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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

25.02.09

Para meditar o Regulamento de Disciplina Militar


Luís Alves de Fraga

 

 
 
Baixou à Comissão Parlamentar de Defesa um novo projecto de Regulamento de Disciplina Militar. Sobre ele já se pronunciaram as Associações Profissionais Militares com muita sabedoria e acerto. Que poderei eu dizer mais que já não tenha sido dito?
 
Depois de uma longa ausência do Fio de Prumo, ditada por imposição voluntária resultantes de uma alteração qualitativa na minha vida de docente universitário, eis-me de volta e, num rompante, a falar de um tema candente do quotidiano castrense.
Resta-me, para não me repetir, recordar que fui, durante onze anos, professor na Academia da Força Aérea e, entre várias matérias, também leccionei Deontologia Militar. Aliás, creio que fui o primeiro oficial não capelão a ensinar esta matéria por determinação do general comandante de então. Como já aqui disse há alguns anos atrás, elaborei, para o efeito, uns apontamentos policopiados, sob a forma de dez lições, que passaram a ser elementos de referência para o estudo da matéria. Julgo que, neste momento de reflexão para militares e políticos envolvidos no processo de aprovação do novo Regulamento de Disciplina Militar, cabe aqui e agora a transcrição, ainda que longa, da décima lição do volume intitulado Lições de Deontologia Militar, que anda esquecido — se calhar — pelos arquivos da Academia da Força Aérea. Aí vai, pois, para os mais curiosos e pacientes dos meus leitores.
 
