Cusquice de fim de ano
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Deixou, na passada sexta-feira o cargo de Chefe do Estado-Maior da Força Aérea (CEMFA) o meu Amigo general Taveira Martins.
Não tenho rebuço em me afirmar seu amigo, porque os anos de contacto e a muita camaradagem que mantivemos nas mais diferentes situações sedimentaram uma amizade franca e aberta entre nós os dois. Aliás, não é difícil ser amigo do Taveira Martins, dado o seu temperamento extrovertido, alegre e optimista. As dificuldades para ele são desafios que ultrapassa com ligeireza, embora ponderadamente. Ele consegue manter uma atenção de 360º em permanência. Não lhe escapam os pormenores e sabe escolher as palavras certas para utilizar no momento exacto. Sempre foi assim.
Mais moderno do que eu na entrada para a Academia Militar, ainda por lá o conheci, embora o meu “estatuto” de cadete antigo levasse a que pouca ou nenhuma privação houvesse entre nós. Encontrámo-nos, dez anos depois, já ambos casados e com filhos, em 1973, na colónia de Moçambique, na cidade da Beira, quando havíamos iniciado mais uma comissão. Aí fundámos a nossa amizade em longas conversas, ao serão, no bar da messe de oficiais. Tudo era motivo para reflectirmos e discutirmos soluções. Passaram-se mais anos e viemos a estar colocados na Academia da Força Aérea, ambos no desempenho de funções docentes. Acresce que moramos a pouco mais de trezentos metros um do outro. Frequentamos o mesmo «café», compramos o jornal no mesmo estabelecimento e cruzamo-nos nas mesmas ruas. A sua natural simplicidade nunca se deixou afectar pela ascensão hierárquica. Algumas vezes, ao longa da vida, em circunstâncias especiais, pediu-me conselho e escutou as minhas opiniões. Mesmo no desempenho das funções de CEMFA, atendeu-me sempre o telemóvel quando lhe queria falar. A afabilidade não se lhe alterou por ter atingido o topo da hierarquia da Força Aérea. Eu, naturalmente, retraí-me de o incomodar por o saber assoberbado de trabalho. Contudo, depois do Natal, já temos aprazado um encontro para longamente conversarmos. Voltamos a ser iguais, porque simples camaradas na inactividade militar.
Algumas vezes, durante este quase ano e meio de blog, teci críticas às chefias militares e, evidentemente, delas não exclui o meu Amigo Taveira Martins, embora consciente de que ele — tanto quanto podia imaginar e tanto quanto o cargo lho permitia — estaria a fazer os possíveis por adoptar a posição correcta. Quase sempre lhe dei conhecimento dos meus apontamentos aqui publicados e nunca dele recebi reparo nenhum. Uma ou outra vez, poucas, pediu-me prudência.
Durante três anos a Força Aérea esteve entregue nas mãos e sujeita ao comando de um homem sério, entusiasta, honesto e correcto. Não preciso de perguntar ao general Taveira Martins certas coisas, porque sei que as tentou resolver da forma mais conciliadora possível, nesse seu jeito de não estabelecer rupturas nem quebrar elos.
No dia em que foi substituído no cargo de CEMFA por um outro oficial-general, também meu conhecido de há mais de vinte e cinco anos, tenho de fazer justiça ao general Taveira Martins, afirmando publicamente as suas virtudes mostradas num período em que as Forças Armadas foram e continuam a ser tão mal tratadas pelo Poder político. Se mais não fez em prol da defesa da Força Aérea foi porque não pôde ou o não deixaram. Mas, como afirma o adágio, depois dele virá quem bom dele fará. Estou muito seguro do que digo.
Há dias morreu Augusto Pinochet. Foi general das Forças Armadas do Chile e, também presidente da República. Pela forma bárbara como se alcandorou ao Poder e dele fez uso não pode ser esquecido no mundo politicamente civilizado.
Responsável moral e material da morte e tortura de muitos milhares de homens e mulheres, no Chile, hoje não serão, por certo, muitos os que ali o choram.
