Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

25.02.06

Não podemos esquecer


Luís Alves de Fraga

Da minha experiência de contacto com gente jovem, creio poder afirmar existirem três tipos de Portugueses diferentes: os que ainda sabem, com boa memória, o que foi a PIDE/DGS; aqueles para quem esta sigla diz vagamente alguma coisa e, finalmente, a grande maioria desconhecedora. Estão neste grupo os mais novos enquanto, no primeiro, os muito mais velhos.


Tenho-me perguntado, qual o motivo para este esquecimento, e só encontro uma razão: o silêncio lançado sobre a actividade de tão sinistra polícia. Silêncio, umas vezes conivente outras ignorante; mais raramente, um silêncio saudoso.


A PIDE/DGS (Polícia Internacional e Defesa do Estado/Direcção Geral de Segurança) foi a força pública de carácter político que manteve em respeito e silêncio a grande maioria dos portugueses, tal era o receio por ela imposto. Receio, é pouco: medo! Era tenebrosa essa organização cujo nome herdou da antiga PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado). Opiparamente pagos, os seus agentes, foram os algozes da liberdade em Portugal.


Esta sinistra gente dividia a sua actividade entre dois serviços e, durante o período da guerra colonial, em três, a saber: policiamento de fronteiras, onde procedia ao controlo de quem entrava e saía do país, fazendo de Portugal uma prisão sem grades e sendo esta a mais inocente das suas funções; policiamento político do território nacional, actuando contra todas as tentativas de alteração da ordem política, passando pelo controle da liberdade de expressão, reunião e associação; para tanto, servia-se de uma imensa rede de informadores anónimos que actuavam em todos os agrupamentos sociais de Portugal. Havia bufos nos quartéis, nos empregos, nas fábricas, nas escolas, nas universidade, nos hotéis, nas associações recreativas, nos clubes de futebol, nos prédios, nas ruas, enfim, em todo o lado. Muitos bufos estão ainda vivos e incólumes, nunca tendo sofrido qualquer perseguição após trinta e um anos de democracia. Vivem acobertados pelo sistema de codificação que a PIDE lhes criou. São, entre nós, a quinta coluna do fascismo ainda não desarmada completamente. São a vergonha da democracia, de uma democracia que decidiu passar uma esponja por cima desse lado escuro e ignóbil do fascismo, convencida que o arrependimento seria suficiente para esconjurar essa escumalha social. Ledo engano! Os anos foram deixando que eles mostrassem as unhas negras, mas afiadas. Ainda anseiam por vingança, ainda gostariam de cevar na populaça a raiva guardada durante estas três décadas. No silêncio das suas casas e nos miseráveis recantos da sua mente sonham o momento em que a repressão brutal volte a cair sobre os trabalhadores cada vez mais explorados. Para eles seria o imenso gozo. Babam-se de lasciva vontade de rever a ordem pública imposta a bastão. Eles existem. Eles estão ainda vivos e reproduzem-se, inoculando nas crias a xenofobia, o racismo, a homofobia, a intolerância e o gosto pelo obscurantismo.


A terceira actividade foi desenvolvida durante a guerra colonial e, em África, desempenharam a função de polícia de informação militar. A eles, e aos seus informadores, se ficou a dever todo o antecipado conhecimento da actividade dos guerrilheiros. Os nossos oficiais apreciavam muito o seu trabalho, porque, graças a ele, podiam montar as operações de guerra com êxitos antecipados. Tinha mérito, aqui, a acção da PIDE/DGS! Mas tal virtude resultava de a organização militar ter aceite a castração de um serviço que devia fazer parte da orgânica de campanha e que o medo de Salazar pelas conspirações atentatórias da sua autoridade havia impedido de activar: tratava-se do serviço de informações militares.


Realmente, todas as Forças Armadas, desde muito cedo — inclusive as portuguesas —, pelo menos em tempo de campanha, mantinham um serviço de espionagem e contra-espionagem a seu cargo. Em Portugal abdicou-se disso, entregando à PIDE/DGS essa função. Foi a «admiração» desenvolvida durante treze anos de guerra que gerou a complacência do pós-25 de Abril para com a nefanda organização.


