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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

20.07.11

Marcelo Caetano um legalista


Luís Alves de Fraga

 

Os homens mais inteligentes, mais cultos, mais sabedores são reféns das suas próprias características onde não entram a inteligência, a cultura, nem a sabedoria. Àquelas, para lhes adoçar as arestas mais agrestes, chamamos-lhes coerência, princípios, regras. Poderíamos chamar-lhes falta de elasticidade, de visão, monolitismo, medo.

Vem isto a propósito de um facto do qual tomei conhecimento pela leitura de um livro de memórias intitulado Na Sombra do Poder, da autoria de Pedro Feytor Pinto. Está descrito entre as páginas 250 e 255.

O autor era, no início do ano de 1974, director de serviços na Direcção-Geral de Informação, tendo a seu cargo o relacionamento com a imprensa nacional e estrangeira. Um cargo secundário no aparelho do Estado, mas de primordial importância na formação da imagem de Portugal no exterior e no interior. Tinha, nessa altura, trinta e sete anos a poucos meses de completar trinta e oito. Passemos ao relato.

Em Fevereiro, poucos dias antes do Carnaval, saiu para as bancas dos livreiros a obra putativamente da autoria do general António de Spínola, Portugal e o Futuro que já vinha sendo anunciada há algum tempo. Foi um livro explosivo, na época, porque fazia a apologia de uma autodeterminação das colónias portuguesas, gerando uma comunidade lusófona. Era a saída, que se imaginava possível, para o impasse que treze anos de guerra haviam traçado. Em abono da verdade, a tese defendida pelo general não andava muito longe da que Marcelo Caetano preconizava desde há muito e que, segundo parece, estava a tentar delinear a passos lentos para solucionar a questão ultramarina. Fosse como fosse, o livro teve o efeito, no país e no estrangeiro, de um inesperado terramoto, tanto mais que vinha da pena de um dos oficiais generais com maior prestígio bélico de então.

Logo a seguir ao Carnaval, Marcelo Caetano convocou Pedro Feytor Pinto para uma reunião no palácio de S. Bento. O Presidente do Conselho estava em conferência com os ministros da Defesa, dos Negócios Estrangeiros e do Ultramar. Para ser recebido encontrava-se também João Salgueiro. A cara dos ministros, ao saírem da entrevista, era patibular. Entrou João Salgueiro e, depois da saída deste, finalmente Pedro Feytor Pinto foi recebido numa antecâmara adjacente ao gabinete de trabalho de Marcelo Caetano.

Trocaram-se impressões diversas até que se chegou ao cerne da questão. O Presidente do Conselho considerava o livro e a sua publicação como um verdadeiro golpe de Estado. Retorquiu o interpelado que concordava, mas que o achava como indo em favor de Marcelo Caetano, pois que, na impossibilidade de demitir Spínola, não podia governar na ignorância do retumbante êxito editorial que se verificara. Assim, considerando a conjuntura nacional e internacional existente, o jovem conselheiro sugeriu ao velho lobo político três alternativas: a primeira, aproveitando qualquer pretexto, organizar um acontecimento no qual o general Spínola estivesse junto de Marcelo Caetano – recusou com a afirmação: «Eu, com o meu tutor ao lado!»; a segunda, dar liberdade de imprensa para que todos os comentários ao livro pudessem ser feitos, ao que O Presidente do Conselho respondeu ser impossível por as redacções dos jornais estarem infiltradas de comunistas, sendo que as Forças Armadas iriam considerar isso uma traição; a terceira e mais ousada, passo a transcrevê-la: […] ir a Belém, expor a gravidade da situação ao Presidente da República, sugerindo-lhe que abandonasse o cargo possibilitando, assim, o acesso do general Spínola à Presidência. Se o almirante Thomaz levasse tempo a decidir, pedia-lhe que fosse à janela para ver as Forças Armadas que rodeariam o Palácio. Disse-me [a Feytor Pinto], então, com a maior veemência: «nunca poderei cometer tal ilegalidade».

 

Com esta revelação ficamos a saber, pelo autor de Na Sombra do Poder, que Marcelo Caetano havia sido, por um dos seus mais próximos conselheiros, tentado a dar o mais magistral dos golpes de Estado que imaginar se poderia dentro do regime. Seria a vitória da ala moderada sobre a mais forte e conservadora parcela do salazarismo ainda existente. Tudo poderia acontecer, mas era a tentativa de levar por diante a mudança na continuidade. Mas Marcelo Caetano foi aquilo que era: um legalista. Faltou-lhe o golpe de asa, o olhar de falcão, a coragem dos desesperados, a loucura dos lutadores, a ousadia dos insensatos. Falaram mais alto as suas características. Características das quais todos nós somos reféns e que nada têm a ver com inteligência, cultura e sabedoria. Faltou-lhe o génio que sobrou aos Capitães de Abril.