Pinochet representa o lado perverso do Poder militar, razão pela qual perco tempo a escrever sobre ele.
A nós, a todos nós militares, ensinam-nos que o amor da Pátria se sobrepõe a todos os amores, até ao da própria vida. Pela Pátria estamos preparados a todos os sacrifícios. Mas a Pátria tem um rosto. Para uns, ela é o sentimento doce do lugar onde nascemos, com tudo o que sentimos pelas pessoas que amamos, pela gente que nos circunda, pelos valores morais e cívicos que nos formaram e enformaram desde a mais tenra idade, pela língua que falamos, pela História que aprendemos, pelas saudáveis tradições que herdámos; para outros, ela sintetiza-se e confunde-se com a vontade do Poder político já que ele é, supostamente, a emanação da vontade popular ou seja da vontade de tudo o que amamos na nossa terra. Estranhamente, ama-se a Pátria da mesma maneira siga-se o primeiro entendimento ou o segundo.
Os desvios dão-se quando a identificação do Poder político se faz através de uma falsa colagem a um bem-estar da Pátria pervertido pelo mesmo Poder. Dito de outra maneira, quando, em nome da Pátria, o Poder político, em vez de ser condutor por força da vontade popular, é um condicionador dessa mesma vontade. Isso acontece quando o Poder se assenhoreia da verdade absoluta — que não existe — e limita as vontades individuais expressas em órgãos colectivos.
No Chile, no início dos anos 70 do século passado, para o bem ou para o mal, a vontade popular havia escolhido para presidente da República um socialista cuja postura não o invalidava de se aproximar do pensamento de Karl Marx, procurando colher os fundamentos da justiça social a praticar numa linha pragmática conciliadora de dois interesses quase sempre antagónicos. Numa palavra, deu voz e ouviu as gentes mais oprimidas pela exploração capitalista no seu país. Isso não agradou ao lado mais conservador do tecido social chileno. Lado que, aliás, era numericamente mais pequeno do que o dos explorados.
Pinochet com outros generais, nos dias de Agosto de 1973, iniciou uma conspiração contra o Poder político legítimo. Legítimo e que governava com legitimidade. Apelou ao sentido de obediência dos homens que comandava, exaltou os ânimos dos seus soldados, dos seus subalternos, enganando-os quanto aos fins que o Poder político prosseguia. Acobertado pela mentira, invocou o amor da Pátria, apelidando os governantes de traidores. Explorou a inocência dos soldados, explorando a nobreza dos seus sentimentos. Intoxicou-lhes as mentes com receios e pôs homens do povo contra o Povo. Atraiçou o mais sagrado dever que aos militares está reservado: a defesa dos interesses nacionais, lutando pelos interesses de uma minoria privilegiada.
Pinochet, como responsável pela gestão da violência legal, utilizou-a ilegitimamente e, a 11 de Setembro de 1973, mandou atacar o palácio presidencial onde os fiéis servidores de Salvador Allende — legítimo presidente da República — em total desproporção de forças, deram a vida pela causa popular, pelo verdadeiro interesse nacional do Chile. Depois, depois foi o terror, a perseguição, a morte e a tortura.
As Forças Armadas do Chile têm ainda, as mãos manchadas de sangue inocente.
Deste relato, tão desapaixonado quanto a distância dos anos me permite e o entendimento da razão que a barba e os cabelos brancos me trazem, fica uma lição. As Forças Armadas só se podem rebelar e fazer uso de toda a força que possuem quando a Pátria — entendida como o conjunto dos amores mais intrínsecos antes descritos — corre perigo grave, porque o Poder político está, realmente, a atraiçoá-la. Mas as Forças Armadas, por causa da força que detêm e sabem gerir, não podem nem devem deixar-se enganar pela vontade de um Poder político que se esteja a afastar da vontade do Povo que o elegeu. As Forças Armadas são, em última instância, o tribunal por onde passa a legitimidade de quem exerce a governação.
Não as enganem nem lhes peçam traições!
