Dois anos também de ignorância
Hoje passam dois anos que o actual Governo nacional tomou posse. E eles vão festejar a data! Festejam-na na ignorância ou na inocência – eu não acredito nesta hipótese – do mal que têm feito a Portugal.
Está prevista para a reunião informal do Conselho de Ministros a apresentação de uma série de medidas que vão acabar com o funcionalismo público tal como sempre o conhecemos no nosso país. E, acabar com o funcionalismo, é acabar com a normalidade da vida nacional, pois desde sempre, mesmo que pobre ou, até, falido, o Estado foi o “patrão” protector de muitas famílias, porque pagava sempre. Pagava sempre! Note bem, meu Caro Leitor, pagava sempre! Agora essa situação centenária inverteu-se, e inverteu-se em menos de dois anos! Inverteu-se por causa de uma profunda ignorância do Governo. Ignorância imperdoável que muda completamente o paradigma da segurança nacional. Não a segurança das fronteiras; não a segurança nas ruas, mas a segurança financeira das famílias! E até pode ser que ponha em causa as outras seguranças que acabo de desprezar. Vejamos o que de mal fez a ignorância destes jovens e inaptos governantes que sem saberem História, nem Sociologia e conhecendo pouca Economia Política resolveram atentar contra a Pátria.
Portugal foi, até há quarenta anos, um país essencialmente agrícola onde a maior parte da população vivia da ou para a agricultura. Portugal nunca teve uma poderosa classe capitalistas capaz de investir numa indústria forte e concorrencial. Os grandes investimentos eram estrangeiros em algumas indústrias – poucas – e, principalmente, em serviços quase essenciais – dos telefones ao gás e à electricidade. Era um país que vivia essencialmente do rendimento alfandegário – importações e exportações – e de uma fraca cobrança fiscal. Olhem-se para os Orçamentos Gerais do Estado de há cinquenta, sessenta, oitenta anos e ver-se-á espelhada a realidade do que afirmo. Portugal, sempre que faliu – pois faliu várias vezes nos últimos cento e cinquenta anos – teve de dar, aos credores, como garantias dos empréstimos os rendimentos das suas alfândegas. Este facto traduz várias realidades: o comércio externo era uma fonte de receita para o Estado – até o interno, pois havia alfândegas entre o continente, as ilhas adjacentes e as colónias – a indústria centrava-se na transformação primária de matérias-primas que, a bem dos cofres do Estado, convinham exportar quase em bruto para receber em obra acabada, a agricultura, de subsistência, não satisfazia, a bem dos mesmos cofres, as necessidades internas e assim recorria-se à importação, principalmente, de cereais exóticos. Tudo fontes que alimentavam os cofres da Fazenda Pública. E para quê? Para ter um Estado rico? Não meus caros Amigos! Para alimentar uma classe média, tendencialmente pobre, que vivia do Orçamento Geral do Estado. Eram os professores do ensino primário, os funcionários dos diferentes ministérios, os militares, os professores do ensino secundário e superior, os juízes, os médicos dos hospitais civis que também faziam clínica privada e pouco mais, muito pouco mais.
Ora, se olharmos para esta gente que vivia à conta do magro Orçamento Geral do Estado – que, como é lógico, não pagava impostos pela sua função ordinária – vemos que a grande maioria constituía, na época, uma pequena elite de pessoas “ilustradas” – no mínimo tinha de ter a instrução primária completa – que se distinguia da grande mole da população nacional ignorante e analfabeta – pois restavam, com ilustração mediana, os comerciantes, os empregados de escritório e pouco, muito pouco mais. Portugal era um país equilibrado com um orçamento tendencialmente em plano inclinado caso se alterassem excessivamente os contornos das linhas antes traçadas.
Portugal era o país que convinha? Claro que não era! Portugal tinha de mudar. Mas a condição primeira para mudar passava por um forte investimento na área produtiva do país: a indústria e a agricultura. O capital – viesse ele de onde viesse – tinha de fluir para os sectores produtivos. Para quê, perguntar-me-ão os meus Leitores? Para substituir o rendimento da Fazenda Pública, transferindo do rendimento das alfândegas para os impostos sobre a aplicação de capital, a fonte de receita que alimentava a máquina estatal; para com o que sobrasse, depois de pagar ao funcionalismo público e ao normal andamento dos investimentos do Estado, se aplicar nas melhorias dos serviços que ao Estado competem quando se assume como último e seguro amparo da sociedade. A transição teria de ter sido feita assim, tanto mais que o rendimento das alfândegas coloniais cessou em 1975.
Os meus Amigos já perceberam que nada disto se passou como devia ter passado: desmantelou-se, com a entrada na CEE, a produção agrícola e industrial e todos trabalhadores desta fraca produção se transferiram para a área dos serviços – escritórios, bancos, empresas públicas – ou ficaram na inactividade, vivendo dos subsídios providenciados pelo Estado; o Estado cresceu sem crescerem as suas fontes de rendimento e melhoraram-se desmedidamente os serviços sociais do Estado. Como a instrução se tornou fácil e acessível, a população obteve graus académicos até aí só reservados a poucos e a pressão social foi de tal ordem que o aparelho funcional do Estado teve de acompanhar o crescimento, dando emprego e remunerando bem todos os que viviam do orçamento nacional.
A falta de estudo e de percepção do país em que se vivia levou todos os recém-chegados às cadeiras do Poder, por ignorância absoluta do funcionamento do aparelho estatal, por impreparação, por ilusões criadas no estrangeiro a que cometessem erros sobre erros, cada qual mais grave que o anterior, negociassem uma entrada na CEE sem observação da verdade portuguesa e proporcionassem uma transferência massiva da população dos campos para as cidades onde buscavam emprego num aparente ambiente de abundância e de abastança sem fim. Os banqueiros olharam, depois de ser autorizada a banca privada, aos seus rendimentos e não para o país e para a população e, acima de tudo, para as necessidades que despontavam no horizonte.
Os governantes de hoje, ignorantes, atrevidos, sem a noção do país que governam, sem a fotografia real da sociedade portuguesa, desmantelam o que ainda está erguido e o aparelho do Estado vai cair com grande fragor, muita poeira e muito entulho e nada se vai construir em seu lugar. E isto é criminoso, por um só motivo: mataram-se as esperanças de uma população que acreditou na estabilidade estatal, esperanças que foram acrescentadas por décadas de sonho, por décadas de ignorância.
Décadas de ignorância, digo bem, porque quem passou pelos gabinetes ministeriais foi gente sem preparação, sem conhecimentos; foram broncos alcandorados à ilusão de inteligentes e sabedores. Tratou-se de gente que, sendo portugueses e tendo vivido por cá, de nós e do nosso passado e do presente de então nada sabiam e nada continuam a saber.