Ainda, a exemplar descolonização
Há tempos, estive num almoço entre amigos e, mais uma vez, veio à baila a descolonização. Alguém, com ar jocoso, classificou-a de exemplar.
É um tema, gasto e esgotado, mas que, tarda não volta, vem à baila, mesmo nos periódicos de maior tiragem. A acusação é sempre a mesma: a descolonização poderia ter sido feita de uma maneira mais conveniente à defesa dos interesses dos Portugueses europeus residentes e radicados nas colónias. Às vezes, a acusação vai mais longe e chega a considerar-se a hipótese de se terem podido evitar as guerras civis subsequentes às independências.
Naturalmente, não é no espaço de um comentário que consigo demonstrar a exemplaridade da descolonização. O meu amigo David Martelo já o fez no livro 1974 Cessar-fogo em África com grande ponderação e maestria. Infelizmente, nem toda a gente leu essa extraordinária obra. Não vou aqui reproduzir os argumentos por ele apresentados, embora alguns dos meus coincidam com os dele, como não podia deixar de ser.
Comecemos por analisar as culpas mais antigas, isto é, as que não estão ligadas de imediato à descolonização, mas pelo contrário, à colonização.
Após a independência da União Indiana era de prever que aquele país exigisse a entrega dos territórios do chamado Estado Português da Índia constituídos por Goa, Damão e Diu. Foi uma questão de anos. No começo da década de 50 do século passado, o Governo do Estado Novo, mostrou ao mundo qual era a sua postura perante o problema colonial: total intransigência, apelando para um tipo de Direito ultrapassado pelos mais recentes acontecimentos de então a Carta das Nações Unidas.
Uma década foi suficiente para transferir a problemática da União Indiana para o continente africano. Aqui eram os Povos das colónias, através de elites suas representantes tal como sempre aconteceu ao longo da História , quem reclamava o direito à independência. Independências que os grandes Impérios não regateavam, tal como foi o caso da Grã-Bretanha e da França. O tempo havia ensinado Londres e Paris que eram preferíveis independências onde fosse possível uma cooperação benéfica para as partes envolvidas ao invés de sustentar conflitos que somente iriam acirrar ódios. Lisboa estava completamente surda às boas razões. E assim procedendo, comprometeu o futuro próximo e o mais distante, pois encaminhou o país para uma guerra de longa duração que, ao acabar, não possibilitou uma colaboração bilateral imediata.
Ao assumir a posição descrita, o Governo de Portugal, fez, criminosamente, acreditar a várias gerações de Portugueses e de Africanos que havia a possibilidade de construir um grande Estado multi-racial distribuído por vários continentes. Como é sabido, as pessoas aceitam com maior facilidade uma mentira que lhes agrada do que uma verdade que os magoa. E foram muitos os Portugueses e Africanos que aceitaram a mentira do Estado Novo!
Era fácil a prova da mentira apoiada na propaganda. Bastava verificar a existência de alfândegas entre as colónias e a metrópole; a impossibilidade de livre circulação de capitais; e, até ao começo dos anos 60, os impedimentos à livre circulação de pessoas. Acreditou quem quis, por razões que ainda agora, para muitos, custam a reconhecer. Se foi possível em menos de cinquenta anos libertar uma série de Estados independentes na Europa das peias limitativas da livre circulação, não teria sido mais fácil a um só Estado fazê-lo relativamente às suas colónias, se, na verdade, desejasse a igualdade dos cidadãos e a plena integração dos territórios?
O facto é que em Fevereiro e Março de 1961 se iniciou uma guerra de guerrilhas em Angola, quase imediatamente seguida de outras na Guiné e Moçambique. Em simultâneo, foi aprovado na ONU um boicote à venda de material de guerra a Portugal. O existente e não afecto à OTAN foi sendo transferido para os três teatros de operações. Pouco mais se conseguiu comprar e, esse mesmo, foi adquirido a preços exorbitantes já que os circuitos comerciais utilizados tiveram de passar a ser os do quase mercado negro.
