Tenho evitado, ao longo deste ano de existência do blog, falar de mim nestas páginas abertas à leitura de todos. Foi um princípio que defini no meu código editorial. Hoje vou abrir uma pequena excepção, porque para falar de alguém que muito admiro e de quem sou amigo, tenho de dar a conhecer um pouco daquilo que desejei manter reservado.
Há vinte e cinco anos iniciei as minhas visitas, então diárias, ao Arquivo Histórico Militar (AHM) órgão do Exército aberto ao público onde se guardam e se podem consultar os documentos com os quais se faz a História deste nosso país. Não toda a História, claro, mas sempre a História Militar, especialmente na sua vertente terrestre. Era director o coronel Frazão que havia sido, mais de vinte anos antes, meu professor de Táctica Geral, na Academia Militar.
O que era o AHM nessa época já distante? Um local de arrumação de papéis muito velhos, bem guardados e bem catalogados, muito pouco consultados, porque não tinha divulgação entre os meios académicos e pouca ou nenhuma entre os investigadores da História de Portugal. A sala de leitura situava-se no primeiro andar do espaço reservado ao arquivo, interior, sem luz do dia, com meia dúzia de velhas secretárias de madeira e outras tantas cadeiras ainda mais desgastadas. O director, fruto do seu temperamento, não era propriamente o exemplo de um anfitrião que gostasse de receber nas suas instalações; pelo contrário, satisfazia-se com a rotina.
Foi «nesse» Arquivo que lá gastei muitas horas de pesquisa, documentando-me sobre o Corpo Expedicionário Português (CEP) quando o tema ainda não se tinha tornado moda entre os estudantes universitários; dele, a custo mais ou menos elevado, fui trazendo centenas de fotocópias de documentos (algumas delas ainda não foram devidamente exploradas, constituindo um filão de conhecimentos inéditos) o que, para o parco soldo de major, que auferia na altura, representava a opção entre adquirir umas calças ou um casaco no final do mês ou ir acumulando informação em minha casa. Nunca me arrependi da escolha! Uma parte do que foi escrito pelo general Tamagnini de Abreu e Silva — cronologicamente o primeiro comandante do CEP — vinda a público há poucos anos, já repousa, em fotocópia, nos meus arquivos pessoais desde o recuado ano de 1982 ou 1983.
«Nesse» velho AHM, os funcionários civis passaram a conhecer-me, porque quase me confundia com eles nos horários de presença — todos os momentos livres que a minha actividade de docente militar me oferecia eram consumidos naquele imenso casarão do Largo de St.ª Apolónia. Nesta labuta andei, todos os dias úteis, mais de dez anos a fio.
Uma vez, vim a saber que o novo director, para meu espanto, era o tenente-coronel Aniceto Afonso. Tínhamos sido companheiros na Academia Militar, nos recuados anos de 1961. Ele tinha-se alistado em 1960. Havíamo-nos cruzado algumas vezes, nas andanças posteriores a 1975, aquando da fundação da «Associação 25 de Abril». Mais tarde, estava Aniceto Afonso colaborando com o notável historiador Prof. Doutor João Medina, empenhados ambos em conceber a História de Portugal Contemporâneo, quando, certa manhã, me encontrou na biblioteca da Academia Militar — andava eu por lá catando informações fotográficas e bibliográficas relacionadas com a Grande Guerra — e, depois de se inteirar do meu interesse por aquele período do nosso passado recente, convidou-me a escrever o capítulo que figura no tomo II daquela obra.
Aniceto Afonso é um transmontano com algumas das características daqueles homens de «para lá do Marão»: sério, persistente, frontal e sem rodeios no discurso, franco, corajoso, cheio de brios, generoso, modesto na sua grandeza e, acima de tudo, amigo do seu amigo. É um Homem com quem se pode contar!
Esteve na Direcção do AHM durante catorze anos. As transformações foram sendo feitas aos poucos; primeiro, as menos visíveis, as organizativas, depois, as mais notórias. De vagar, foi reunindo uma equipa de pessoal que teve o cuidado de escolher e preparar tecnicamente. Sucederam-se os cursos, as pequenas obras os arranjos e, um belo dia, a grande mudança da sala de leitura, que deixou de ser no andar superior, passando para um grande salão, arejado e iluminado com luz natural recebida directamente das janelas viradas para a rua. As velhas secretárias e cadeiras desapareceram para dar lugar a novas, de metal e confortáveis; espalharam-se tomadas eléctricas pela sala para os consulentes poderem levar os seus computadores portáteis e tomarem as notas em tempo oportuno. Aumentou-se o número de pessoal de apoio, as fotocópias passaram a tirar-se na hora, a demora na entrega das caixas requisitadas foi reduzida a quase nada. Começaram a publicar-se folhas informativas com estatísticas e notícias sobre as inovações ocorridas. O Boletim do Arquivo Histórico Militar foi editado com maior regularidade e do facto foi dado público conhecimento com pompa e circunstância.