Aos Portugueses que desconhecem os crimes praticados pelos agentes da PIDE/DGS bastaria mostrar-lhes o que é a tortura do sono ou a estátua, situações em que a ausência de repouso gera perturbações orgânicas graves: alucinações que podem conduzir à loucura e inchaço dos pés que pode exigir o uso de sapatos com dois e três números superiores aos habituais. Durante muitos anos, as agressões físicas foram de uso comum na sede da polícia; mais tarde, passaram à agressão psicológica através de fornecimento de informações falsas sobre o comportamento de familiares próximos do prisioneiro. Perante nada os algozes se intimidavam... Estavam cobardemente cobertos pela capa da impunidade.


Portugal não quis esquecer os mortos da guerra de África e, por isso, fez-lhes um memorial que está bem à vista de toda a gente. Não pode ser um símbolo de louvor a este ou àquele regime, mas um hino de gratidão da Pátria pelos seus filhos, por aqueles que deram o que de melhor tinham para a servirem.


Portugal tem de ter um memorial, recordando todos os combatentes pela Liberdade que passaram pela sede da PIDE/DGS e ali sofreram enxovalhos de toda a ordem. O nome deles deve figurar algures naquelas paredes e, se possível, a sua fotografia. Foram também heróis anónimos sobre cujo sofrimento construímos o Estado democrático que hoje possuímos. A Liberdade, no seu altar, tem «santos». São homens e mulheres que sacrificaram livremente o seu livre viver para que, na luta constante, na cadeira onde se sentava o Poder despótico a instabilidade fosse permanente. Não devemos cuidar de saber se serviam este ou aquele partido político. Importante é que serviam Portugal, servindo a Liberdade.


Portugal tem de ter um memorial e uma memória para que se não esqueça o que foi o regime que nos fez marcar passo frente à modernidade; para que nunca mais haja a tentação da ditadura.

17.02.06

Estórias (quase militares) de outro tempo


Luís Alves de Fraga

Embora não o ande a anunciar aos quatro ventos, fui educado no Instituto dos Pupilos do Exército.


Há muitos antigos alunos que julgam prestar um grande tributo à Casa que nos preparou para a vida, anunciando, antes de quase dizerem o nome, a sua condição de ex-Pupilos. Por mim, acho essa atitude exagerada. Parece-me mais importante cada um afirmar-se por aquilo que é e conseguiu alcançar na vida para, só depois, dizer-se antigo aluno daquele Estabelecimento. Fica melhor!


Muita gente confunde o Colégio Militar com os Pupilos do Exército. São instituições diferentes, embora com pontos de contacto.


O vetusto Colégio Militar «nasceu» no início do século xix enquanto os Pupilos são fruto da República. Ainda não fizeram cem anos. Lá chegarão — se chegarem — em 2011. O primeiro destinou-se, desde a sua fundação junto ao forte de S. Julião da Barra, a educar filhos de oficiais do Exército e da Marinha; o segundo foi essencialmente pensado para os filhos dos sargentos e das praças profissionais. Só excepcionalmente por lá andaram, nos tempos recuados, filhos de oficiais, quase sempre, já órfãos de pai. Outra das diferenças é que o Colégio habilitava com o curso liceal, abrindo, directamente, a porta do ensino superior; os Pupilos sempre privilegiaram o encaminhamento para a vida prática e do trabalho, assentado as suas bases no ensino técnico — comercial e industrial. Já na década de 20 do pretérito século, os bons alunos tinham a possibilidade de concluir cursos, então, chamados médios, de contabilistas ou de agentes técnicos de engenharia, dando origem aos também designados engenheiros auxiliares. Eram habilitações que permitiam ocupar, logo de imediato, escalões médio-superiores nas empresas, em níveis de responsabilidade na antecâmara da administração.


Até 1974 os Institutos que formavam este tipo de técnicos só existiam, para todo os estudantes, em Lisboa e no Porto. O Instituto dos Pupilos do Exército era o terceiro estabelecimento, mas reunia num só as duas vertentes: a comercial e a industrial. De lá saia-se, também, habilitado para ingressar, como cadete, na Escola Naval, para as classes de Administração Naval ou de Engenharia de Máquinas, ou na Escola do Exército (mais tarde, Academia Militar).


Quem concluía os cursos médios tinha um futuro promissor, na vida civil ou na castrense.


