Este sistema tinha vícios. Claro que os tinha e nem outra coisa era de esperar de uma ditadura! Mas possuía virtudes
 
Quando a Democracia foi dada pelos militares aos Portugueses havia que destruir o «edifício educativo» — mantê-lo era corroer o novo regime pelo lado de dentro, para além de ser absurda a sua conservação — mas devia ter-se tido o cuidado de desmantelá-lo pedra a pedra, tijolo a tijolo e não, como se fez, através de uma muito grande implosão. Dever-se-ia ter tido a cautela de manter as virtudes deitando fora os vícios.
O mal está feito e nada pior do que chorar sobre o leite derramado… Poupem-se as lágrimas, mas haja o cuidado de saber tirar lições do estrago que se fez! Ora, quer-me parecer que, com algumas décadas de atraso, se está, agora, a começar a remediar alguns dos erros cometidos.
Os docentes que vão educar e instruir as gerações do futuro têm de se mostrar competentes e capazes da missão elevada e nobre que lhes cabe; os docentes que já estão, há anos, no desempenho das suas funções têm de provar que merecem continuar na sua actividade cívica. No entanto, cabe ao Governo ir mais longe. Tem de definir programas apropriados e exigentes e não pode, em nome de nenhuma estatística, sacrificar níveis de conhecimento. Os alunos têm de saber, porque ensinados por professores competentes e têm de ser educados, também, para o exercício da cidadania, sem esquecer que esta passa pela disciplina, ordem e cumprimento das obrigações que cabem a cada um.
 
Por algum lado tem o Governo de começar… Pois que comece, mas não pare!
17.01.08

O Banco de Portugal


Luís Alves de Fraga

 
Corre na Internet, há já bastante tempo, uma informação que não sei se é verdadeira: o Governador do Banco de Portugal, Dr. Vítor Constâncio, aufere mais salário anual do que o Presidente do Banco Federal Norte-americano.
Complementarmente diz-se que os administradores do Banco de Portugal recebem verdadeiras pequenas fortunas, estejam ou não a exercer funções, isto é, mesmo já depois de reformados.
 
Não quero acreditar na verdade desta informação. Ela tem de ser falsa!
Quando, no país, se «aperta o cinto» a torto e a direito, se exigem os maiores sacrifícios às populações que ficam sem serviços hospitalares de urgência, se congelam progressões de carreira, se retiram pequenas regalias a determinadas profissões, nomeadamente a castrense, permitir que se paguem exorbitâncias escandalosas a uns quantos senhores só pode ser ou mentira ou uma afronta, mesmo tendo em conta a sua competência profissional. Ganharem mais do que se paga a detentores de cargos idênticos nos países mais ricos do globo, só pode ser possível por mero engano do Estado.
 
Afrontoso é permitir que se pratiquem salários, mesmo na actividade privada, que excedam determinados valores medianamente aceitáveis. Não se pode invocar, como justificação, a livre concorrência do mercado, porque, se assim for, tem de se perguntar onde está a acção moralizadora do Estado. Ela não pode existir para equilibrar o orçamento à custa do sacrifício do cidadão comum e ausentar-se quando convém para não interferir nas benesses por outros alcançadas. O Estado, através dos Governos e dos governantes, tem de ser um juiz imparcial e, tanto quanto possível, equitativo. O Estado tem de fazer funcionar mecanismos fiscais que recaiam sobre quem aufere salários exorbitantes para os corrigir rumo a valores que estejam em consonância com um padrão previamente determinado.
Se o Estado não exercer a função de estabilizador da justiça social, se se demitir do exercício dessa função está a emitir sinais perceptíveis por todos quantos sejam capazes de fugir às suas obrigações sociais. Por outras palavras, está a deixar que cada um e cada qual roube, a seu bel-prazer, o próprio Estado. Depois, não pode exercer uma feroz perseguição sobre todos os que não conseguem ou não querem agir com desonestidade.
 
A liberdade do mercado pode existir, mas ela será fonte permanente de injustiças se não for corrigida pela acção fiscal do Estado, tirando uma elevada fatia a todos quantos ganham em excesso. A correcção deve ser orientada para uma redistribuição indirecta de benefícios sobre os grupos sociais mais débeis, quer através da rede de instrução pública, da rede de saúde pública ou mesmo da rede de segurança social, em particular reforçando os rendimentos de todos quantos atingiram a reforma com baixos valores financeiros.
 
