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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

30.10.05

Esclarecimento... Mea culpa!


Luís Alves de Fraga

Afinal, transcrevi um artigo cujo autor estava mal informado.


Os serviços competentes vieram publicamente repor a verdade. Cabe-me a obrigação de o fazer também. Isto só prova que, afinal, devo evitar, tanto quanto possível «usar» o trabalho dos outros neste blog, fazendo as minhas próprias crónicas.


Aqui segue o texto do esclarecimento, todavia, para os autarcas das Regiões Autónomas continua a ser verdade o que o articulista atribuía a todos os restantes.


 «Na sua edição on-line de 27 de Outubro de 2005, o semanário «Expresso» publica um artigo


de opinião subscrito por José António Lima, sob o título Bem prega Frei Sócrates , no qual


se tecem algumas considerações a propósito do processo legislativo que conduziu à


aprovação e publicação da Lei n.º 52-A/2005, de 10 de Outubro, que alterou o regime


relativo a pensões e subvenções dos titulares de cargos políticos e o regime remuneratório


dos titulares de cargos executivos de autarquias locais.


Designadamente, escreve o articulista:


«Quando o Parlamento reabriu, a 15 de Setembro, Sócrates fez questão que a aprovação


final da nova lei fosse votada de imediato, para afastar dúvidas e suspeições. E foi. Só que,


em vez de seguir para promulgação em Belém, ficou a aboborar nos gabinetes do


Parlamento e na secretária do socialista Osvaldo Castro. Só foi enviada a Jorge Sampaio a


4 de Outubro e contendo uma disposição que estipula que «a presente lei entra em vigor


no primeiro dia do mês seguinte ao da sua publicação». Ou seja, estava garantido que


os autarcas reeleitos a 9 de Outubro podiam dormir descansados. A nova lei só teria efeitos


a partir de 1 de Novembro. Os vinte dias que o Parlamento e o PS retiveram a lei, antes de a


enviar para a Presidência, tinham sido cirurgicamente providenciais».


Dada a incorrecção e pouco rigor das afirmações produzidas, entende o Presidente da


Comissão de Assuntos, Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias prestar os


seguintes esclarecimentos:


1. A Lei n.º 52-A/2005, de 10 de Outubro, que procedeu à alteração do regime relativo a


pensões e subvenções dos titulares de cargos políticos e do regime remuneratório dos


titulares de cargos executivos de autarquias locais, consta de 11 (onze) artigos, nenhum dos


quais concernente à sua entrada em vigor.


2. Assim, nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 74/98, de 11 de Novembro (publicação,


identificação e formulário dos diplomas), alterada pela Lei n.º 2/2005, de 24 de Janeiro, a lei


em apreço, não tendo fixado o dia da sua entrada em vigor, passará a vigorar no 5.º dia (ou


no 15.º dia para as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira) após a publicação,


contando-se tal prazo a partir do dia imediato ao da publicação ou da distribuição, caso esta


tenha sido posterior.


3. A disposição a que o Senhor Jornalista autor do mencionado artigo faz referência, como


determinante da entrada em vigor da mencionada lei no dia 1 de Novembro, mais não é do


que o artigo 28.º da Lei n.º 29/87, de 30 de Junho (Lei dos Eleitos Locais), a qual sofreu


alterações por via da Lei n.º 52-A/2005 e, nos termos do seu artigo 11.º, foi integralmente


republicada como anexo II, preceito esse que dizia respeito à entrada em vigor da Lei n.º


29/87, mas não da Lei n.º 52-A/2005.


28 Outubro 2005


2


4. Quanto à afirmação de que o texto votado em votação final global em sessão plenária de


15 de Setembro «ficou a aboborar nos gabinetes do Parlamento e na secretária do socialista


Osvaldo Castro», a mesma será apenas admissível a quem desconhece os trâmites e


práticas normais do processo legislativo parlamentar, cuja fase final foi, no caso concreto, a


seguinte:


a) Após votação final global no dia 15 de Setembro (quinta-feira), o texto baixou à Comissão


de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias na quinta-feira seguinte, dia


22, para fixação de redacção final conforme regimentalmente imposto (cfr. artigo 166.º),


tendo entretanto passado pelos competentes serviços de apoio parlamentar para


preparação do projecto de decreto;


b) Fixada a redacção final no dia 28 de Setembro (quarta-feira), na âmbito da primeira


reunião ordinária da Comissão subsequente à recepção do projecto de decreto e dentro do


prazo de cinco dias imposto pelo mencionado artigo 166.º do Regimento, a Comissão


devolveu o texto ao Senhor Presidente da Assembleia da República no próprio dia, o qual,


após devidamente assinado, foi remetido a 4 de Outubro (terça-feira) para promulgação,


promulgado dois dias depois, no dia 6 de Outubro (quinta-feira) e submetido a referenda


ministerial no dia seguinte, dia 7;


c) No próprio dia 7, o decreto foi remetido para a Imprensa Nacional para publicação como


lei da Assembleia da República, o que aconteceu três dias depois, no dia 10, sob o n.º 52-


A/2005.