No final da 2.ª Guerra Mundial, quando entre nós se percebeu que a actividade militar já obrigava a mais elevados níveis de tecnicismo, o ministro da Defesa Nacional, o tristemente famoso Santos Costa (e sobre ele um dia escreverei apontamento onde se tracem os limites da sua personalidade política), resolveu — e bem — que se impunha um mais elevado grau de preparação para os sargentos do Exército e da Armada. O tempo dos lateiros e do pé de café tinha de ser ultrapassado. Mas, verdade seja, raro era o jovem habilitado com o curso industrial (equivalente, na vertente técnica, ao actual 9.º ano) que desejava seguir a vida militar como sargento. O mercado laboral era bem mais aliciante, por melhor remunerado e por maior quantidade de oportunidades para quem quisesse afirmar-se pela qualidade. Deste modo, com a adesão de Portugal à OTAN, impôs-se a reforma do Instituto dos Pupilos do Exército.


Santos Costa propôs, e foi aceite, que acabassem os cursos médios de indústria de modo aos alunos não terem acesso à condição de engenheiros auxiliares. Como contrapartida, passavam a, depois de concluído o curso geral de indústria, ingressar de imediato no Exército com o posto de 2.º sargento do quadro permanente. O mesmo não aconteceu ao curso de contabilistas por ser, na altura, a grande fonte de recrutamento de oficiais do Serviço de Administração Militar e da classe de Administração Naval. Eram assim as decisões no tempo do fascismo português!


A partir do final da década de 40 do século passado, todos os alunos dos Pupilos do Exército, ao entrarem no Instituto, tinham uma espada (que poderia ser de Dâmocles, caso não fosse muito dispendiosa) sobre as suas cabeças: se a média escolar dos 5.º e 6.º anos fosse igual ou superior a 12 valores poderiam ter entrada no curso geral de comércio, restando-lhes assim uma oportunidade de virem a concluir o curso de contabilistas; caso fosse inferior, estavam irremediavelmente destinados a serem sargentos do Exército. Mesmo ingressando no curso geral de comércio era necessário conclui-lo (9.º ano) com média igual ou superior a 12 valores e ter 17 anos ou menos de idade, porque, no caso destas condições não se verificarem no fim do curso, ingressavam no Exército com o posto de furriel de Administração Militar. Mas, para coroar todo este conjunto de «boas» regras, vinha o toque fascista do sistema: se o aluno fosse filho de oficial só se lhe impunha satisfazer à condição da idade, porque podia ingressar no curso médio de contabilistas com qualquer média. Filhos de oficiais são sempre inteligentes, claro!


Quem quiser estabelecer analogias entre diplomas legais do tempo do Estado Novo e da actualidade, tem aqui um exemplo bem significativo de que, mesmo em democracia, se podem manifestar traços de mentalidade fascista — quem manda tem saudades da arrogância de outrora e quem obedece ainda não se soube libertar da «canga do paciente silêncio»!

12.02.06

Sem ser ao acaso...


Luís Alves de Fraga

Cor. Manuel Duran Clemente.JPG


No dia 15 de Novembro fiz aparecer neste local uma crónica a que dei o título «Um pouco ao acaso...». De três temas, um houve a que dediquei alguma atenção: a pequena (infelizmente) luta que um punhado de bons Portugueses andam a travar para que, no antigo edifício onde funcionou a sede da famigerada PIDE/DGS, não se construa um condomínio de luxo, mas antes um museu que recorde o que foi a ditadura em Portugal. Não é nada de mais!


Em 2001 estive em Paris e, por diversas vezes, desloquei-me a uma ruazita estreita, mas comprida, nas proximidades da grande praça da Étoile. Para encontrar a dita artéria perguntei a quem conhecia bem a cidade como e onde se situava e, quando o fiz, a explicação veio sempre acompanhada do acrescento: — ao fundo dessa rua está o prédio que foi, durante a ocupação nazi, a sede da Gestapo!


Sessenta anos depois, os parisienses ainda sabiam onde tinha estado instalada a famosa polícia política de Hitler e, contudo, a ocupação durou uns escassos cinco anos! É extraordinário que um Povo guarde assim as suas memórias. A memória das suas feridas. É, por certo, um Povo com personalidade.


