Stress pós traumático de guerra
Felizmente que a Ciência avança e progride para melhor explicar os acasos e as coincidências! Às vezes, a vontade de Deus!
Quando eu era garoto, no meu saudoso bairro da Graça, havia figuras conhecidas de quem frequentava as ruas da zona. Eram homens já com idade (sei lá... aos seis, sete anos, todo o adulto é velho) e aspecto de terem juízo. Mas não tinham! De repente, numa loja, no passeio estreito da artéria principal, no largo dos Sapadores, eis que um deles, segundo o vocabulário dos jovem de hoje, se passava e começava aos gritos, ofendendo tudo e todos, barafustando, ameaçando e, acima de tudo, acusando. A causa era, na maioria das vezes, insignificante. Eu, embora sempre curioso e com o desejo de perceber o mundo à minha volta, assustava-me com tais acessos de raiva. Apertava, com mais força, a mão da minha Mãe, chegando-me a ela, muro protector da minha meninice. Com voz tranquila, porém segura e disposta a tudo, dizia-me baixinho: Não tenhas medo, é um gaseado de guerra.
Foi assim que aprendi a conhecer o hoje tão badalado e tão real stress pós traumático dos veteranos das colónias. Naquele tempo, na ignorância do Povo, tinham sido os gases que haviam devastado as mentes de muitos para quem França e as trincheiras deixaram marcas dolorosas para toda a vida. Já morreram os gaseados, contudo, ainda nos sobram os que, para cumprirem a teimosia de um Governo apostado em lutar contra a História e o Futuro, obrigados, durante treze anos, deixaram a pacatez das nossas atrasadas províncias e embarcaram rumo a uma guerra que, directamente, nada lhes dizia. São esses jovens, que o foram há 45 e 30 anos, quem agora, já velhos, fazem disparates, vivem metidos dentro de si, curtindo dores, que, muitas vezes, não sabem expressar.
Se o trauma da guerra no mato, com as emboscadas, os golpe de mão, a defesa do precário aquartelamento e, acima de tudo, o medo da morte quando ela rondava bem perto e ceifava um amigo, um companheiro, foi enorme, o certo é que, até para aqueles que melhores situações usufruíram, por terem passado a maior parte da comissão em quartéis nas vilas ou cidades onde o perigo não espreitava, até para esses, a simples obrigação de cumprir um dever incompreensível constituiu motivo de sofrimento.
O Estado democrático português, desligando-se em absoluto, da herança do Governo ditatorial, não sei baseado em que espécie de legitimidade, deixou, durante 31 anos, ao mais completo abandono os antigos combatentes, votando esses milhares de veteranos a um esquecimento impróprio de quem se orgulha do seu passado. Que possam existir fraudes e casos forjados, não duvido, mas isso não justifica o abandono.
Claro que as mais graves de manifestação da doença acontecem entre aqueles que foram obrigados a participar numa guerra que não desejavam. Estão neste grupo a maioria das praças cabos e soldados e os graduados milicianos. Embora nem todos, porque, quem serviu nas tropas especiais pára-quedistas, comandos e fuzileiros navais por força da preparação militar imposta, soube subtrair-se aos fantasmas que, quase pela certa, lhe povoam as noites, em sonhos tenebrosos. Isto como regra, porque há, naturalmente, excepções grandes e graves.
E quanto aos graduados do quadro permanente? Julgo que, neste sector a situação é nebulosa, pois pouco vem a lume sobre o assunto. Foi, por certo, entre os sargentos de carreira que se verificaram os casos mais notáveis de stress pós traumático de guerra. A preparação psicológica militar para enfrentarem a diversidade de ocorrências resultou da prática do dia a dia e de um endurecimento por ela imposto. Nestas circunstâncias, estes graduados amalgamaram sentimentos com os quais souberam, mais tarde, conviver e explicar perante si próprios ou passaram a ser vítimas de fantasmas que os perseguiram para o resto dos seus dias de serviço activo. A grande ruptura, a acontecer, terá sido quando deixaram o quartel e enfrentaram a vida civil da qual se haviam desenraizado para esconder deles mesmos os medos e os traumas.
Os oficiais do quadro permanente, fruto de uma preparação mais cuidada no mínimo três anos de curso nas Academias e mais o intenso tirocínio de quase um ano nas respectivas Escolas Práticas desfrutavam de uma suposta capacidade para permitir enfrentar as mais dolorosas situações, sabendo ultrapassá-las. Claro que tudo isto se desenvolvia no mero plano teórico, pois, na prática, só a obrigação de manter o moral das tropas comandadas e impor pelo exemplo fazia calar as inoportunas angústias e as intensas ansiedades.
Genericamente, pode dizer-se que os militares do quadro permanente, sabendo conviver melhor com as situações de guerra, acabaram transportando para outros planos as suas neuroses. Com efeito, foi sobre as famílias que se reflectiram as consequências do conflito africano. O nível de divórcios é elevado entre os militares que lutaram na guerra e os desentendimentos entre pais e filhos foram significativos por falta de acompanhamento e presença do progenitor.
Tudo isto os Portugueses com quarenta ou menos anos de idade desconhecem e não sabem conviver com tais realidades. O mais grave é que a classe política que hoje governa Portugal, ou a tal se candidata, para além de ignorante de uma complexa problemática psicológica, não herdou do grupo que a antecedeu o respeito e a consideração por todos aqueles que, sem mazelas aparentes as têm na sua conduta psíquica por haverem servido os interesses de uma oligarquia que se afirmou contra a História.
Os veteranos de guerra não querem esmolas. Querem reconhecimento e respeito. O resto vem, inevitavelmente, numa sociedade sã, por acréscimo.