Sem ser ao acaso...
No dia 15 de Novembro fiz aparecer neste local uma crónica a que dei o título «Um pouco ao acaso...». De três temas, um houve a que dediquei alguma atenção: a pequena (infelizmente) luta que um punhado de bons Portugueses andam a travar para que, no antigo edifício onde funcionou a sede da famigerada PIDE/DGS, não se construa um condomínio de luxo, mas antes um museu que recorde o que foi a ditadura em Portugal. Não é nada de mais!
Em 2001 estive em Paris e, por diversas vezes, desloquei-me a uma ruazita estreita, mas comprida, nas proximidades da grande praça da Étoile. Para encontrar a dita artéria perguntei a quem conhecia bem a cidade como e onde se situava e, quando o fiz, a explicação veio sempre acompanhada do acrescento: ao fundo dessa rua está o prédio que foi, durante a ocupação nazi, a sede da Gestapo!
Sessenta anos depois, os parisienses ainda sabiam onde tinha estado instalada a famosa polícia política de Hitler e, contudo, a ocupação durou uns escassos cinco anos! É extraordinário que um Povo guarde assim as suas memórias. A memória das suas feridas. É, por certo, um Povo com personalidade.
Nós, os Portugueses, trinta e um anos depois do derrube da longa ditadura de quarenta e oito anos queremos construir na sede da polícia que calou, encarcerou, torturou e matou Portugueses que se rebelavam contra um sistema odioso, queremos construir um condomínio de luxo! Que memória desejamos que tenham de nós os nossos filhos e os filhos dos nossos filhos? A lembrança de um Povo que se verga a qualquer canga ou que se vende por qualquer saco de dinheiro?
O meu Amigo, capitão de Abril, como gosta de ser tratado, Manuel Duran Clemente, esteve no dia 5 de Outubro feriado nacional junto à antiga sede da mal afamada polícia, manifestando-se, exigindo que os poderes públicos intervenham e mandem que ali se faça História, História viva de vidas torturadas e mortas (porque, já depois da vitória democrática de 25 de Abril de 1974, das janelas do edifício, foram disparados tiros sobre a multidão, matando quem se revoltava contra a ignóbil gentalha acoitada por trás daquelas paredes!). Ele, com outros cidadãos, reclamava e exigia que tivéssemos todos, mas todos, vergonha.
Os poderes públicos, em vez de uma resposta imediata, afirmativa e repousante, garantindo que ali se continuaria a recordar que ditaduras nunca mais, mandou a polícia cívica, fardada e à paisana, dispersar a pequena manifestação, porque «estava a interromper a circulação automóvel»!
Meu Deus, que é isto? Que Pátria é esta? Que governantes são os nossos? Que descaramento é preciso? Interromper o trânsito numa rua de Lisboa a horas de pouca ou nenhuma circulação, num dia feriado! Mas que moral é esta? Que cidadãos são estes que comandam ou mandam na polícia cívica? Será possível que se argumente assim, quando, em dias de trabalho, a horas de ponta, são os mesmos agentes quem dificulta o trânsito, porque dois ou três veículos se amolgaram por pequenos acidentes?! São os mesmos agentes incapazes de resolver, por forma expedita, situações que resultam em filas intermináveis de automóveis e atrasos irrecuperáveis!
Que gente somos nós? Que gente nos governa? Que gente assegura a ordem e o regular funcionamento do trânsito?
Estas perguntas têm o seu fundamento, visto há dias, o Duran Clemente ter sido intimado a deslocar-se a uma esquadra de polícia para responder a um processo mandado abrir pela Procuradoria Geral da República (PGR). Motivo: a mini manifestação de 5 de Outubro do ano transacto. A pequena manifestação em que, por momentos, o trânsito foi interrompido na Rua António Maria Cardoso, junto à antiga sede da PIDE/DGS.
É extraordinário!
Assim se gasta o dinheiro, o tempo e a paciência de uma série de pessoas, porque não se quer olhar para uma questão tão simples: o edifício tem de ser um museu destinado a recordar a tortura. Poderá, ao mesmo tempo, dar abrigo a outras funções que recordem o fascismo português. É simples a questão, mas alguém está a fazer contas aos milhões que vale o espaço naquele local.
Seremos sempre miseráveis, porque pomos à frente de valores morais e colectivos os valores materiais e individuais.
Coragem Duran Clemente, não é a última vez que te incomodam por causa da liberdade e democracia que ajudaste a construir, nem vai ser a mais dolorosa. Todos nós, os militares de Abril, estamos contigo!