Um grande sofisma
Ontem, dia 26 de Novembro, foi empossado o Governo chefiado por António Costa, depois de derrubado o da coligação PSD/CDS, minoritário na Assembleia da República. Antes e depois de assumir funções já o Gabinete socialista era contestado pela direita, pelos comentadores e por muita gente que discordou da nomeação deste Executivo.
Uma das razões da discordância assenta num sofisma só resultante de uma lógica ignorante dos termos da Constituição da República: a de que o Partido Socialista (PS) é minoritário na Assembleia e que, por tal motivo, não devia formar Governo e, mais ainda, perdeu as eleições, pois estas foram feitas para escolher o partido e o chefe de Governo que havia de governar.
Esta “lógica” traduz a raiva da direita apoiada em dois pilares históricos, que julgava inquestionáveis: um, a fuga do PS da órbita do tradicional “arco da governação” e, outro, o estabelecimento da abertura democrática para o Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista Português (PCP) passarem a ter voz activa na governação com ligação directa ao Executivo. Indubitavelmente, ontem escreveu-se uma nova página na história política nacional desde há quarenta anos a esta parte: a esquerda parlamentar é decisiva na política portuguesa. E, o que mais enraivece a direita, é o facto de o PS voltar a alinhar na posição certa das bancadas do parlamento como consequência de uma má governação dessa mesma direita.
Vamos desfazer o sofisma.
Como é que é nomeado o Primeiro-Ministro?
De acordo com o número 1 do artigo 187.º da Constituição «[…] é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais.»
Sejamos, então, rigorosos na leitura e interpretação do texto constitucional: “ouvidos os partidos” (não diz, ouvidos os parceiros sociais estes, aqueles e os outros!). E, depois de derrubado o Governo da coligação, o que é que os partidos poderão ter dito ao Presidente da República? Pois é simples: o PSD e o CDS (que concorreram às eleições coligados), para além de discordar da entrega da governação ao PS, só poderiam responder qualquer coisa como:
— Senhor Presidente, a coligação desfez-se e nomeie para formar Governo o líder do PSD, por este agrupamento partidário ser o que mais cadeiras ocupa no parlamento.
E se o Presidente caísse nessa patetice ia dar imediata cobertura a nova crise governamental e, pior do que isso, ia sancionar uma mentira e uma trafulhice feita nas costas dos Portugueses, pois ia aceitar que tivesse resultado uma proposta que não foi apresentada ao eleitorado: o desfazer da aliança PSD/CDS. E tudo por um motivo: estes dois partidos, aquando das eleições parlamentares — note-se que eu digo, parlamentares — apresentaram-se ao eleitorado para serem Governo e não para representarem os Portugueses na Assembleia da República. E este é o elemento de fundo da sua argumentação para criarem o sofisma! Eles não queriam representar-nos! Eles queriam ser Governo através de terem maioria de lugares no parlamento! E é aqui que bate o busílis!
Vejamos o que diz a Constituição.
No artigo 147.º afirma: «A Assembleia da República é a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses.» No número 2 do artigo 152.º afirma: «Os Deputados representam todo o país e não os círculos por que são eleitos.»
Está escrito, como se usa dizer, preto no branco (em referência à cor do papel e da tinta) que é na Assembleia que “estão sentados”, virtualmente, os Portugueses e que os seus representantes devem ser tomados como um todo e não parcelarmente em representação dos círculos que os elegeram.
Mas, voltemos atrás, para continuar a analisar a obrigação presidencial.
O Presidente da República tem de ouvir os partidos representados na Assembleia e nomear o Primeiro-Ministro, “tendo em conta os resultados eleitorais”. Não se diz “tendo em conta a maioria”! Ora, os resultados eleitorais, já que os deputados representam os Portugueses, apontam para duas direcções diferentes: uma parte dos portugueses votou na coligação que concorreu para ser Governo através de ter maioria parlamentar e a maioria dos portugueses votou em três partidos, que os representam em concordância com a Constituição, e que, “atendendo aos resultados eleitorais” podem, agora sim, fazer um acordo de Governo!
E, deste modo se desmonta o sofisma: a direita concorreu em coligação para governar e não para representar os Portugueses; a esquerda concorreu para representar os Portugueses e, depois, se necessário e possível, fazer os arranjos e alianças que mais satisfaçam os cidadãos. Por outras palavras, direi: a coligação foi derrotada duplamente no acto eleitoral, porque:
- Não conseguiu a maioria estável para alcançar a razão da sua ida às urnas: formar Governo;
- Os Portugueses, distribuindo os seus votos por três partidos para serem representados na Assembleia, deram a esses partidos a maioria parlamentar, ou seja, aquela que traduz a discordância da coligação ser Governo e aquela que possibilita os acordos necessários para a maioria, de uma forma ou de outra, ser Governo, se o Presidente da República souber interpretar dinamicamente os resultados das eleições.
O sofisma da direita, como se vê, consiste em fazer crer que os partidos, nas eleições legislativas, concorrem para serem Governo! A verdade é que todos falam em programas políticos para a eventualidade de ganharem as eleições, mas esses programas não se esgotam no dia em que se sabem os resultados! Não. Esses programas norteiam as propostas dos deputados no exercício da representação dos Portugueses na Assembleia!
A direita sabe tudo o que acabei de expor, mas dá-lhe jeito não saber! E ao Presidente da República dava-lhe jeito que não fosse assim… mas, o facto é que é assim!