Este tipo de Estado só não se reimplanta na Europa, porque a União, como um todo, privilegia a economia em detrimento da sociedade. A Europa do Mercado Comum Europeu era uma Europa para satisfazer e ampliar a classe média destruída pela 2.ª Guerra Mundial; a Europa da União Europeia é uma Europa para beneficiar os grandes grupos financeiros europeus e globais. Os objectivos distorceram-se e dessa distorção estamos nós, os Portugueses, a sofrer as consequências, porque nos dez anos de cavaquismo não se soube, nem quis, fazer a grande viragem para o modelo que já se adivinhava. Continuou, como se continua, a apostar no investimento que se não reproduz: o das grandes obras públicas. Mas isso é matéria para um outro apontamento.
06.01.08

Reis, Presidentes e Índios


Luís Alves de Fraga
 
Juan Carlos de Espanha é um homem pouco mais velho do que eu (somente mais quatro anos, feitos no dia de ontem). Podemos dizer que somos da mesma geração. Várias diferenças nos separam. As principais são que ele é rei de Espanha e eu sou rei de mim mesmo, ele é o generalíssimo dos Exércitos de Espanha e eu sou um coronel da Força Aérea Portuguesa na situação de reforma, ele tem uma significativa fortuna pessoal e eu vivo de uma parca pensão e do pagamento das aulas que lecciono na Universidade, ele vive num palácio e eu num pequeno apartamento, ele tem empregados para o servirem e eu tenho, duas vezes por semana, uma auxiliar de trabalhos domésticos, para fazer as limpezas e lavagens mais pesadas, ele é convidado para grandes acontecimentos nacionais e internacionais e eu só sou convidado para lançamentos de livros, ele diz-se católico apostólico romano e eu sou agnóstico. Haverá outras diferenças, mas não vale a pena enumerá-las.
Com esta aparentemente longa introdução quero deixar claro que sou capaz de o perceber enquanto homem, porque vivemos as mesmas épocas, os mesmos acontecimentos e, curiosamente, quase teremos frequentado os mesmos ambientes, pois foi criado e educado bem próximo de Lisboa, no Estoril, conhecendo por dentro a ditadura de Salazar enquanto terá estudado a de Francisco Franco.
 
Há já várias semanas foi notícia, diria, mundial, a célebre interrogação de Juan Carlos a Hugo Chavéz ocorrida na cimeira ibero-americana. Não quis, na altura, pronunciar-me e trazer para aqui a polémica e popular questão, porque era necessário deixar arrefecer as emoções. Julgo que chegou o momento oportuno para os meus habituais leitores tomarem conhecimento do que penso sobre a ocorrência.
 
Juan Carlos, Rei de Espanha por vontade do generalíssimo Francisco Franco — que assumiu o Poder de forma ilegítima e sanguinária à frente de uma revolta militar contra o Governo republicano, legal e legítimo, o qual, por seu turno, se havia sujeitado ao voto popular depois do rei Afonso XIII ter fugido e deixado cair o trono — é um dos poucos monarcas existentes numa Europa fundamentalmente republicana. As pernas do trono onde se senta Juan Carlos mergulham muito fundo em milhares de mortos resultantes de uma tremenda guerra civil e de uma brutal repressão que se prolongou, em assassinatos políticos, até 1945. Juan Carlos era já, então, um menino crescidinho e com alguma capacidade para perceber o que acontecia no seu país. A Espanha aceita a Monarquia, porque ainda tem bem presente o que foi a guerra fratricida que opôs republicanos a tradicionalistas. A Espanha não discute o regime, porque ainda não sararam por completo as feridas deixadas pela guerra e as perseguições que se lhe seguiram; não discute, porque, acima de tudo, actualmente, na União Europeia, é insignificante e indiferente um Estado ser Monarquia ou República — é o que já está, não vale a pena mudar!
Isto, que é pacífico — ou quase — para os Espanhóis, não o é, todavia, para as antigas colónias americanas. Com efeito, a luta pela independência fez-se, em cada Estado da América, para libertar o território da alçada de uma coroa e para impor um novo ideal de regime que era, no século XIX, o republicano. A República representava, para os Americanos, uma libertação do colonialismo e, ao mesmo tempo, uma entrada na democracia, ou seja, no governo do Povo pelo Povo. O Brasil foi o único Estado sul-americano que se libertou da situação colonial, mantendo um regime monárquico.
 