É o que se impõe esclarecer, sem deixar de considerar que se o Senhor Jornalista tivesse


tido a diligência de obter junto do signatário os dados indispensáveis para a elaboração da


sua crónica, provavelmente não teria incorrido nas apontadas desatenções e não extrairia


conclusões de factos inverídicos.


Assembleia da República, 27 de Outubro de 2005


O PRESIDENTE DA COMISSÃO DE ASSUNTOS CONSTITUCIONAIS, DIREITOS,


LIBERDADES E GARANTIAS


(Osvaldo Castro)»

28.10.05

Bem Prega Frei Sócrates...


Luís Alves de Fraga

Não queria que este blog fosse uma colagem de artigos, crónicas ou outros escritos de autores diversos. Tenho resistido à tentação, mas no Expresso on-line de 26 do corrente mês saiu uma crónica política de José António Lima que, como soe dizer-se, «cai como mosca no mel» no «Fio de Prumo». A análise e a conclusão são fundamentais para se compreender a verdadeira intenção do Governo que tem apregoado aos ventos a necessidade de os sacrfícios orçamentais atingirem todos os servidores do Estado. Pois é! Contudo, há uns que são «mais servidores» que outros, por isso, para esses nada se pode fazer e, entre eles, estão os militares.


Deixo-vos, com a devida vénia, na companhia de José António Lima.


«No momento em que eliminam vários direitos adquiridos, em nome da sustentabilidade das contas do país e da equidade de direitos no funcionalismo público, José Sócrates e o PS alargam até 2009 o generoso regime de privilégios de autarcas e deputados. Pior: fazem-no à socapa, com enganosos artifícios por baixo da mesa, e tentando passar a ideia de que estão a fazer o contrário, a moralizar o alargado esquema de regalias da classe política.  


Atente-se nos passos desta artimanha processual e política. Antes de impor os generalizados sacrifícios e cortes à função pública, José Sócrates anunciou e garantiu que, como exemplo, os políticos seriam os primeiros a prescindir dos seus regimes de privilégios injustificados. Para isso, e porque «os sacrifícios teriam de ser distribuídos por todos» como humildemente assegurou Sócrates, iria ser revista a lei das subvenções dos políticos. Uma lei que, há mais de duas décadas, permite que seja contado a dobrar o tempo em funções dos políticos para efeitos de reforma, que lhes seja atribuído um invejável subsídio de reintegração ou que se reformem antecipadamente muito antes dos 65, dos 60 ou até dos 50 anos.  


O fim destes privilégios iria abranger, de imediato, mais de um milhar de autarcas (presidentes de câmara e vereadores executivos) e algumas dezenas de deputados, entre outros políticos. A nova lei entrou mesmo no Parlamento a 16 de Junho e foi votada e aprovada a 28 de Julho. Faltava apenas a votação final global que, face ao crescente clamor de protesto dos aparelhos partidários, o Parlamento meteu na gaveta e deixou para depois das férias.  


Começava a perceber-se que a nova lei só iria entrar em vigor depois das eleições de 9 de Outubro, por pressões de autarcas de todos os quadrantes e das estruturas partidárias. Na verdade, para um autarca que tivesse terminado o seu primeiro mandato e agora se recandidatava, a entrada em vigor da nova lei implicaria que no final de 2009 apenas contasse 8 anos, de dois mandatos, para a sua reforma. Se a lei não entrasse em vigor (e como estipula que, a partir dos 6 anos em funções, a contagem é feita a dobrar), esse mesmo autarca chegaria a 2009 contabilizando 16 anos para a sua reforma. E muitos deles, deputados e autarcas, poderiam mesmo continuar a usufruir até 2009 do privilegiado sistema de reformas antecipadas. Percebia-se a inquietação.  