No sábado passado recebi um convite da Televisão para estar presente no programa «Prós & Contras» da segunda-feira seguinte, mas anunciaram-me logo que não passariam em directo, porque se gravaria o debate às 17 horas.
A minha resposta foi pronta: — Muito obrigado, mas não vou. Não vou por dois motivos: tenho aulas na universidade onde trabalho e, em programas desta natureza, não participo quando são gravados.
A gravação prévia permite a chamada edição que é o nome pomposo que se dá à actual censura.
Já há meses, o programa que se fez sobre o 25 de Abril foi também gravado.
— Quem tem medo do que os militares podem dizer?
Não vi todo este «Prós & Contras», porque, com efeito, estive a trabalhar até bastante tarde. Contudo, do que me foi possível seguir, ficou-me uma sensação amarga na boca. Os militares estavam todos muito contidos, todos muito politicamente correctos, todos a tratar os assuntos com pinças e paninhos quentes. E de tal modo assim foi que se deixa um dos intervenientes no painel lançar para o ar a ideia de que a existência de associações militares punha em risco a regular e normal cadeia de comando por corroer a disciplina!
A ideia é, no mínimo, cretina! Própria de um apaniguado de Salazar nos melhores tempos do ditador e da ditadura.
É cretina, porque nada de mais eficaz existe, para manter a real e efectiva disciplina militar, do que as associações de militares. Eu explico em poucas palavras.
Sendo as Forças Armadas a entidade que gera e gere a máxima violência dentro de um Estado é absolutamente insensato afrontá-la por mera vingança ou «para dar o exemplo» ao restante aparelho estatal. Por esse mundo fora os casos de insubordinação de militares — no todo ou só na parte dos efectivos — por muito menos do que isso, são abundantes. Ora, havendo associações que polarizem e saibam canalizar o descontentamento dos militares, por certo estes não se insubordinarão nem darão lugar ao uso da força que detêm.
Entre nós — quer ao nível das chefias militares quer nos patamares do Poder político — não há cultura democrática, mas sim cultura autoritária. De facto, o parlamentarismo, como fruto da Revolução Francesa, nunca foi bem digerido pelos Portugueses. Foge-nos o pé para a bota da autoridade que calca todas as razões com a razão do calcanhar. Olhe-se à volta e, desde o exemplo mais evidente — que ocorre na Região Autónoma da Madeira onde um ditador se disfarça de democrata e governa há várias dezenas de anos — até ao mais recôndito e camuflado por uma suposta firmeza e teimosia, tudo o que se vê é fruto da falta de cultura democrática.
Quando as chefias militares se negam ao diálogo com as associações e as remetem para o quarto escuro das coisas inúteis, quando os ministros da Defesa Nacional mandam nos militares como se mandassem em fantoches cuja função é obedecer cegamente, os mais desprotegidos dos soldados não reconhecem nos seus chefes os defensores dos seus interesses, mas olham-nos como serventuários do Poder. Onde irão encontrar abrigo as suas justas ou injustas reclamações? Naturalmente, em associações e grupos de militares voluntariosos que jogam tudo por tudo — tal como quando lhes pedem para defender os interesses da Pátria — e entram em passeatas.
As passeatas são o dedo erguido aos chefes militares que não sabem nem dialogar nem defender interesses primários e são, também, o olhar frio e avisador lançado ao Poder que os está, aos soldados, a usar como elementos de exemplo para domesticar um funcionalismo público e outros servidores do Estado que sucessivos Governos foram enchendo de prebendas e regalias que agora, em tempo de vacas magras, não conseguem sustentar.
Tenha o engenheiro (?) José Sócrates a coragem de atacar os altos salários e as altas pensões de reforma que atribui a quem pouco ou nada faz e fez por as merecer e deixe os militares em paz com os magros e paupérrimos «benefícios» que eles e as suas famílias — tão sacrificadas como eles — usufruíam desde o tempo do Estado Novo, desde o tempo da ditadura, porque, materialmente, nada ganharam com a democracia que as suas armas um dia trouxe ao país.