Nós, os Portugueses, trinta e um anos depois do derrube da longa ditadura de quarenta e oito anos queremos construir na sede da polícia que calou, encarcerou, torturou e matou Portugueses que se rebelavam contra um sistema odioso, queremos construir um condomínio de luxo! Que memória desejamos que tenham de nós os nossos filhos e os filhos dos nossos filhos? A lembrança de um Povo que se verga a qualquer canga ou que se vende por qualquer saco de dinheiro?


O meu Amigo, capitão de Abril, como gosta de ser tratado, Manuel Duran Clemente, esteve no dia 5 de Outubro — feriado nacional — junto à antiga sede da mal afamada polícia, manifestando-se, exigindo que os poderes públicos intervenham e mandem que ali se faça História, História viva de vidas torturadas e mortas (porque, já depois da vitória democrática de 25 de Abril de 1974, das janelas do edifício, foram disparados tiros sobre a multidão, matando quem se revoltava contra a ignóbil gentalha acoitada por trás daquelas paredes!). Ele, com outros cidadãos, reclamava e exigia que tivéssemos todos, mas todos, vergonha.


Os poderes públicos, em vez de uma resposta imediata, afirmativa e repousante, garantindo que ali se continuaria a recordar que ditaduras nunca mais, mandou a polícia cívica, fardada e à paisana, dispersar a pequena manifestação, porque «estava a interromper a circulação automóvel»!


Meu Deus, que é isto? Que Pátria é esta? Que governantes são os nossos? Que descaramento é preciso? Interromper o trânsito numa rua de Lisboa a horas de pouca ou nenhuma circulação, num dia feriado! Mas que moral é esta? Que cidadãos são estes que comandam ou mandam na polícia cívica? Será possível que se argumente assim, quando, em dias de trabalho, a horas de ponta, são os mesmos agentes quem dificulta o trânsito, porque dois ou três veículos se amolgaram por pequenos acidentes?! São os mesmos agentes incapazes de resolver, por forma expedita, situações que resultam em filas intermináveis de automóveis e atrasos irrecuperáveis!


Que gente somos nós? Que gente nos governa? Que gente assegura a ordem e o regular funcionamento do trânsito?


Estas perguntas têm o seu fundamento, visto há dias, o Duran Clemente ter sido intimado a deslocar-se a uma esquadra de polícia para responder a um processo mandado abrir pela Procuradoria Geral da República (PGR). Motivo: a mini manifestação de 5 de Outubro do ano transacto. A pequena manifestação em que, por momentos, o trânsito foi interrompido na Rua António Maria Cardoso, junto à antiga sede da PIDE/DGS.


É extraordinário!


Assim se gasta o dinheiro, o tempo e a paciência de uma série de pessoas, porque não se quer olhar para uma questão tão simples: o edifício tem de ser um museu destinado a recordar a tortura. Poderá, ao mesmo tempo, dar abrigo a outras funções que recordem o fascismo português. É simples a questão, mas alguém está a fazer contas aos milhões que vale o espaço naquele local.


Seremos sempre miseráveis, porque pomos à frente de valores morais e colectivos os valores materiais e individuais.


Coragem Duran Clemente, não é a última vez que te incomodam por causa da liberdade e democracia que ajudaste a construir, nem vai ser a mais dolorosa. Todos nós, os militares de Abril, estamos contigo!

07.02.06

Ainda, a exemplar descolonização


Luís Alves de Fraga

Há tempos, estive num almoço entre amigos e, mais uma vez, veio à baila a descolonização. Alguém, com ar jocoso, classificou-a de exemplar.


É um tema, gasto e esgotado, mas que, tarda não volta, vem à baila, mesmo nos periódicos de maior tiragem. A acusação é sempre a mesma: a descolonização poderia ter sido feita de uma maneira mais conveniente à defesa dos interesses dos Portugueses europeus residentes e radicados nas colónias. Às vezes, a acusação vai mais longe e chega a considerar-se a hipótese de se terem podido evitar as guerras civis subsequentes às independências.