Quando o Parlamento reabriu, a 15 de Setembro, Sócrates fez questão que a aprovação final da nova lei fosse votada de imediato, para afastar dúvidas e suspeições. E foi. Só que, em vez de seguir para promulgação em Belém, ficou a aboborar nos gabinetes do Parlamento e na secretária do socialista Osvaldo Castro. Só foi enviada a Jorge Sampaio a 4 de Outubro e contendo uma disposição que estipula que «a presente lei entra em vigor no primeiro dia do mês seguinte ao da sua publicação». Ou seja, estava garantido que os autarcas reeleitos a 9 de Outubro podiam dormir descansados. A nova lei só teria efeitos a partir de 1 de Novembro. Os vinte dias que o Parlamento e o PS retiveram a lei, antes de a enviar para a Presidência, tinham sido cirurgicamente providenciais.  


Sampaio promulgou a lei com rapidez, em dois dias, e enviou-a para publicação em «Diário da República», onde viu a luz do dia na manhã seguinte às eleições autárquicas. Mas já era tarde para ter efeitos imediatos. Ainda assim e porque as leis entram em vigor cinco dias após a sua publicação (não fosse a disposição que, neste caso, remete para 1 de Novembro), muitos autarcas recearam que ela passasse a vigorar logo no dia 15 de Outubro. E à cautela, num movimento inédito logo na primeira semana pós-eleições, muitos foram os concelhos e os autarcas que se apressaram a antecipar as tomadas de posse. Não fosse o diabo tecê-las.  


Em conclusão. No momento em que restringem privilégios a vários sectores do funcionalismo público, em que extinguem subsistemas de saúde mais favoráveis, em que aumentam a idade para efeito de reforma, em que congelam salários e progressões nas carreiras - nesse mesmo momento, José Sócrates e o PS permitem que as regalias e regimes especiais da classe política se prolonguem até 2009 e abranjam mais umas larguíssimas centenas de políticos no activo.  


Com que cara e com que moralidade podem o primeiro-ministro, o PS e os deputados em geral (cúmplices nesta artimanha processual em proveito próprio) encarar os juízes e magistrados em greve? Ou exigir que a generalidade dos funcionários públicos compreenda as dificuldades e aceite os sacrifícios? Não sobrará, no meio de tudo isto, um mínimo de vergonha?»


 

26.10.05

De Soldado à Condição Militar


Luís Alves de Fraga
 

Todo o Homem recebe da família e da sociedade um amplo conjunto de regras de conduta que lhe ditam o comportamento em individual e em grupo. Chamamos-lhes, vulgarmente, educação.


Começamos a ser educados logo ao acabar de nascer: dão-nos mais ou menos banhos, trocam-nos as fraldas, limitam-nos o choro, exigem que façamos gracinhas, que aprendamos a falar, a comer, a estar calados, a escrever, a ler, a comportarmo-nos, a não dizer palavras impróprias da nossa idade, a tratar as pessoas mais velhas, mais ricas, mais fortes, mais poderosas, de certa maneira deferente, a brincarmos com os objectos supostamente adequados ao nosso sexo, a conviver cordialmente com os outros, a estudar, a trabalhar, a não dizer mentiras, a não roubar, enfim, numa palavra, a sermos cidadãos decentes e responsáveis. Tudo isto nos ensinam, embora muitos de nós fujamos às regras e, por isso, caiamos sob a alçada da punição paterna, escolar, policial, judicial. Nos diferentes estádios punitivos o que se procura fazer é castigar e reinserir os prevaricadores de forma a aceitarem pacificamente as regras de vivência em sociedade.


A todo o processo vulgarmente designado por educação, dão os sociólogos o nome de socialização e os antropólogos o de enculturação. Para uns, trata-se de socializar o indivíduo, para outros, de lhe transmitir a cultura do grupo onde estão a crescer. A socialização ou enculturação são processos que duram toda a vida — até se «ensina» a morrer, procurando não incomodar os outros com a exposição dos nossos aleijões, das nossas dores, dos nossos sofrimentos, aceitando pacificamente ser levado para lares de terceira idade cujo funcionamento se assemelha a antecâmaras da morte!


O Homem vive o seu processo de socialização, em geral, diferente conforme variantes mais ou menos previsíveis, tais como: país, grupo étnico, meios de fortuna, ascendência, tipo de escolaridade, região geográfica de habitação, empenhamento/disponibilidade dos familiares para o processo educativo, idade e género dos educadores e tantos mais que enumerar seria quase fastidioso.


Na chamada cultura ocidental há duas instituições — a igreja e a militar — que, para profissionalizar o candidato ao trabalho, têm como função reformular, reestruturar e, principalmente, modificar, o processo de socialização «geral» recebido no seio da comunidade de pertença ou familiar. Deixo de lado a primeira, por não ser relevante no contexto desta deambulação intelectual e vou fixar-me na segunda.