«1. Disciplina
Guardámos, propositadamente, para a última lição desta primeira série o tema em epígrafe, porque nos parece constituir a chave de todo o discurso que vimos desenvolvendo.
Com efeito, sem disciplina mas cheia de homens moralmente bem formados, uma força armada não passa de um bando de «bons rapazes» que não fazem nada mal feito, que não ferem a moral nem a consciência pública e internacional, mas não cumprem nenhum dos objectivos militares que possam ter sido definidos. A disciplina é a argamassa que liga todas as virtudes militares - lealdade, coragem, frontalidade, patriotismo, sentido da honra e da justiça, gosto pelas responsabilidades e pelo risco. Sem disciplina não se é capaz de articular na medida do conveniente e do necessário ao conjunto as citadas virtudes.
Tentaremos dar, nas páginas seguintes, uma clara noção de disciplina para que, pelo seu entendimento uniforme, os futuros oficiais da Força Aérea possam tornar-se excelentes condutores de homens, justos e ponderados nas suas decisões.
1.1. Conceito de disciplina
A melhor definição de disciplina militar, a que mais convém conhecer é a que está consignada no preâmbulo do Regulamento de Disciplina Militar e que passamos a transcrever: «é o laço moral que liga entre si os diversos graus da hierarquia militar; nasce da dedicação pelo dever e consiste na estrita e pontual observância das leis e regulamentos militares». Diz-se, no mesmo Regulamento que a disciplina se obtém «pela convicção da missão a cumprir e mantém-se pelo prestígio que nasce dos princípios de justiça empregados, do respeito pelos direitos de todos, do cumprimento exacto dos deveres, do saber, da correcção de proceder e da estima recíproca».
Atente-se nesta definição e veja-se como ela é perfeita. Analisemo-la passo a passo.
1. A disciplina é o laço moral. Quer dizer, a disciplina impõe-se por uma aceitação e uma coacção de ordem moral, isto é, a disciplina não se alcança através da prática de meios violentos ou repressivos, porque estes geram somente o medo.
2. A disciplina liga entre si os diversos graus da hierarquia militar. Esta afirmação é, também, extremamente importante, porque demonstra que nada nem ninguém fica excluído da sujeição à disciplina; e mais, não se estabelece aqui qualquer sentido na ligação, isto é, tanto liga de cima para baixo como de baixo para cima. Por outras palavras, a disciplina não se aplica só aos subordinados - ela obriga todos.
3. A disciplina nasce da dedicação pelo dever. Com efeito, quanto maior for o interesse pelo cumprimento do dever mais se amplia a consciência da disciplina pela maior integração do que se tem por fazer ou, por outras palavras, quanto mais se cumpre o dever mais se está apto a perceber quanto falta ainda fazer para cumprir bem. A dedicação pelo dever apura a exigência pessoal, aumenta a necessidade de perfeição.
4. A disciplina consiste na estrita e pontual observância das leis e regulamentos militares. Na realidade, só há disciplina quando há cumprimento exacto e em tempo correcto das leis, regulamentos e ordens militares. O militar para, de facto, ser disciplinado não pode só estar cheio de boa vontade; é necessário que cumpra, realmente, a disposições que lhe são apontadas.
5. Consegue-se a disciplina pela convicção da missão a cumprir. Note-se que estamos perante a indicação do método de aquisição de disciplina e repare-se que se diz que é necessária convicção da missão; quer dizer, o militar tem de sentir na sua mente a certeza da missão, isto é, não podem haver dúvidas, nem relutância quanto à missão. Quando o militar tem certezas quanto ao que dele se espera, ele cumpre disciplinadamente, ele é disciplinado. Então, temos aqui uma outra vertente da problemática da disciplina: para que haja certezas quanto à missão, tem de haver um forte empenhamento da parte de quem tem de instruir para que não surjam dúvidas em quem deve cumpri. A disciplina obriga a todos.
6. A disciplina mantém-se pelo prestígio que nasce dos princípios de justiça empregados. Quer dizer, só é possível manter a disciplina se ela estiver associada ao uso criterioso da justiça. Por outras palavras, a boa disciplina consegue-se através da boa justiça. O rigor excessivo na aplicação da justiça provoca a indisciplina tanto como uma muito ampla permissão. A disciplina exige bom senso, moderação, cautela, rigor e amizade. Com efeito, a aplicação da justiça - que é a forma de manter a disciplina - pode ser feita de duas maneiras distintas: uma, sem mostrar qualquer interesse pela pessoa do infractor; outra, ao invés, levando em consideração a pessoa que prevaricou e mostrando-lhe que o castigo não resulta de uma necessidade de vingança, mas de um imperativo de disciplina e de desejo de correcção pessoal.
7. A disciplina mantém-se pelo prestígio do respeito que nasce pelos direitos de todos. Com efeito, se a disciplina é geral, quer dizer, se obriga todos sem excepções, lógico será que a todos sejam reconhecidos os direitos que lhes pertencem. Assim, a disciplina mantém-se, de facto, cada vez que os disciplinadores não atropelam direitos individuais; mas, é necessário levar em conta que, também, se mantém quando se limitam as tentativas de alguns ultrapassarem os seus próprios direitos para desrespeitar os direitos dos outros.
8. A disciplina mantém-se pelo prestígio do respeito que nasce pelo cumprimento exacto dos deveres, do saber, da correcção de proceder e da estima recíproca. Realmente, sempre que os deveres são cumpridos exactamente e nisso se colocou todo o saber, está-se a gerar a manutenção da disciplina, porque se evitam os pontos de discordância entre quem manda e quem deve obedecer. Também se está a gerar a manutenção da disciplina, quando quem manda e quem deve cumprir age coerente e correctamente, isto é, de forma a que se não possam fazer reparos por inconstância temperamental ou comportamental. A disciplina mantém-se quando se desenvolvem laços de estima mútua, isto é, quando o subordinado sabe que conta com um amigo na pessoa do superior e quando este sabe que aquele o respeita, o admira, o compreende e o segue para onde as razões de serviço determinarem.
Depois da análise da definição de disciplina, que já data do século XIX, mas que se mantém tão verdadeira e vigorosa como quando foi, pela primeira vez, enunciada, convirá dar a definição que o próprio Regulamento de Disciplina Militar fornece no seu artigo primeiro: «A disciplina militar consiste na exacta observância das leis e regulamentos militares e das determinações que de umas e de outras derivam: resulta, essencialmente, de um estado de espírito, baseado no civismo e patriotismo, que conduz voluntariamente ao cumprimento individual ou em grupo da missão que cabe às forças armadas».