A necessidade de ir mobilizando jovens para África acelerou, na sociedade portuguesa, o desejo de fuga às obrigações militares. Assim, desde os empenhos ou vulgarmente chamadas cunhas, até à emigração ilegal tudo foi bom para mandar para a guerra aqueles que não podiam ou não queriam servir-se de tão baixos processos. Entretanto, em África, o recrutamento de jovens europeus nascidos nas colónias ou em idade de cumprirem o serviço militar salvo raras e honrosas excepções conduzia-os à secretarias dos quartéis-generais e muito vagamente a aquartelamentos no mato. Ou porque a taxa de natalidade tinha baixado entre os anos 40 e 50 ou porque o contingente a mobilizar para África era muito grande, a verdade é que, no final da década de 60 e nos primeiros anos de 70, o contingente metropolitano era pequeno para as necessidades operacionais e, por isso, passaram a recrutar-se jovens negros para cobrir as muitas faltas. Este facto veio introduzir um dado novo no processo: os Africanos, ao servirem nas fileiras das Forças Armadas nacionais estavam a comprometer-se perante as forças da guerrilha que lutava pela libertação da sua terra.
É necessário, ao contrário do que se afirma vulgarmente, perceber que a baixa intensidade da guerra nos teatros de operações se ficou a dever ao facto de tanto a China Popular como a União Soviética não terem apostado forte na conclusão dos conflitos em Angola, Guiné e Moçambique. Isso permitiu manter em lume brando uma guerra que se tivesse atingido a magnitude da da Indochina, contra os Franceses, da Argélia, contra os mesmos ou do Vietname, contra os Americanos, não seria capaz de durar os treze que durou. Mas a História não se faz com «ses»! Assim, resta-me a análise do motivo que levou à tão longa sustentação do conflito, só vislumbrando um motivo: Portugal ter mantido a supremacia aérea ao longo da guerra. Os céus foram livres para serem voados pelas aeronaves militares portuguesas durante a maior parte do tempo e só pontualmente havia regiões onde o perigo surgia com significativa intensidade, nomeadamente na Guiné. A partir do momento em que apareceram neste último território o mísseis terra-ar Strella, ou SAM-7, tudo mudou de feição e, pese embora a opinião dos camaradas da Força Aérea que garantem que bastava saber operar os meios para escapar à acção destruidora daquela arma, estou convicto que nunca mais o apoio logístico aos aquartelamentos isolados no mato ia ser o mesmo, nem o apoio de fogo ia decorrer com o à-vontade dos tempo anteriores. As evacuações iriam ser fortemente penalizadas assim como todas as deslocações aéreas feitas em horários certos. Para tanto bastava que se generalizasse o uso do Strella. Isso dependia da vontade das potências apoiantes da guerrilha.
Em face do panorama sumariamente descrito percebe-se qual o motivo porque foi na Guiné que se começou a conspirar contra o Estado Novo. Era, de todas as colónias africanas, aquela onde se vivia uma situação de guerra muito próxima dos contornos da guerra clássica. Em Moçambique, na mesma altura 1973 também a FRELIMO já possuía mísseis terra-ar e avançava, com passos decididos, da zona de Tete para as proximidades da cidade da Beira. A cem quilómetros desta última desenvolviam-se operações militares com alto significado táctico.
A aparente tranquilidade em Angola ficou a dever-se, não só à acção das Forças Armadas portuguesas nos primeiros anos de guerra, mas também ao facto de a UPA mais tarde FNLA e o MPLA receberem apoios de blocos estratégicos ideologicamente diferentes. Isso levava a combaterem-se mutuamente no terreno. Anos mais tarde, a UNITA, uma dissidência da FNLA, desempenhou também esse papel de guerrilha contra-guerrilha do qual beneficiavam os Portugueses. Mas a situação não era estável, como muitos julgavam! Era da maior instabilidade possível, comprovada por quase trinta anos de guerra após a independência.
Quando eclodiu em Portugal o movimento militar que derrubou o velho Estado Novo as massas populares, em particular os jovens, aderiram de imediato à contestação ao embarque de mais tropas para as colónias. Quem se esqueceu de uma manifestação conduzida pelo MRPP, nesse sentido?
Este fenómeno não é novo na História de Portugal e, pelo menos, nos tempos mais recentes verificou-se aquando da tão apoiada revolta militar que conduziu ao Poder o major Sidónio Pais, em Dezembro de 1917. Deixou-se, na altura, de mandar mais reforços para França onde os Portugueses contavam cerca de 55.000 homens.