Antes de vermos a razão de uma reformulação do processo de socialização dos militares, convirá perceber que este está, efectivamente, na origem de tanta revolta contra as Forças Armadas por muitos daqueles que por elas passaram, em especial quando era obrigatório o serviço nas fileiras. Essa revolta, esse desconforto, esse traumatismo mais não é do que a resposta negativa ao processo de socialização militar. Um processo que trunca um outro que estava em fase de sedimentação inicial, que interfere com a forma de estar e de sentir e, mais do que tudo, de viver que foi apreendida desde a nascença até à idade de ser integrado nos quartéis e passar a receber instrução castrense.


Porque tem de haver um processo de socialização militar para cumprir obrigações de cidadania, por maioria de razão, por ele têm de passar todos quantos pretendem profissionalizar-se como elementos da instituição militar. Daí os cursos de formação de graduados e daí, também, o facto de o mais longo ser o de oficial, chamado, de carreira.


Em que consiste o processo de socialização militar?


Poderia responder da forma simples, dizendo: — Gerar os princípios de aceitação da tão badalada condição militar! Mas opto por tentar uma explicação mais completa.


As Forças Armadas de qualquer nacionalidade não são um bando de homens e mulheres possuidores de armas que obedecem a um chefe. São uma organização altamente hierarquizada de homens e mulheres que, aceitando padrões de disciplina e de ética previamente definidos, desenvolvem entre si um elevado sentido de corpo, materializado na profunda confiança que depositam nos seus companheiros, no sentido de responsabilidade perante o grupo, no dever de entreajuda, na disponibilidade para a emulação face a valores colectivos que lhes são superiores, no constante treino para o exercício das suas funções em ambiente real, na abnegação e desinteresse de condições individuais em nome do colectivo, na coragem perante todas as situações de perigo e risco de vida ou iminência de desastre, na capacidade de auto-controle e de gestão de esforços em momentos catastróficos, enfim, na obtenção e manutenção de qualidades, no seu conjunto, pouco comuns aos cidadãos em geral.


Para se conseguir este amplo leque de condições — e outros menores e menos gerais, que não referi — tem de haver lugar à chamada instrução militar a qual mais não visa que a alteração de comportamentos dos candidatos a militares. Isso corresponde a uma ressocialização do indivíduo, nem sempre pacífica e, quase sempre, dolorosa. Há parcelas do comportamento do recruta que têm de ser anuladas ou reformuladas, mas sempre alteradas. Há como que uma desarrumação de comportamentos sociais e psicológicos para se obter uma nova arrumação sem, contudo, perder de vista os valores e comportamentos anteriores, visto que, mesmo militar, o indivíduo continua a estar inserido e a ter de viver na comunidade civil sem desvios ao padrão comportamental de referência.


Um exemplo simples. Na generalidade todas as crianças aprendem a dominar e não usar a agressividade na relação com os outros. Esta chega mesmo a ser considerada indesejável no âmbito social civil. Ora, uma das mais importantes características do militar é o uso controlado da agressividade, porque constituirá um importante factor de sobrevivência no campo de batalha — sem agressividade é-se um homem, ou morto ou vencido, incapaz de combater. Há uma contradição, que tem de ser superada e compatibilizada pelo militar, traduzível no facto de saber ser agressivo quando e onde necessário e não o ser quando e onde não for preciso. Poderia dar mais exemplos bem esclarecedores. Basta referir um só. O gosto pelo risco.


Na sociedade civil espera-se de cada cidadão um comportamento que não ponha em perigo a integridade física própria e alheia; na militar incentiva-se a treinar o risco para saber vencer e/ou controlar o medo próprio em tais situações.


Todo este emaranhado de exercícios conduz a um fim último: disciplinadamente aceitar as imposições da hierarquia até ao limite de, conscientemente, avançar para situações de possível perda da vida.


É, em última análise, a esta disposição — em nada comum a outras profissões — que, entre nós, se dá o nome de condição militar.


Terei sido capaz de explicar os motivos da especificidade e da diferença entre ser-se funcionário público e militar?

19.10.05

De alferes a ministro


Luís Alves de Fraga
 

Desde que caiu a ditadura, em 25 de Abril de 1974, caiu, também, sobre o Ministério da Defesa Nacional uma espécie de anátema que levou ao afastamento sucessivo de ser um militar a sobraçar aquela pasta.