Naturalmente, não é no espaço de um comentário que consigo demonstrar a exemplaridade da descolonização. O meu amigo David Martelo já o fez no livro 1974 – Cessar-fogo em África com grande ponderação e maestria. Infelizmente, nem toda a gente leu essa extraordinária obra. Não vou aqui reproduzir os argumentos por ele apresentados, embora alguns dos meus coincidam com os dele, como não podia deixar de ser.


Comecemos por analisar as culpas mais antigas, isto é, as que não estão ligadas de imediato à descolonização, mas pelo contrário, à colonização.


Após a independência da União Indiana era de prever que aquele país exigisse a entrega dos territórios do chamado Estado Português da Índia constituídos por Goa, Damão e Diu. Foi uma questão de anos. No começo da década de 50 do século passado, o Governo do Estado Novo, mostrou ao mundo qual era a sua postura perante o problema colonial: total intransigência, apelando para um tipo de Direito ultrapassado pelos mais recentes acontecimentos de então — a Carta das Nações Unidas.


Uma década foi suficiente para transferir a problemática da União Indiana para o continente africano. Aqui eram os Povos das colónias, através de elites suas representantes — tal como sempre aconteceu ao longo da História —, quem reclamava o direito à independência. Independências que os grandes Impérios não regateavam, tal como foi o caso da Grã-Bretanha e da França. O tempo havia ensinado Londres e Paris que eram preferíveis independências onde fosse possível uma cooperação benéfica para as partes envolvidas ao invés de sustentar conflitos que somente iriam acirrar ódios. Lisboa estava completamente surda às boas razões. E assim procedendo, comprometeu o futuro próximo e o mais distante, pois encaminhou o país para uma guerra de longa duração que, ao acabar, não possibilitou uma colaboração bilateral imediata.


Ao assumir a posição descrita, o Governo de Portugal, fez, criminosamente, acreditar a várias gerações de Portugueses e de Africanos que havia a possibilidade de construir um grande Estado multi-racial distribuído por vários continentes. Como é sabido, as pessoas aceitam com maior facilidade uma mentira que lhes agrada do que uma verdade que os magoa. E foram muitos os Portugueses e Africanos que aceitaram a mentira do Estado Novo!


Era fácil a prova da mentira apoiada na propaganda. Bastava verificar a existência de alfândegas entre as colónias e a metrópole; a impossibilidade de livre circulação de capitais; e, até ao começo dos anos 60, os impedimentos à livre circulação de pessoas. Acreditou quem quis, por razões que ainda agora, para muitos, custam a reconhecer. Se foi possível em menos de cinquenta anos libertar uma série de Estados independentes na Europa das peias limitativas da livre circulação, não teria sido mais fácil a um só Estado fazê-lo relativamente às suas colónias, se, na verdade, desejasse a igualdade dos cidadãos e a plena integração dos territórios?


O facto é que em Fevereiro e Março de 1961 se iniciou uma guerra de guerrilhas em Angola, quase imediatamente seguida de outras na Guiné e Moçambique. Em simultâneo, foi aprovado na ONU um boicote à venda de material de guerra a Portugal. O existente e não afecto à OTAN foi sendo transferido para os três teatros de operações. Pouco mais se conseguiu comprar e, esse mesmo, foi adquirido a preços exorbitantes já que os circuitos comerciais utilizados tiveram de passar a ser os do quase mercado negro.


A necessidade de ir mobilizando jovens para África acelerou, na sociedade portuguesa, o desejo de fuga às obrigações militares. Assim, desde os empenhos ou vulgarmente chamadas cunhas, até à emigração ilegal tudo foi bom para mandar para a guerra aqueles que não podiam ou não queriam servir-se de tão baixos processos. Entretanto, em África, o recrutamento de jovens europeus nascidos nas colónias ou em idade de cumprirem o serviço militar — salvo raras e honrosas excepções — conduzia-os à secretarias dos quartéis-generais e muito vagamente a aquartelamentos no mato. Ou porque a taxa de natalidade tinha baixado entre os anos 40 e 50 ou porque o contingente a mobilizar para África era muito grande, a verdade é que, no final da década de 60 e nos primeiros anos de 70, o contingente metropolitano era pequeno para as necessidades operacionais e, por isso, passaram a recrutar-se jovens negros para cobrir as muitas faltas. Este facto veio introduzir um dado novo no processo: os Africanos, ao servirem nas fileiras das Forças Armadas nacionais estavam a comprometer-se perante as forças da guerrilha que lutava pela libertação da sua terra.


