Trinta e dois anos depois...
No dia de hoje, há 32 anos, Portugal começava a viver a euforia do pós 25 de Abril. Começava a acordar e a aperceber-se de toda a extensão do golpe militar que havia dado a Liberdade de fazer tudo... até uma série de asneiras políticas, sociais e económicas! Mas em Portugal o Povo — essa massa anónima, quase sempre inconsciente e inimputável — ainda não havia começado a desunir-se, a desgarrar-se, defendendo verdadeiros e falsos interesses de grupo.
Para mim, um jovem de trinta e três anos, já calejado pelas pesadas responsabilidades que a hierarquia militar me lançara sobre os ombros havia nove, no cumprimento da segunda comissão em África, a concretização do golpe foi o acordar para uma nova realidade que, sabia, não ia ser fácil. Eu esperava, tinha a certeza que o regime estava incapaz de durar muito mais tempo. A guerra era um cancro a minar-nos os fracos alicerces sociais, económicos e políticos. A contestação juvenil, nas universidades, indiciava de forma bem evidente o fim de uma época. Conhecia-a, porque, então, entre comissões nas colónias, me havia matriculado no ensino superior e convivia com os meus colegas de curso. Era, até, olhado, por alguns, de soslaio... Militar era gente em quem não se tinha confiança!
Abril foi um grito de alegria. Maio começou a definir rumos. Setembro clarificou posições — uns queriam correr para uma sociedade justa, mas não sabiam como se fazia; outros desejavam marcar passo, manter regalias alcançadas no passado, travar o andamento aos mais ousados. Janeiro trouxe os acordos de Alvor e o destino de Angola. Março definiu o caminho irreversível da democracia. Abril viu eleita a primeira Assembleia Constituinte desde o começo do século. Julho e Agosto foram os meses em que se fez crer que o comunismo ia controlar a Revolução. Novembro desmantelou a extrema esquerda perseguiu os comunistas e iniciou a via da tranquilidade.
Entre Março e Novembro de 1975 viveu-se aquilo que alguém, na semana passada, chamou, Os dias loucos do PREC. Parece-me, no entendimento dos tempos que vivi, que a loucura não tomou posse da sociedade portuguesa nesses meses. Não. Se houve loucura tratou-se de uma saudável demência, porque foi nesse fervilhar de paixões políticas que se delimitaram os projectos em confronto; gerou-se a tranquilidade subsequente. Sem a paixão não teríamos democracia, nem liberdade, nem desatino.
Desatino, pois quando tudo parecia regressar à «normalidade» os Governos «normais», lentamente, alteraram e descaracterizaram os ideais de Abril de 1974.
Trinta e dois anos depois — para mim são poucos, mas para os jovens de quarenta são muitos — já se não tem rebuço de espécie nenhuma em exigir que caiam da Constituição Política as últimas linhas que fazem lembrar os desejos de justiça social com os quais nós, nós os capitães de Abril, sonhámos numa alvorada redentora. Queríamos um socialismo livre, justo e equilibrado. Queríamos uma sociedade onde coubessem todos os Portugueses sem complexos de diferenciação. Sem grandes barreiras financeiras a separá-los.
Cavaco Silva, o Presidente da República, sem cravo na lapela, foi, na manhã do dia da Liberdade, ao Parlamento, símbolo da vontade livre do Povo, dizer que «Os Portugueses esperam dos políticos, que livre e democraticamente elegeram, que estejam à altura dessa exigência, que se empenhem em dar uma nova esperança aos mais desfavorecidos da nossa sociedade, que cooperem no sentido de mais facilmente poderem superar as dificuldades e naturais divergências ideológicas».
O que é isto, meu Deus?! O discurso do pároco da freguesia? As palavras de um qualquer Tartufo? Como é possível ter-se sido primeiro-ministro durante dez anos, ter invertido o sentido de uma democracia que desejava avançar para a justiça social e, agora, clamar-se pela melhoria de vida dos mais desfavorecidos de todos nós? Será que Cavaco Silva já esqueceu que foram nos anos do seu Governo que as maiores fortunas, saídas do nada, se fizeram em Portugal?
Esta falsa viragem à esquerda do Presidente da República é um jogo manhoso em que ele e o primeiro-ministro se juntam para se cobrirem — mal — com a pele de cordeiro que serviu para Guterres usar durante alguns anos.
«(...)a melhoria da justiça social, o combate à pobreza e à exclusão exigem que o país volte a ganhar a batalha do investimento, do crescimento económico, da criação de riqueza, sem o que o sonho continuará adiado», disse Cavaco Silva.
É um economista, um professor de economia, quem afirma isto aqui e agora, referindo a este pobre país?! Quando, em Portugal, se alienaram os mecanismos capazes de permitir uma intervenção correctora da economia, ao ter-se entrado alegremente no «pelotão da frente» da moeda europeia, vem-se, nesta altura, propor o crescimento económico para combater a exclusão e a pobreza?! Mas até um cego, um ignorante, um retardado, percebe que todos nós caminhamos para a exclusão e para a pobreza numa Europa que ambiciona, para benefício de muito poucos, um salto pleno na globalização e no neo-liberalismo.
Foi de muito mau gosto o Presidente da República querer enganar-nos no dia da Liberdade, no dia em que nós, os militares de Abril, tudo arriscámos (uns mais outros menos) para acabar com a exclusão, com todas as exclusões. Não é justo!