Já algumas vezes abordei aqui o tema da legitimidade. Fico, quase sempre, com a sensação de que há leitores que não compreendem inteiramente o que lhes quero dizer, pois, na verdade, este conceito não é fácil de objectivar… “sente-se” quando não há legitimidade, mas não se pode dizer em absoluto quando ela deixa de existir.
Ainda há pouco tempo deixei dito, já não sei onde, que o Governo Passos Coelho no dia seguinte a ter sido eleito, ou uma semana depois, já era ilegítimo. Era-o, porque estava a começar a fazer tudo ao contrário do que havia prometido durante a campanha eleitoral. Ora, houve quem me contraditasse, alegando que os resultados da votação estavam ali para provar que o Governo era legítimo e, naturalmente, legal. Realmente, não chega essa condição que advém do maior número de votos, pois em democracia há um contrato ou pacto social que se estabelece com os eleitores ao propor-lhes um determinado programa. É na base do cumprimento desse programa que se garante a legitimidade constante na e da governação. Quando há desvios ao programa ocorre uma quebra do pacto social e várias quebras conduzem à perda de legitimidade. O governo, seja ele qual for, ao desligar-se das promessas que fez ao eleitorado, condena-se à ilegitimidade. Em boa verdade, se o poder Legislativo, isto é, o parlamento, estivesse eleito para cumprir as funções que lhe são atribuídas, representando a vontade popular e o cumprimento do programa do governo deveria, de imediato, retirar o apoio ao Executivo e obrigá-lo a cair, mesmo pertencendo a maioria parlamentar ao partido do governo. Já foi assim em Portugal quando o sistema era parlamentarista, sendo semi-presidencial, como é, cabe ao Chefe de Estado ser o garante de legitimidade do governo; perante a sua perda o Presidente da República, na qualidade de Supremo Magistrado da Nação – note-se que é da Nação e não do Estado – deveria dissolver a Assembleia e propor aos Portugueses novas eleições para se alcançar uma nova legitimidade.
Em Portugal – e um pouco por toda a parte, porque a falta de verdade se generalizou e banalizou – nada disto se faz. Perdeu-se o sentido da dignidade, da honra, da virtude e da palavra. A mentira tomou posse da sociedade – nacional e internacionalmente – quando a noção de ética desapareceu para dar lugar ao consumo.
Estou a “ver” na expressão dos meus leitores a estranheza! Ao consumo?!!! É verdade, ao consumo!!
A publicidade trouxe consigo dois mecanismos anti-éticos: o aumento de necessidades e a mentira. De facto, o anúncio publicitário mais não faz do que suscitar no potencial comprador a necessidade de aquisição de um bem sem o qual, em rigor, o consumidor vivia perfeitamente, e consegue esta “maravilha” através de fazer “passar” pequenas mensagens mentirosas: O Omo lava mais branco, para recordar um slogan publicitário de há quase cinquenta anos; continuar-se-ia a utilizar sabão azul e branco se o anúncio se limitasse à simples verdade: O Omo lava!
Da publicidade à propaganda política foi um passo que se deu utilizando as mesmas técnicas anti-éticas. Anunciam-se partidos, políticos e programas políticos tal e qual como se anunciam novos produtos que acabam “radicalmente” com calos ou pé-de-atleta. Porque passámos a conviver tranquilamente com a publicidade e com o paradigma anti-ético que ela configura, passámos também a aceitar o mesmo modelo na política, por força da acção da propaganda, que mais não é do que a publicidade dos políticos. Daí, aceitarmos e convivermos tão facilmente com a ilegitimidade.
Não quero maçar mais os meus leitores, mas, para complementar esta divagação sobre a incapacidade de percebermos as quebras do pacto social que os partidos estabelecem com o eleitorado, gostaria de vos deixar aqui a transcrição de um texto da autoria do falecido historiador Jorge Borges de Macedo que vem, também, a propósito da anulação do feriado de 1 de Dezembro. Tenham em conta a noção de pacto social e de legitimidade.
«A Revolução de 1 de Dezembro de 1640 tornava-se pois legítima e quem, em Portugal, a recusasse era considerado rebelde. Na linha do raciocínio, que na época, em Portugal, se formulava relativamente à revolução triunfante salientava-se outro tópico. Era esse que, embora os Filipes pudessem ter tido alguns direitos (válidos, depois do reconhecimento das Cortes de Tomar em 1581), tinham-nos perdido porque tinham violado o pacto negociado naquelas Cortes. Aí, o rei espanhol tomara compromissos que não foram cumpridos, nem quanto aos cargos atribuídos só a portugueses, nem quanto a impostos, nem quanto ao emprego de soldados portugueses, nem quanto às consultas às entidades nacionais. Neste modo de pensar a dinastia filipina, mesmo que tivesse tido direitos, tinha-os perdido.
A defesa da legitimidade da independência desenvolvia-se naqueles dois planos. Um primeiro apelava para o direito de “revogar” um rei porque ele não cumpria os deveres por que se responsabilizara. (…)» (História Diplomática Portuguesa: constantes e linhas de força – Estudo de Geopolítica, 2006, p. 183).