É necessário, ao contrário do que se afirma vulgarmente, perceber que a baixa intensidade da guerra nos teatros de operações se ficou a dever ao facto de tanto a China Popular como a União Soviética não terem apostado forte na conclusão dos conflitos em Angola, Guiné e Moçambique. Isso permitiu manter em lume brando uma guerra que se tivesse atingido a magnitude da da Indochina, contra os Franceses, da Argélia, contra os mesmos ou do Vietname, contra os Americanos, não seria capaz de durar os treze que durou. Mas a História não se faz com «ses»! Assim, resta-me a análise do motivo que levou à tão longa sustentação do conflito, só vislumbrando um motivo: Portugal ter mantido a supremacia aérea ao longo da guerra. Os céus foram livres para serem voados pelas aeronaves militares portuguesas durante a maior parte do tempo e só pontualmente havia regiões onde o perigo surgia com significativa intensidade, nomeadamente na Guiné. A partir do momento em que apareceram neste último território o mísseis terra-ar Strella, ou SAM-7, tudo mudou de feição e, pese embora a opinião dos camaradas da Força Aérea que garantem que bastava saber operar os meios para escapar à acção destruidora daquela arma, estou convicto que nunca mais o apoio logístico aos aquartelamentos isolados no mato ia ser o mesmo, nem o apoio de fogo ia decorrer com o à-vontade dos tempo anteriores. As evacuações iriam ser fortemente penalizadas assim como todas as deslocações aéreas feitas em horários certos. Para tanto bastava que se generalizasse o uso do Strella. Isso dependia da vontade das potências apoiantes da guerrilha.


Em face do panorama sumariamente descrito percebe-se qual o motivo porque foi na Guiné que se começou a conspirar contra o Estado Novo. Era, de todas as colónias africanas, aquela onde se vivia uma situação de guerra muito próxima dos contornos da guerra clássica. Em Moçambique, na mesma altura — 1973 — também a FRELIMO já possuía mísseis terra-ar e avançava, com passos decididos, da zona de Tete para as proximidades da cidade da Beira. A cem quilómetros desta última desenvolviam-se operações militares com alto significado táctico.


A aparente tranquilidade em Angola ficou a dever-se, não só à acção das Forças Armadas portuguesas nos primeiros anos de guerra, mas também ao facto de a UPA — mais tarde FNLA — e o MPLA receberem apoios de blocos estratégicos ideologicamente diferentes. Isso levava a combaterem-se mutuamente no terreno. Anos mais tarde, a UNITA, uma dissidência da FNLA, desempenhou também esse papel de guerrilha contra-guerrilha do qual beneficiavam os Portugueses. Mas a situação não era estável, como muitos julgavam! Era da maior instabilidade possível, comprovada por quase trinta anos de guerra após a independência.


Quando eclodiu em Portugal o movimento militar que derrubou o velho Estado Novo as massas populares, em particular os jovens, aderiram de imediato à contestação ao embarque de mais tropas para as colónias. Quem se esqueceu de uma manifestação conduzida pelo MRPP, nesse sentido?


Este fenómeno não é novo na História de Portugal e, pelo menos, nos tempos mais recentes verificou-se aquando da tão apoiada revolta militar que conduziu ao Poder o major Sidónio Pais, em Dezembro de 1917. Deixou-se, na altura, de mandar mais reforços para França onde os Portugueses contavam cerca de 55.000 homens.


Não recebendo, em África, militares para substituir todos aqueles que viam as suas comissões acabadas, a situação degradou-se rapidamente entre Abril e Agosto de 1974. A 24 de Julho, o general António de Spínola, então Presidente da República, reconheceu o direito dos povos africanos à autodeterminação. A 29 de Agosto Spínola ratificou o acordo com o PAIGC sobre a independência da Guiné e Cabo Verde.


A situação política em Portugal tinha-se alterado profundamente. As greves e a instabilidade social eram notórias. As forças políticas em presença já estavam desentendidas. O próprio Presidente da República, na linha do que havia feito Palma Carlos, primeiro ministro do Governo Provisório, reclamava pelo apoio de uma maioria silenciosa, na perspectiva de conquistar para o processo uma parte da população que, ainda, julgava mais identificada com o anterior regime do que com a democracia nascente.