Se durante o Estado Novo os ministérios militares quase estiveram reservados a oficiais de carreira e poucos foram os civis a gerir assuntos castrenses, a «vingança», nos trinta e um anos de democracia foi bem pior, pois nunca nenhum militar se sentou no conselho de ministros como gestor desses mesmos assuntos. E, contudo, foram vários os militares que passaram à situação de reserva para fazerem carreira como políticos! É extraordinário como os aparelhos partidários nunca conseguiram eleger um profissional militar — admito até, um sargento saído para concorrer a uma junta de freguesia! — reunindo condições mínimas para o cargo de ministro da Defesa Nacional. Já elegeram indivíduos que nem prestaram serviço nas fileiras, mas, ao menos um ex-cabo readmitido, um antigo soldado da Guarda Nacional Republicana (profissional, por conseguinte), isso nunca!


Não tendo havido um antigo militar de profissão ministro da Defesa Nacional, já os houve antigos alferes (ou a tal equivalentes) milicianos. Daqueles que, quase sempre, quiseram fugir à obrigação de cidadania, quando, no passado, havia serviço militar obrigatório. Foram (são) homens que tiveram da vida militar uma visão naturalmente distorcida, adorando-a, odiando-a ou simplesmente sendo-lhe indiferente do ponto de vista afectivo. Todavia, isso não invalida, que a percepção que têm da organização militar seja sempre distorcida. Hão-de olhar para o conjunto, tomando-o pela parte que experenciaram, tal como o turista que viajou de automóvel por algumas más estradas de um país e conclui que todas as restantes rodovias se lhe assemelham. Para ele, poder-lhe-ão contar maravilhas dessa terra, no entanto, a memória guardada é a dos solavancos e do guinchar das molas do seu veículo. Nada mais lhe fará grande sentido dessa fugaz passagem por aqueles sítios onde não chegou a viver. Até poderá ver muitos filmes sobre a terra e os seus costumes, ler muitos livros, conversar com especialistas, mas o buraco onde quase se lhe partia o automóvel, esse jamais será esquecido e o seu entendimento do país continuará a ser ditado pelo ranger das molas e as pancadas dos amortecedores. É assim, porque é humano! E tem sido assim que os ministros da Defesa Nacional, em democracia, têm visto as Forças Armadas... A sua experiência pessoal como alferes miliciano tem-lhes ditado entendimentos de uma organização da qual nem imaginam a verdadeira complexidade! Não imaginam, dado terem-na percepcionado de baixo para cima e como simples«vítimas».


Argumentarão alguns que os vários ministros da Defesa Nacional têm tido assessores militares. Retorquirei: a influência exercida junto do ministro será, dentro dos padrões normais de comportamento, condicionada pela sua isenção intelectual, pela experiência pessoal, pelos conhecimentos teórico-práticos das situações estudadas, pelas sua naturais opções políticas, pelos seus dotes persuasivos, pelo desejo de «sobrevivência» laboral (ou seja, manutenção no cargo) e, por fim, pelas ambições pessoais. Claro que os ministros têm, também, tido assessores civis que, a meu ver, estarão, na perspectiva profissional, em desvantagem perante os militares, pois à lista anterior dever-se-á retirar o segundo e terceiro itens, acrescentado um outro que poderemos designar por «total confiança e subordinação política ao ministro» isto porque, enquanto o militar tem sempre assegurada a sua «rectaguarda» profissional, o civil perde-a quando deixar de ser um atento servidor do detentor da pasta!


Assim, e em conclusão, um ministro da Defesa Nacional é, no máximo, um antigo alferes miliciano estribado na experiência, ambição e honestidade dos assessores militares e na lealdade, ambição, honestidade e inexperiência dos assessores civis. Deste modo se explica, em boa parte, o soberano desinteresse a que tem estado votada a instituição militar, desde 1982. Desinteresse e quase ostracismo durante os Governos onde preponderam os ministros socialistas por serem, e demonstrarem ser, os mais anti-militares de todos.


Ora, em jeito de remate, atendendo ao que deixei dito quanto à gestão do Ministério da Defesa Nacional, se tivermos em conta o facto de a última palavra pertencer sempre ao ministro, e enquanto os políticos recearem a entrega da pasta a um militar na situação de reserva ou de reforma, podemos não ficar tranquilos quanto ao futuro da instituição castrense, porque não existe nenhum elo de confiança entre o decisor máximo e as vítimas ou beneficiários da decisão. Isto leva-nos, a nós militares, a ter de pensar seriamente na honestidade intrínseca dos Governos havidos desde a extinção do Conselho da Revolução, porque temos sido geridos, no máximo, por alferes com poderes de ministro... E, o mais perigoso, é que os ministros têm tido consciência dessa inversão disfuncional que os não tranquiliza e, ao invés, oferece-lhes um capital de insegurança só compensável pelo exagero de poder com que se rodeiam., impondo uma quase submissão dos chefes militares à sua ignorante sobranceria. E verdade se diga, salvo raras e honrosas excepções — como foi bem recentemente a do chefe do Estado-Maior da Força Aérea — as chefias têm aceite pacificamente o comando político de alferes milicianos arvorados em responsáveis máximos pela Defesa Nacional. Um escândalo que sai fora da nossa tradição republicana e, até, monárquica.

