25.03.07
As conferências, o salazarismo e as provocações
Luís Alves de Fraga
Têm estado a decorrer, em Lisboa, nas antigas instalações da vetusta Cooperativa Militar — hoje um dos edifícios do Instituto de Acção Social das Forças Armadas (IASFA) — um ciclo de conferências subordinado ao título genérico «A oposição político-militar ao Estado Novo, no 3.º quartel do século XX», tendo como esteios temporais mais marcantes «O golpe da Sé», «A abrilada de 1961» e «O assalto ao quartel de Beja».
Quer a designação, quer o conteúdo do desdobrável que faz publicidade ao evento — que acolheu mais de meia centena de assistentes tanto no dia 20 como no dia 22 do corrente mês de Março (vai continuar nos dias 27 e 29) — são suficientemente explícitos: o tema central do colóquio (porque de um colóquio se trata) é a oposição político-militar ao Estado Novo, no 3.º quartel do século XX. Isso se desejava ver analisado e isso se quer ver discutido por quem estudou ou viveu o tempo em questão.
Se na primeira sessão — do meu ponto de vista — só um orador conseguiu atingir, em absoluto, o objectivo proposto, falando da oposição, de quem a protagonizava e como o fazia para, depois, explicar o que procurou ser o «Golpe da Sé» — os restantes expuseram ou factos já conhecidos ou particularismos por eles vividos, mas sem fazerem a ligação ao contexto geral da época — já na segunda tudo descambou para a grande confusão. Com efeito, um dos oradores, o primeiro — tenente-coronel piloto-aviador reformado, Brandão Ferreira — invocando o facto se estar a enviesar a análise da História e dos acontecimentos, optou por fazer uma exposição generalista — enviesada do princípio ao fim — e enaltecedora das qualidades de Salazar e do Estado Novo.
Parecia que estávamos a viver um dos comícios «espontâneos» dos anos cinquenta do passado século quando algum «situacionista» entoava loas ao ditador, que o escutava com enfado, sabendo antecipadamente o final das louvaminhas.
O grande pecado deste reformado oficial é que confunde nacionalismo, patriotismo e salazarismo, metendo tudo no mesmo saco e distribuindo a bel-prazer cada ideia misturada nas restantes, tal como o fizeram os propagandistas baratos que construíram o precário edifício do Estado Novo.
Patriotas houve-os sempre e não foi Salazar quem os inventou; nacionalistas nem sempre existiram e os que surgiram foram fruto das correntes fascizantes que assolaram a Europa e, em certa medida, o mundo, nas décadas de trinta e quarenta do século passado; salazaristas, como é evidente, só surgiram quando, entre nós, se desenvolveu o culto da personalidade de António de Oliveira Salazar. Mal vão os contemporâneos que não sabem destrinçar o saudável e desejável patriotismo do abjecto nacional-salazarismo.
Se Brandão Ferreira é, sem sombra de dúvida, um high-profile do salazarismo contemporâneo, já o coronel piloto-aviador reformado, Nabais quis passar, no colóquio, por um low-profile desse mesmo salazarismo que elogiou com cautelas que poderiam ser tomadas como uma certa forma de se esconder atrás de quem faz História científica e imparcial.
No meu entendimento, a Democracia é, também, o regime da brandura e do cinismo; a primeira, porque admite todo o tipo de especulações e desregramentos verbais, apoiando-se somente na crença da operacionalidade do Poder Judicial… Mero engano! O segundo, porque sendo um regime ingénuo, se deixa enganar por todos quantos, rodeados de falsas roupagens democráticas, cinicamente se preparam para o apunhalar. E foram embalados por estes sentimentos pouco acautelados e cautelosos que os organizadores do colóquio permitiram a presença de comunicações provocatórias. Tivessem agido como no tempo de Salazar — o Salazar louvado pelos dois oradores — e lhes aplicassem a censura prévia, talvez começassem a compreender o que o Estado Novo fez a quem dele discordava. Mas voltemos ao tema do colóquio.
Não seria interessante que todos quantos apresentaram — e vão apresentar — comunicações estivessem do mesmo lado da barricada, isto é, fossem, em uníssono, façanhudos opositores da ditadura; faltaria o chamado «contraditório». Mas teria havido necessidade de definir o que se deveria compreender por «contraditório».
Realmente, quando se pretende falar e ouvir falar da oposição político-militar ao Estado Novo, o «contraditório» não é o louvor desse hediondo regime. Isso não contradita a oposição. O que, em meu entender, se contrapõe àquela é a enumeração das razões que originaram os falhanços dos golpes e das intentonas. Perceber o que correu mal, o antecipado conhecimento das autoridades, as traições, os desentendimentos entre conspiradores, tudo isso é que constrói a teia «contraditória», a explicação dos factos. Só assim se pode fazer a História dos movimentos político-militares de oposição ao Estado Novo, no 3.º quartel do século XX.
Dar voz aos saudosos do salazarismo é colaborar com o próprio salazarismo ao abrigo de uma Democracia que se não respeita. Ponham-se os olhos na Bélgica onde, ainda há trinta anos atrás existiam Belgas a quem a Democracia não reconhecia o direito de cidadania, excluindo-os dos actos eleitorais por terem sido colaboracionistas durante a invasão nazi e, contudo, o Estado belga mantinha, já nessa época, relações diplomáticas estreitas com a Alemanha Democrática. Estas são Democracias que se respeitam e fazem respeitar… A nossa, acoitada por trás das silvas dos brandos costumes, deixa-se corromper, tal como as falsas virgens se prostituem, sob a capa de vários amores, nos vãos de escada, nos quartos de hotel e nos bancos dos automóveis de todos quantos as querem usar sem a elas juntarem as suas vidas.