Em África — e posso testemunhar por Moçambique — só se podia contar com as tropas especiais (pára-quedistas, comandos e fuzileiros navais). O resto, e por força de a grande maioria do contingente ser negro, não oferecia confiança, até porque os próprios naturais começavam a aderir à nova perspectiva que, adivinhavam, estaria para surgir em pouco tempo. Manter o estado de guerra era impossível. Surgiram situações pontuais de cessar-fogo em várias regiões. No Norte de Moçambique um aquartelamento inteiro do Exército preferiu render-se à FRELIMO a manter uma situação precária; em zonas onde não havia qualquer tipo de perigo de guerrilha as unidades de quadrícula recusavam-se a manter a disciplina e a ordem interna nos aquartelamentos. Os soldados desertavam para se irem juntar às suas famílias.


Negociar, nestas condições, era impossível, pois é da mais elementar concepção política saber que só negoceia quem tem a força do seu lado. Em tais circunstâncias toda a negociação tinha de ser uma cedência. Mas uma cedência onde se acautelaram, dentro dos limites do possível, os interesses dos colonos.


Em Moçambique, os discursos inflamados de Samora Machel, a partir do final do ano de 1974, foram o rastilho que provocou a debandada geral. Os europeus iniciaram um processo de fuga ou para Portugal ou para a África do Sul ou, ainda, para o Brasil. Portugal nada podia fazer e menos ainda as Forças Armadas.


Diferente aconteceu em Angola. Numa preocupação de estabelecer uma forma justa, democrática e europeia de transição para a independência, realizou-se o Acordo de Alvor, no começo do ano de 1975, estabelecendo a data para a independência no dia 11 de Novembro. Tratou-se de um falso acordo, porque todas as partes sabiam que nenhuma ia cumprir com rigor e determinação o estipulado, embora num só aspecto os Africanos se manifestassem unânimes: a data da independência. Alvor serviu para legitimar aos olhos do mundo a luta armada que se iria seguir entre os três partidos africanos. Para mais nada serviu o acordo. Todo e qualquer Europeu ou Africano que acreditou no contrário do que acabei de afirmar, acreditou naquilo que lhe convinha e não naquilo que a realidade ditava. Isto é tão certo quanto o facto de, em Agosto de 1974, já se lutar em Luanda de forma aberta para conseguir dominar a capital. O intuito é claro: quem ficar senhor de Luanda, recebe o Poder do Estado Português quando se der a independência.


Em face destes diferentes quadros era impossível fazer uma descolonização mais bem feita, porque faltou a força às Forças Armadas na sequência de, na rectaguarda, o Povo estar cansado de guerra.


Fez-se uma magnífica ponte aérea que trouxe para Portugal todos quantos quiseram aqui recomeçar a vida com apoio do Estado. Os, então, denominados retornados deram um magnífico exemplo de trabalho e do quanto se pode quando realmente se quer. Muitos culparam os Governos da época e, também, os militares, mas esqueceram que tinha sido, afinal, a louca vontade de governantes que julgaram eterna uma herança territorial, impondo-se à livre vontade de Povos que tinham todo o direito a serem também soberanos e independentes, quem os obrigou a viverem dias angustiados. Que a História não branqueie as responsabilidades de quem as tem!

01.02.06

Uma causa justa fora de tempo?


Luís Alves de Fraga

Tenho vindo, ao longo de vários apontamentos, a fazer referência ao discurso que o tenente-general José Mena Aguada pronunciou a 6 de Janeiro, em Sevilha. Aproveitei o incidente para discorrer sobre o papel constitucional das Forças Armadas nas democracias, sem me imiscuir no problema espanhol, propriamente dito. Julgo, contudo, ter chegado a altura de me debruçar sobre a questão.


Todos os Portugueses que ainda estudaram a nossa História de fio a pavio sabem quanto Portugal está devedor à Catalunha, por, em 1640, no dia 1 de Dezembro, ter conseguido afirmar a sua intenção de abandonar o estatuto de monarquia dual, tornando-se completamente independente das garras de Madrid. Se os Catalães não se tivessem, também, rebelado era quase certo o fracasso da conspiração de Lisboa. Falhou a Catalunha, mas conseguiu Portugal.