12.10.05

É bom recordar... os politicamente correctos!


Luís Alves de Fraga

Como os meus leitores já perceberam não gosto de manter um blog à custa do chamado «corte e costura»; prefiro expressar as minhas opiniões, sendo por elas o único responsável. Mas agora não resisti e aqui fica, com a devida vénia, uma «colagem»:


Caros camaradas


Ao longo do processo que culminou na promulgação dos DL 166 e 167/2005, de 23 de Setembro, referentes, respectivamente, às alterações aos regimes de reserva e de reforma e à assistência na doença dos militares, nem sempre foi fácil lembrar que os males que nos afligem vêm de longe.


Graças ao cuidado do COR INF (REF) David Martelo, é-nos possível rever as simpáticas palavras de alguns comentadores (entre eles – imaginem! – o sr. Emídio Rangel, autor de um inacreditável editorial no “Correio da Manh㔠de 24 de Setembro passado) a propósito da “crise de 1999”.


Lembram-se?


No princípio do Verão de 1999, os militares, fartos de verem as suas remunerações rebaixadas em relação às categorias profissionais de referência, fizeram bem mais do que na presente situação, em que, cumprindo escrupulosamente as proibições resultantes de um entendimento conjuntural sobre a coesão e a disciplina, foram acusados de “instrumentalização político-partidária” e de “deriva sindical”: na época em apreço, em inúmeras cidades do País, os oficiais foram almoçar fora fardados e os sargentos e as praças, igualmente fardados, passearam pelas ruas o seu descontentamento.


Vieram as boas palavras e a compreensão de todas as forças políticas.


O sr. Presidente da República escreveu até um artigo no “Diário de Notícias” em que lembrava a necessidade de tratar convenientemente a questão das Forças Armadas.


Veio, também, um DL, o 328/99, de 18 de Agosto, em que foram introduzidas algumas melhorias ao sistema retributivo dos militares, criando-se entretanto novas situações de injustiça relativa, por sinal ainda não resolvidas.


O DL continha, no seu preâmbulo, o compromisso de que aquele seria o primeiro passo no sentido da aproximação aos sistemas retributivos das categorias profissionais de referência.


Pois é! Até hoje, ninguém conseguiu vislumbrar os passos seguintes…


Saudações cordiais do


Tasso de Figueiredo


COR TPAA/Secretário-Geral da AOFA


 


Público On-line, 27 deJunho de 1999


Crise militar, crise nacional


José Ribeiro e Castro
«Esta crise que se vem arrastando nas Forças Armadas é mais do que uma crise de remunerações. Traduz uma crise da relação do Estado com a instituição militar. Em vários planos. Desde logo, o funcionamento deficiente da democracia representativa a respeito dos militares. O mesmo quanto à "democracia mediática", que é, hoje em dia, a sua expressão mais frequente e sensível.
 
A degradação relativa das remunerações dos militares não aconteceu, como é óbvio, de um dia para o outro - é efeito de vários anos sucessivos de desigualdade de tratamento que se foi acumulando. Os militares, diante desse quadro, têm, por efeito do seu próprio estatuto, diversas limitações à expressão, seja individual, seja corporativa, das suas discordâncias, do seu descontentamento ou das suas pretensões. Assim sendo, as instituições políticas de representação deveriam proporcionar-lhes um pouco mais de atenção, por forma a compensar as inibições de iniciativa que os ferem por confronto com os outros cidadãos.
 
Que me recorde nada disso aconteceu. O problema foi-se arrastando, isto é, acumulando e agravando, sem que dele ninguém ouvisse alerta vigoroso ou protesto firme. Na agenda da política e da comunicação social, o problema só passou a ser problema quando se murmuraram levantamentos de rancho ou ameaças de outros incidentes foram surgindo no horizonte. E, todavia, o problema estava lá desde há anos.
 