No artigo 2º do mesmo Regulamento definem-se as bases da disciplina da forma seguinte: «A disciplina deve encaminhar todas as vontades para o fim comum e fazê-las obedecer ao menor impulso do comando; coordenando os esforços de cada um assegura às forças armadas a sua principal força e a sua melhor garantia de êxito». Estamos, por conseguinte, já em face dos aspectos funcionais da disciplina, razão pela qual convirá passar ao capítulo seguinte.
1.2. Função da disciplina
Tal como no Regulamento de Disciplina Militar se afirma, a disciplina deve levar todas as vontades a obedecer ao menor impulso do comando.
Temos, aqui, uma das principais funções da disciplina: levar à obediência do comando, ou seja, a disciplina militar existe para servir o comando. Todavia, não se trata, como já se referiu, de uma obediência conseguida no vazio ou para a nada servir; antes pelo contrário, trata-se de uma obediência que tem uma finalidade: coordenar os esforços para conseguir que as forças armadas tenham êxito na sua missão. Na verdade, tem-se demonstrado, através de exemplos históricos, que forças bem mais fracas, mas muito disciplinadas, alcançam êxitos mais facilmente que tropas com excepcionais panóplias, nas quais impera a desordem e a anarquia.
Se é certo que a disciplina tem uma função social militar e uma função operacional, não é menos certo que tem uma função individual, que se define pelo desejo de perfeição no cumprimento das obrigações militares.
Assim, a disciplina serve individualmente para que cada elemento das forças armadas aprenda a superar os seus defeitos e as suas incapacidades, de modo a não colocar os outros em riscos para os quais não contribuíram. A disciplina militar é uma regra de vida que todo o elemento da instituição castrense tem por obrigação seguir e observar em cada dia, de forma a que seja sempre mais capaz de cumprir, na perfeição, as missões que lhe forem destinadas.
Deste modo, a disciplina não é uma roupagem que se vista quando se está fardado ou quando se está no aquartelamento ou na base, mas é um elemento indissociável da personalidade do militar, porque lhe molda, em todos os instantes, o comportamento, tanto no ambiente civil como no meio castrense. Esta a razão pela qual, muitas vezes, se consegue adivinhar que determinado indivíduo é militar, quando se apresenta à paisana e sem quaisquer indicativos de pertença à instituição castrense; do porte às atitudes, dos gestos às palavras, dos conceitos que defende à forma como o faz, tudo são indicadores militares.
A interiorização da disciplina militar ou, se se quiser, dos princípios enformadores da disciplina, determina uma forma de sentir a vida e os problemas que ela gera, que acaba conduzindo o elemento das forças armadas à necessidade de fazer partilhar os outros dos mesmos padrões que ele adopta. Eis a razão por que o militar disciplinado é sempre um militar disciplinador; ele difunde a disciplina como regra de vida, como forma de estar e, acima de tudo, como forma de ser.
Se é verdade que a disciplina conforma a aparência dos militares, isto é, dá-lhes um porte que lhes é característico, também, não é menos certo que o mais importante na disciplina são as alterações psicológicas que determinam essas mudanças aparentes. Com efeito, a disciplina interiorizada é muito mais eficiente e duradoira do que a disciplina praticada para «agradar» ou «parecer bem».
Esta questão leva-nos direitos à temática do parágrafo seguinte.
2. Exercícios para a disciplina
A disciplina treina-se, tanto a nível colectivo como a nível individual; poder-se-á dizer mesmo mais, a disciplina deve ser treinada com frequência.
O mais simples dos exercícios da disciplina é a prática de ordem unida; esta, ajuda de várias formas ao seu desenvolvimento. Em primeiro lugar, põe um conjunto, mais ou menos amplo, de homens sujeitos ao mesmo comando; depois, leva-os à sincronia de movimentos - factor muito importante na vida militar - que supõe e obriga a existência de disciplina mental; em terceiro lugar, exercita a coacção do grupo sobre o indivíduo - repetem-se os exercícios até que todos executem os movimentos correctamente - que se tem de forçar até atingir a perfeição; em quarto lugar, treina-se a paciência e a resistência individuais e colectiva; enfim, a ordem unida gera um universo complexo de subordinações que se simplificam no seguinte esquema: subordinação das vontades individuais à vontade do comandante; subordinação da vontade de cada um à vontade do grupo.
Todos os exercícios e manobras militares têm duas finalidades intrínsecas: por um lado, treinar a tropa de modo a familiarizá-la com situações que se podem tornar reais; por outro, gerar disciplina de modo a que, no momento exacto, cada qual seja capaz de cumprir, sem hesitações, a sua obrigação.
Mas, se todos os exercícios militares visam o treino da disciplina, há um que, em particular, não podemos deixar de exaltar: a vontade individual de querer ser disciplinado.
O treino da vontade de querer ser disciplinado fá-lo cada um, sem grande alarde, com a certeza de assim estar a procurar a perfeição militar. Esse treino é feito de pequenos sacrifícios diários, de pequenas abdicações, de apetites que se deixam de realizar, porque se tem a certeza de só deste modo se ser capaz de, quando um dia for preciso, praticar outros sacrifícios bem maiores e mais difíceis.
Ninguém espere ter força de vontade para a prática de grandes sacrifícios se não treinou, diariamente, o esforço de fazer os pequenos. Esta capacidade de fazer o que custa, de fazer o que não apetece, é que transmite a capacidade de se ser disciplinado, porque a disciplina é, acima de tudo, um treino, um hábito.
Não espere nenhum aluno da Academia da Força Aérea Portuguesa poder vir a ser um bom oficial, qualquer que seja a sua especialidade, se não tiver treinado a capacidade de se disciplinar, se não tiver aprendido a obedecer. Só é capaz de bem mandar quem aprendeu e praticou a capacidade de bem obedecer.
Não espere nenhum aluno da Academia da Força Aérea Portuguesa vir a ser respeitado pelos seus subordinados, se não tiver aprendido a respeitar os seus superiores.
Todo o aluno da Academia da Força Aérea Portuguesa tem por dever procurar atingir a perfeição interior, a qual passa pela prática da mais severa disciplina individual.
Para poder cumprir a Força Aérea, para poder, cada vez mais, estar mais alto, é necessário que vós, alunos da Academia da Força Aérea, futuro que todos nós, os velhos oficiais, sonhámos, sejais capazes de praticar a mais profunda disciplina interior, sejais capazes de obedecer aos imperativos da vossa vontade, demonstrando que, afinal, valeu a pena o nosso e o vosso sacrifício, no desejo de bem cumprir, no desejo de perpetuar a Pátria de todos nós,
a Pátria Portuguesa.»