Também sabemos, de há muito, que a Espanha é uma manta de retalhos feita com a agregação tirânica de Madrid. Leão, Galiza, Navarra, Aragão e Catalunha possuem traços que de formas mais ou menos acentuadas as distinguem entre si e as autonomizam culturalmente de Castela. Até, em medida menos notável, a própria Andaluzia apresenta ligeiras diferenças das Castelas — a Velha e a Nova. O sonho imperial sempre proveio da região mais pobre da Península.


Foi durante a 2.ª República — 1931 a 1939 —, como nos dá conta Julian Casanova, professor catedrático de História contemporânea na Universidade de Saragoça, no jornal El País, de 1 de Fevereiro, que, em consequência da abertura constitucional, o Governo catalão fez que se elaborasse um anteprojecto de Constituição autonómica, chamado de Núria, por ter sido concluído naquela localidade, em 20 de Junho de 1931. Por plebiscito popular, de 2 de Agosto, foi aprovado, mas as Cortes só o votaram no dia 9 de Setembro do ano seguinte, depois de se ter dado o pronunciamento comandado pelo general Sanjurjo, em 10 de Agosto. Os Catalães viam assim, pela primeira vez, satisfeita uma aspiração nacional que remontava a centenas de anos. Passaram a ter hino e bandeira, sendo que o idioma oficial era conjuntamente o catalão e o castelhano. Constitucionalmente, a Catalunha, tornou-se em «uma região autónoma dentro do Estado espanhol». Quando Franco pôs fim à República, só ela tinha estatuto de autonomia. Isso acabou em 1939. A repressão fascista e franquista foi brutal sobre os Catalães, tendo havido fuzilamentos até 1945. O Vale dos Caídos, aberto na rocha à força dos braços dos prisioneiros políticos mandados como escravos construir o monumento aos vencedores, a pesar de nele repousarem os corpos de Francisco Franco e de José Primo de Rivera, fundador da Falange, é, afinal, a prova de que nem sempre o vitorioso de hoje é o herói de amanhã.


Sessenta e sete anos depois de ter sido posto fim à autonomia da Catalunha discute-se, agora, em Espanha, um novo Estatuto autonómico para os Catalães. Um amplo Estatuto, capaz de dar corpo legal à nação catalã, criando quase um Estado dentro do Estado espanhol. Por força das disposições legais pretendidas chegar-se-á tão longe que, desde a cobrança fiscal, ao funcionamento da justiça, da educação, ao sistema sanitário, tudo, ou quase tudo, se separará do resto da Espanha. Continuará a haver um Estado espanhol, mas a distinção será clara entre a Catalunha e o resto.


É legítimo o desejo dos Catalães. De certa forma, é até democrático que assim aconteça. Mas será no tempo apropriado?


Julgo pertinente a pergunta, pois quando há, na comunidade inter-estatal, a vontade de formar uma União Europeia onde as ambições e os desejos nacionais tenderão a esbater-se, de modo a tornar possível uma integração tão homogénea quanto possível dentro da diversidade que séculos de História impõe, surge-nos, à nossa ilharga, um sub tipo de federalismo temporão. Além do mais, nem quero especular sobre dois aspectos que reputo importantes: a um lado, o tipo de tendências que se podem, a médio e longo prazo, vir a desencadear em Portugal — país onde a economia espanhola encontrou mercado de expansão — e, a outro, os reflexos que a tão ampla autonomia catalã terá na futura política de defesa peninsular e europeia, quando esta começar a definir-se autónoma das decisões dos Estados Unidos.


Já que, felizmente, os Governos estão sujeitos à alternância democrática e, em Portugal, ainda não houve tempo para se definir com precisão uma Estratégia Nacional onde sobressaiam os Interesses Nacionais e os consequentes Objectivos, seria bom que, pela perenidade dos Estados-Maiores das Forças Armadas, os militares estudassem os efeitos que a médio e longo prazo terá na Península o novo Estatuto autonómico da Catalunha. Estudem, mas não divulguem, porque quem o fizer pode sujeitar-se a prisão domiciliária e a imediata passagem à reserva!