Olhando para o imenso Brasil, percebe-se a mistura étnica que por lá ocorreu durante os 300 anos de colonização portuguesa e percebe-se, acima de tudo, que mesmo tendo havido formas de genocídio de índios elas foram atenuadas — graças, em especial à acção da Companhia de Jesus. Por outro lado, percebe-se, também, que a riqueza esteve sempre nas mãos dos colonos ou dos seus descendentes. Contudo, se olharmos para a maioria dos Estados oriundos da colonização espanhola já se não nota um tão elevado grau de miscigenação étnica: há uma bem demarcada diferença entre colonos europeus e índios americanos. Por outro lado, percebe-se que a riqueza está só nas mãos dos descendentes dos colonos europeus e que a pobreza é domínio dos índios. Naturalmente, isto não invalida a existência de pobres entre descendentes de velhos colonos; mas a condição de pobre é apanágio dos índios. Em comum, todos os Estados ibero-americanos têm o facto de a independência ter sido proclamada pelos grupos economicamente dominantes em cada um deles.
 
Arrumado este aspecto, notemos a curiosidade da seguinte situação: no Brasil foi um filho do Rei quem proclamou a independência; nos Estados colonizados pelos Espanhóis foram os grandes agrários ou os seus representantes quem lutou pela independência. Acresce que Portugal é hoje uma República e a Espanha uma Monarquia — o regime político que oprimiu e colonizou o Brasil já não vigora em Portugal, contudo subsiste em Espanha.
 
Hugo Chávez, independentemente do seu comportamento político e dos seus ideais sócio-económicos, descende de índios, logo, do grupo social mais oprimido tanto pela antiga metrópole colonizadora como pelos descendentes dos colonos bem instalados. Hugo Chávez é o porta-estandarte de um todo social que foi sendo brutalmente morto, espoliado do seu território e reduzido à miséria. E isto é histórico; isto é a verdade de um comportamento que leva cerca de 500 anos de existência.
Quando o Rei de Espanha interroga o Presidente da República da Venezuela sobre a razão pela qual ele não se cala tem por trás de si, pelo menos, 300 anos de colonização opressora e disso Juan Carlos deveria ter-se lembrado antes de abrir a boca.
Acresce que a discussão entre Zapatero e Chávez resultava da crítica que o segundo vinha fazendo ao sistema neoliberal hoje em desenvolvimento — um sistema que, de novo, está pronto a colonizar e submeter povos e Estados em nome da liberdade de produzir e comerciar. Era uma discussão entre condutores de políticas — já que Chávez, constitucionalmente, é o presidente do Executivo venezuelano — e não entre Chefes de Estados, daí que a intervenção de Juan Carlos tenha pecado, logo, por inoportuna.
 
É conhecida a tendência espanhola para o tutear — prática que entre nós não é vulgar — no entanto, mesmo que em privado Hugo Chávez e Juan Carlos se tratem por tu, é diplomaticamente incorrecto que o Rei de Espanha tenha tratado um Chefe de Estado soberano e independente por tu. Esse tu, dito naquele momento, naquelas circunstâncias e naquele tom, soa a uma superioridade histórica que não é admissível.
Juan Carlos deixou transparecer o pior de si, da sua geração, da sua arrogância, quando interrogou imperativamente Hugo Chávez que se terá sentido mais índio, mais colonizado, mais subordinado do que o necessário e conveniente. Os povos do mundo inteiro que foram vítimas de colonialismo devem — e com razão — ter-se sentido solidários com o Presidente da Venezuela. Juan Carlos, um Rei aparentemente moderno, deixou cair a máscara da simpatia, do companheirismo e do populismo para se tornar digno de um qualquer seu antecessor tirânico, despótico e arrogante.
À luz da História e por causa de todas as implicações que expus, não ficaria mal a Juan Carlos apresentar um pedido formal de desculpas a Hugo Chávez ou, por um qualquer outro processo, mostrar ao mundo que sentia o peso do seu erro enquanto homem, Chefe de Estado e descendente de uma família com velhos pergaminhos.
 
Será que temos de continuar a admitir que de Espanha não nos chega nem bom vento nem bom casamento?