Não recebendo, em África, militares para substituir todos aqueles que viam as suas comissões acabadas, a situação degradou-se rapidamente entre Abril e Agosto de 1974. A 24 de Julho, o general António de Spínola, então Presidente da República, reconheceu o direito dos povos africanos à autodeterminação. A 29 de Agosto Spínola ratificou o acordo com o PAIGC sobre a independência da Guiné e Cabo Verde.
A situação política em Portugal tinha-se alterado profundamente. As greves e a instabilidade social eram notórias. As forças políticas em presença já estavam desentendidas. O próprio Presidente da República, na linha do que havia feito Palma Carlos, primeiro ministro do Governo Provisório, reclamava pelo apoio de uma maioria silenciosa, na perspectiva de conquistar para o processo uma parte da população que, ainda, julgava mais identificada com o anterior regime do que com a democracia nascente.
Em África e posso testemunhar por Moçambique só se podia contar com as tropas especiais (pára-quedistas, comandos e fuzileiros navais). O resto, e por força de a grande maioria do contingente ser negro, não oferecia confiança, até porque os próprios naturais começavam a aderir à nova perspectiva que, adivinhavam, estaria para surgir em pouco tempo. Manter o estado de guerra era impossível. Surgiram situações pontuais de cessar-fogo em várias regiões. No Norte de Moçambique um aquartelamento inteiro do Exército preferiu render-se à FRELIMO a manter uma situação precária; em zonas onde não havia qualquer tipo de perigo de guerrilha as unidades de quadrícula recusavam-se a manter a disciplina e a ordem interna nos aquartelamentos. Os soldados desertavam para se irem juntar às suas famílias.
Negociar, nestas condições, era impossível, pois é da mais elementar concepção política saber que só negoceia quem tem a força do seu lado. Em tais circunstâncias toda a negociação tinha de ser uma cedência. Mas uma cedência onde se acautelaram, dentro dos limites do possível, os interesses dos colonos.
Em Moçambique, os discursos inflamados de Samora Machel, a partir do final do ano de 1974, foram o rastilho que provocou a debandada geral. Os europeus iniciaram um processo de fuga ou para Portugal ou para a África do Sul ou, ainda, para o Brasil. Portugal nada podia fazer e menos ainda as Forças Armadas.
Diferente aconteceu em Angola. Numa preocupação de estabelecer uma forma justa, democrática e europeia de transição para a independência, realizou-se o Acordo de Alvor, no começo do ano de 1975, estabelecendo a data para a independência no dia 11 de Novembro. Tratou-se de um falso acordo, porque todas as partes sabiam que nenhuma ia cumprir com rigor e determinação o estipulado, embora num só aspecto os Africanos se manifestassem unânimes: a data da independência. Alvor serviu para legitimar aos olhos do mundo a luta armada que se iria seguir entre os três partidos africanos. Para mais nada serviu o acordo. Todo e qualquer Europeu ou Africano que acreditou no contrário do que acabei de afirmar, acreditou naquilo que lhe convinha e não naquilo que a realidade ditava. Isto é tão certo quanto o facto de, em Agosto de 1974, já se lutar em Luanda de forma aberta para conseguir dominar a capital. O intuito é claro: quem ficar senhor de Luanda, recebe o Poder do Estado Português quando se der a independência.
Em face destes diferentes quadros era impossível fazer uma descolonização mais bem feita, porque faltou a força às Forças Armadas na sequência de, na rectaguarda, o Povo estar cansado de guerra.
Fez-se uma magnífica ponte aérea que trouxe para Portugal todos quantos quiseram aqui recomeçar a vida com apoio do Estado. Os, então, denominados retornados deram um magnífico exemplo de trabalho e do quanto se pode quando realmente se quer. Muitos culparam os Governos da época e, também, os militares, mas esqueceram que tinha sido, afinal, a louca vontade de governantes que julgaram eterna uma herança territorial, impondo-se à livre vontade de Povos que tinham todo o direito a serem também soberanos e independentes, quem os obrigou a viverem dias angustiados. Que a História não branqueie as responsabilidades de quem as tem!