Das três, uma. Primeira hipótese: na sua relação discreta, mas permanente, com o Presidente da República, o Governo e, última barragem, a Assembleia da República, os militares tardaram a fazer sentir a injustiça que se acumulava. Segunda hipótese: os militares foram exprimindo esse desagrado, mas Presidente, ministros e deputados não ouviram. Terceira hipótese: os políticos foram ouvindo, mas não ligaram, ou melhor, os partidos - sobretudo aqueles com responsabilidades de Governo na última década: PSD e PS - não reconheceram devidamente dimensão e importância ao problema. O que, entretanto, se passava na comunicação social era efeito composto de tudo isto. Isto é: nada. Isto é: desconhecimento ou desinteresse prolongados. Depois, já é sempre tarde. E mais complicado.
 
É interessante como esta crise acontece, ao mesmo tempo que tanto se falou de um exército único europeu ou de uma atitude diferente perante as responsabilidades próprias de defesa, no âmbito geral europeu. Alguns pensarão que esse quadro atenuará as próprias responsabilidades nacionais quanto aos militares e às nossas Forças Armadas. Para mim, é exactamente ao contrário. Desde logo, por não acreditar nas virtualidades, na bondade ou na possibilidade nas próximas décadas de um exército único europeu. Mas, ainda que assim não fosse, é evidente que as crescentes linhas de integração ou de cooperação internacional dos nossos militares aumentam - não diminuem - as suas responsabilidades nacionais e, por conseguinte, as nossas responsabilidades como cidadãos civis perante eles.
 
Em tempo de paz, num quadro internacional em profunda mutação, diante de sistemas de armamento e de defesa cada vez mais complexos e sofisticados, a função militar não se desvalorizou. Pelo contrário, é cada vez mais exigente e deve ser adequadamente valorizada por todos nós. É do melhor interesse do país que assim seja.
 
Militares altamente motivados, convictos e seguros do reconhecimento social do seu papel, apetrechados para garantirem e às suas famílias um padrão de vida paritário com o dos seus iguais noutras áreas institucionais do Estado, libertos de crises de auto-estima, tranquilizados quanto à dignidade estatutária que lhes é reconhecida por quem os emprega (a Nação e o Estado), psicologicamente disponíveis e determinados para as exigências actuais de contínua especialização e modernização, soltos para poderem estar permanentemente atentos aos quadros internacionais em mudança - são peça essencial do nosso funcionamento seguro como comunidade nacional. Num mundo que continua perigoso. Aberto, mas perigoso.
 
As Forças Armadas, além das missões próprias, tradicionais ou estritamente nacionais e internas, são hoje também uma das componentes mais importantes e mais sensíveis da representação externa do Estado e da acção diplomática do país. No terreno. No terreno mais duro e difícil. Estrategicamente mais sensível. Seja nos projectos de cooperação militar em especial com os países africanos de língua portuguesa, seja nas missões em que integram forças internacionais de intervenção ou de manutenção de paz, os militares portugueses são vector principal da nossa afirmação e representação colectivas. Ainda por cima, não há notícias de que o tenham feito mal. Pelo contrário, há muitas notícias e sinais de que o têm feito muitíssimo bem. Com honra, espírito de bem servir e prestígio para Portugal. O que só aumenta a sua razão. Como aumenta em paralelo a nossa responsabilidade nacional para com eles.
 
Estes tempos de sofisticação, de internacionalização crescente e de contínua modernização e especialização não são tempos para nos desinteressarmos da função militar e das Forças Armadas. Pelo contrário, são tempos muito críticos para a identidade nacional e tempos sensíveis para a adequada salvaguarda e expressão duradoura dos nossos interesses nacionais.
 
As Forças Armadas são uma instituição fundamental da Nação. A quem devemos boa parte da nossa existência nacional. E a que devemos prestar sempre - em paz ou em guerra - o justo reconhecimento social.
 
Nesta crise, o que também aflora é alguma crise de entendimento colectivo quanto a nós próprios como povo e como nação. E do destino que queremos realmente como país: ou só sujeitos aos ditames e ao poderio de outros; ou parte activa apenas de instâncias de compreensão e actuação multinacionais; ou Estado independente como sempre e membro actuante e respeitado dos quadros internacionais a que pertencemos ou que nos chamam.
 
A opção que prefiro é a última. Mas, mesmo que não fosse essa a de todos os portugueses no quadro europeu em transformação, é necessário darmo-nos conta de como o longo desinteresse pelas questões militares e a contínua desvalorização das nossas Forças Armadas conduzir-nos-á, a prazo, inexoravelmente, ao nosso próprio apagamento como país, à inutilização prática de algumas das funções soberanas mais relevantes e à primeira daquelas opções, mesmo que, conscientemente, não tivéssemos optado e ninguém nos consultasse sequer a esse respeito: Portugal sujeito apenas aos ditames e ao poderio de outros. Não parte, mas súbdito na esfera internacional.
 
