28.01.07
Um país à venda...
Luís Alves de Fraga
A “verdadeira” Revolução Liberal só ocorreu, no nosso país, em 1834, com a vitória de D. Pedro IV sobre o seu irmão D. Miguel I. Foi a partir dessa data que se aplicou a legislação concebida e feita aprovar por Mouzinho da Silveira, quando ainda os liberais estavam nos Açores, a qual punha fim aos princípios económicos e sociais do Antigo Regime e abria as portas ao novo. Foi o corte com a tradição; foi um acto realmente revolucionário. Porque os defensores mais aguerridos do absolutismo — excluindo, claro, uma certa fidalguia provinciana e uma nobreza bem instalada — era o clero e, em especial, a ordens religiosas, a única forma de fazer vencer a mudança e o salto para a modernidade passou por cercear-lhes a força, extinguindo-as. Deste modo, de um dia para o outro o Estado ficou senhor de todos os bens que até então pertenciam às poderosas ordens de frades e freiras. Caiu-lhe no regaço uma imensidão de propriedades agrícolas, riqueza fundamental num país que, na prática, não tinha indústrias. Mas o fim do absolutismo, entre outras coisas, alterou, também, o conceito de soberania — que do monarca passou para o Povo — e deixou aquele somente proprietário dos bens que pertenciam à Casa de Bragança e não de todo o território nacional. Quer dizer, a Nação ganhou corpo territorial e ao Estado cabia o governo de tudo o que era de todos.
Foi deste modo que começou a desgraça moderna de Portugal. Rapidamente os vencedores da guerra civil, que opusera os dois irmãos, se quiseram ver ressarcidos do empenho que haviam posto na vitória e vá de comprar, a preço exíguo, os bens das ordens religiosas. Atrás deles outros, muitos, se seguiram, mas, agora, esses bens territoriais passaram a servir para, com a receita obtida, cobrir os sucessivos défices da gestão do Estado. Gestão caótica, porque os favores políticos feitos aos grandes e médios líderes partidários se pagavam com empregos vitalícios nas repartições e secretarias do Estado. Passou a funcionar não a competência, mas o “empenho” o qual, na linguagem corrente, corresponde à “cunha”.
Claro que, para dar abrigo a muitas instalações do Estado — secretarias, hospitais, tribunais, escolas e quartéis para o Exército — os edifícios das antigas ordens religiosas foram preciosos... Já estavam construídos, bem conservados, bastava adaptá-los à nova função.
Até se esgotar o último hectare de terreno das espoliadas ordens religiosas, o Estado liberal foi vendendo para cobrir o “buraco” financeiro. Acabada a terra passaram os governantes a usar de outros expedientes: pedir emprestado ao estrangeiro, dando como garantia os rendimentos das alfândegas — ainda não havia autoestradas! — primeiro, as das colónias, depois as das Ilhas Adjacentes e, por fim, as do continente. Tudo servia para, em nome do défice, fazer dinheiro que pagava a imensa corte de funcionários públicos que pouco ou nada fazia e quando fazia era trabalho inventado ou consequência do estado caótico a que chegara a gestão nacional.
A modernização, trazida pela mão de Fontes Pereira de Melo, engenheiro militar, bem intencionado, mas cada vez mais, durante a vida, sequioso de Poder, fez-se da maneira mais simples que imaginar se possa: abrindo as portas ao investimento estrangeiro — deste Portugal de mão-de-obra barata — para aqui rasgar estradas e lançar carris de ferro para se fazer uma rede viária que ligasse o Norte ao Sul e o interior ao litoral. Estradas e ferrovias que pertenciam a sociedades anónimas, mas não ao Estado!
Cresceu, também, a construção civil através da criação de um ministério até então desconhecido: o das Obras Públicas.
Dinheiro? Não era preciso! Vinha de fora, emprestado a juros altos sob a esperança de um rendimento que surgiria com a industrialização do país. Industrialização que, à escala europeia, nunca se fez!
Será necessária a comparação explícita entre o que ocorreu em Portugal até há cem anos e a dolorosa actualidade? Julgo que não, porque em estado de novo só surgiu a aparência, pois que o conteúdo é igual.
Do que foi nacionalizado na sequência do 11 de Março de 1975 — nacionalização imprescindível para se conseguir a democratização pacífica tal como, em 1834, foi necessária a extorsão dos bens da Igreja para lhe quebrar o ímpeto reaccionário — já pouco ou nada resta para vender. Na ausência de bens nacionalizados, vende-se tudo o mais, tal como se venderam as alfândegas! Agora, vende-se a administração dos aeroportos, a ANA, conforme disso nos dá notícia o Correio da Manhã. Mas a ANA é pouco perante a necessidade de construir um aeroporto na Ota e, vai daí, vende-se o aeroporto, mesmo antes de ele estar construído... Importante é dar a ilusão de emprego e desenvolvimento enquanto as obras — que são muitas — se vão fazendo. É mais um “balão de oxigénio” aparente na débil economia nacional. “Balão” idêntico ao que foram as autoestradas no tempo do Governo Cavaco Silva — o nosso Fontes Pereira de Melo do final do século XX.
Mas os apelos esganiçados das várias bocas, que o Estado alimenta sem necessidade e por puro prazer de nelas encontrar louvaminheiros que aplaudem os que nos desgovernam, exigem mais, mais vendas, mais entregas a quem quiser comprar. E o insólito — se é que neste país já alguma coisa é insólita! — aconteceu.