Novos fundos foram abertos à consulta dos investigadores que se puderam debruçar sobre o passado recente da instituição militar durante a ditadura do Estado Novo e sobre outros aspectos da vida nacional.
A mais importante alteração feita foi o grande salto para a modernidade: a informatização do Arquivo. Passou-se à digitalização dos documentos — não de todos, naturalmente, mas dos mais antigos e mais importantes — ficando assim ao alcance do investigador a possibilidade de imprimir e guardar uma cópia fiel daquilo que deixou de manusear e sujeitar ao desgaste. Mas o passo mais significativo foi o da colocação on line de alguns dos fundos arquivísticos, sendo hoje possível cruzar informação com outros arquivos nacionais.
Poder-se-ia dizer do Arquivo Histórico Militar que ele teve duas existências diferentes: uma, antes do Aniceto Afonso e, outra, depois do Aniceto Afonso. Ele foi a alma mater da mudança e da modernização. E tudo fez na situação de reserva em que foi ficando até atingir os 65 anos que inexoravelmente o vão atirar para a reforma. A ele que continua jovem de aspecto exterior e de ânimo interior; a ele de quem a instituição militar muito mais poderia ainda esperar se, para tanto, o general CEME fizesse a proposta ao Governo para o manter ao serviço, atendendo à sua extraordinária e distinta prestação anterior. Prefere-se perder um valoroso director do AHM a abrir o precedente. É este o Portugal que temos!
Ficaria incompleto o «retrato» do tenente-coronel Aniceto Afonso se deixasse passar em claro as duas grandes obras por ele coordenadas: A Guerra Colonial e Portugal na Grande Guerra. Na última, tive o privilégio de ser, a par de outros, um dos seus mais chegados colaboradores.
A Guerra Colonial tornou-se um clássico para saber tudo sobre o conflito que as Forças Armadas tiveram de manter durante treze anos nos territórios de Angola, Guiné e Moçambique. Começou por sair em fascículos anexos ao jornal Diário de Notícias e, anos mais tarde, a editora com a mesma chancela, publicou tudo em livro. A qualidade dos colaboradores e a variedade dos sub-temas desenvolvidos faz do volume um precioso auxiliar para quem queira ficar conhecedor de todas as perspectivas do conflito ou, pretendendo aprofundar algum dos temas em particular, queira tomá-lo como ponto de partida.
Portugal na Grande Guerra, infelizmente não teve, ainda, a mesma oportunidade da obra anterior, quedando-se pelos fascículos encadernáveis. Tendo colaborado não me fica bem tecer comentários ao livro, contudo, não posso deixar de realçar a excelente ideia do Aniceto Afonso e do Carlos Matos Gomes, seu parceiro na coordenação dos dois volumes e de chamar a atenção para a qualidade do trabalho do David Martelo e do Nuno Santa Clara Gomes, entre outros.
Capitão de Abril, conhecedor dos meandros do processo revolucionário, íntimo de alguns camaradas que lhe confiaram, em pleno PREC, funções delicadas, Aniceto Afonso deixou vastas explicações sobre esse tema na sua colaboração com João Medina em ambas a Histórias coordenadas por aquele professor da Universidade de Lisboa.
No meio académico o nome de Aniceto Afonso é amplamente conhecido, tanto por causa das funções desempenhadas no Arquivo como pelos trabalhos que levou a cabo. Em Portugal e no estrangeiro muitos são os que a ele recorrem para serem orientados nos meandros documentais da Casa que tão bem conhece. Em todos tem um amigo.
Aniceto Afonso vai ser reformado, abandonando as funções de director do Arquivo Histórico Militar, mas deixando atrás de si uma obra digna e admirável. Não o fez para glória pessoal — não está no seu feitio pôr-se em bicos dos pés para ser visto. A obra que erigiu foi feita para elevar a Cultura portuguesa e militar até ao topo que merece, igualando-se ao que de melhor há no estrangeiro. Teve, certamente, de lutar com dificuldades financeiras e constrangimentos orçamentais, mas tudo a sua vontade inquebrantável venceu, mostrando que ao lado do querer tem de estar o engenho, confirmando as palavras de Camões: «Não houve bravo capitão que não fosse também douto e ciente».
Ao camarada e ao Amigo desejo as maiores venturas nesta nova etapa da Vida em que poderá dar livre curso a sonhos e voos antes limitados pelas muitas obrigações que tinha de cumprir. Havemos de continuar juntos nos caminhos da História Militar de Portugal.