Para que não haja dúvidas transcrevo, tal qual como me chegou às mãos, vindo, segundo parece, do Diário da República:
«DATA : Segunda-feira, 22 de Janeiro de 2007
NÚMERO : 15, SÉRIE I
EMISSOR : Presidência do Conselho de Ministros
DIPLOMA/ACTO : Resolução do Conselho de Ministros n.º 11/2007
(Rectificações)
SUMÁRIO : Desafecta do domínio público parte do PM 22/Lagos, designado por anexo à Messe de Oficiais de Lagos
PÁGINAS DO DR : 560 a 561
Resolução do Conselho de Ministros n.º 11/2007
Considerando que a política de modernização das Forças Armadas prossegue objectivos de reorganização das suas instalações militares, de modo a garantir elevados padrões de eficácia e eficiência, alcançados com o reaproveitamento do património excedentário ou inadequado afecto à defesa nacional;
Considerando que a rentabilização dos imóveis, disponibilizados pela contracção do dispositivo militar, visa gerar meios que possibilitem a melhoria das condições de funcionalidade e de operacionalidade requeridas pelas missões das Forças Armadas, nomeadamente através da concentração de infra-estruturas em zonas adequadas, libertando assim os espaços urbanos que, pelas suas características, se revelam inadequados à função militar;
Considerando que o Estado, pela Manutenção Militar, estabelecimento fabril dependente do Estado-Maior do Exército, é proprietário do prédio designado «anexo ao PM 22/Lagos - Messe de Oficiais», localizado na Avenida dos Descobrimentos, freguesia de São Sebastião, cidade e município de Lagos, com a área coberta de 1100 m2 e descoberta de 600 m2, composto de rés-do-chão, 1.º e 2.º andares, cada um com a área bruta de 1100 m2, e sótão com a área bruta de 600 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º 18116, a fl. 58 do livro B-48;
Considerando que o referido prédio integra o domínio público militar, sendo que qualquer outra utilização fora daquele âmbito torna necessária a sua desafectação daquele domínio;
Considerando que é neste momento claro que a mesma parcela não é necessária à instalação de qualquer outra instituição ou serviço públicos, atendendo à sua localização e características;
Considerando ainda que se antevê a possibilidade de alienação onerosa da mencionada parcela, com os inerentes benefícios financeiros e contributo para a gestão racional do património do Estado;
Considerando, por fim, que, conforme o disposto no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 32/99, de 5 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 131/99, de 28 de Agosto, a desafectação do domínio público militar é feita por resolução do Conselho de Ministros:
Assim:
Ao abrigo do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 32/99, de 5 de Fevereiro, alterado pela Lei n.º 131/99, de 28 de Agosto, e nos termos da alínea g) da Constitutição, o Conselho de Ministros resolve:
1 - Desafectar do domínio público militar o prédio designado «anexo ao PM 22/Lagos - Messe de Oficiais», localizado na Avenida dos Descobrimentos, freguesia de São Sebastião, cidade e município de Lagos, com a área coberta de 1100 m2 e descoberta de 600 m2, composto de rés-do-chão, 1.º e 2.º andares, cada um com a área bruta de 1100 m2, e sótão com a área bruta de 600 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º 18116, a fl. 58 do livro B-48. 2 - A presente resolução do Conselho de Ministros produz efeitos à data da sua aprovação.
Presidência do Conselho de Ministros, 21 de Dezembro de 2006. - O Primeiro-Ministro, José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa.»
Embora a resolução do conselho de ministros me tenha chegado ao conhecimento via Internet, já ao grande público foi o Diário de Notícias quem divulgou o resultado prático da mesma. Quem duvidar — como eu duvidei — pode consultar aquele matutino.
Vai longo o apontamento de hoje, mas é necessário para que se possa apreciar a tontaria, a sanha, a vontade de a tudo deitar mão que este Governo têm.
O edifício a que se refere a resolução do conselho de ministros sempre serviu — e nem outra coisa se podia esperar — para messe militar, em Lagos. Não se trata de uma instalação marcadamente militar. Não. É um edifício construído de raiz para servir como unidade hoteleira. Por ele passam e passaram centenas, talvez um milhar de pessoas em cada ano, gozando férias no Algarve por períodos de quinze dias.
Este edifício não serve só os oficiais do Exército. Serve os oficiais e outros militares dos três ramos das Forças Armadas. É uma instalação que proporcionou a possibilidade de muitos militares e suas famílias terem umas férias por valores compatíveis com os seus baixos rendimentos.
Sem qualquer vergonha, posso afirmar que fui daqueles que vários anos passei por aquela instalação, nas férias da Páscoa! E fi-lo, porque o rendimento do meu agregado familiar não é suficiente para gozar os prazeres de um safari em África ou as delícias da passagem de ano no Brasil!
A Manutenção Militar, estabelecimento militar com autonomia financeira e administrativa, gere as messes do Exército e cobra aos militares dos três ramos das Forças Armadas os valores que bem entende de forma a poder ser convidativa a sua utilização e cada qual usufrui da vantagem de um serviço que não visa o lucro, mas tão somente as receitas necessárias à conservação do património e ao pagamento do pessoal que emprega. Mas, a esse património, quer o Governo deitar mão para o vender de forma a cobrir a má gestão que faz, ou outros fizeram, das receitas provenientes dos impostos ou dos dinheiros recebidos da União Europeia.
O edifício em causa pode valer hoje, segundo o matutino que dá a notícia, cerca de seiscentos mil contos. O que é isso? O que é isso comparado com os fabulosos salários pagos aos administradores da Caixa Geral de Depósitos, ao governador do Banco de Portugal, aos gestores da EDP, da GALP e de outras instituições onde o Estado se faz representar?
Seiscentos mil contos é, afinal, o preço do ódio que o Governo manifesta pela instituição militar e por todos quantos a servem ou serviram, nada mais!