Não sendo isso que queremos, cabe-nos assinalar sempre o contrário. Começando por reconhecer e dar razão aos nossos militares que se queixam da injustiça - que é também um grave erro de política! -, devolvendo-lhes de imediato a paridade em que foram preteridos e restituindo-lhes o apreço nacional de que, pela "secretaria", foram sendo injustamente afastados.»


Diário de Notícias, 03 de Julho de 1999


O PS e a "tropa"


Vasco Pulido Valente
«Agora ninguém se lembra, mas tudo começou logo nos primeiros meses. O Governo socialista arranjou um sem-fim de sarilhos na escolha das chefias da Marinha e do Exército; aboliu os tribunais militares; removeu dezenas e dezenas de militares de cargos que tradicionalmente ocupavam apenas por o serem; ignorou vários levantamentos de rancho na Força Aérea; permitiu que um general no activo se pronunciasse em público sobre política; e o sr. ministro da Defesa António Vitorino revelou alegremente ao País que estava a preparar uma aliança dos oficiais novos contra os velhos. A verdade é que os socialistas portugueses não vêem qualquer utilidade nas Forças Armadas. Não percebem de facto porque hão-de pagar fragatas, submarinos e tanques (ou majores e coronéis), quando com o mesmo dinheiro podiam, por exemplo, comprar um milhão de votos. De Mário Soares - que nunca conseguiu distinguir um alferes de um almirante - a Sampaio e Guterres, todos têm um ódio visceral à tropa. Um ódio histórico, que nasceu na "esquerda" jacobina e foi fortalecido por 50 anos de Salazar. Na cabeça do típico PS, a tropa só serviu para fazer o "25 de Abril" e só serve hoje para fingir que Portugal cumpre as suas "obrigações" na NATO e na "Europa". De resto, incomoda - com a sua ética e as suas "manias". O PS e o Governo, no fundo, gostavam que a tropa não existisse e, como é difícil acabar com ela de repente, vão acabando com ela pouco a pouco. Que os oficiais e os sargentos - num puro acto de insubordinação - andem por aí em manifestações de rua não os preocupa - e não lhes mete medo. O tempo dos "golpes" já passou. E nem Bruxelas deixava, por amor de Deus. Eles, portanto, que aguentem. O dinossauro também se extinguiu, não extinguiu?»


Diário de Notícias, 03 de Julho de 1999


A humilhação dos militares


Emídio Rangel
«O país político está em conflito com os militares dos três ramos das Forças Armadas. Noutros tempos, isto constituiria o sinal de um golpe de Estado iminente. Hoje, felizmente, estes conflitos têm outras alternativas de solução. Os militares parecem ter esse princípio inteiramente adquirido e, por isso, as suas manifestações de descontentamento não são o uso das armas.
 
Proibidos de falar, impossibilitados constitucionalmente de se manifestarem, os militares, que mostram aceitar, sem discussão, a ordem democrática e a subordinação aos poderes instituídos pelo povo através do voto, encontraram, no limite da paciência, formas de explicitar o seu descontentamento. Passeatas nos lugares públicos das grandes cidades, almoços e jantares de grupos numerosos de oficiais e sargentos, oferecendo a ideia de que estão descontentes e fora dos quartéis.
 
Os políticos, melhor dizendo, os políticos que têm estado no Governo, têm exibido uma indiferença preocupante pelos sinais que chegam do interior das Forças Armadas. Em minha modesta opinião, a classe política tem desprezado, ano após ano, as sucessivas informações sobre o estado caótico em que se desenvolve a actividade militar em Portugal, tem descurado o reequipamento das Forças Armadas e, portanto, a desqualificação técnica dos militares portugueses, sobretudo quando comparados com os dos restantes países da Comunidade Europeia, tem deixado degradar as carreiras e os respectivos sistemas remuneratórios, havendo discrepâncias que roçam a ofensa.
 
Os políticos evidenciam um trauma e um bloqueio de natureza psicológica que resulta da circunstância de as Forças Armadas terem sido o sustentáculo do regime anterior e posteriormente o carrasco que o deitou por terra. Por isso, nestes extremos, são muitos os exemplos de desconsideração do poder político pelos militares ao longo dos 25 anos de democracia. Desde a forma inábil como procederam à transferência dos poderes do Conselho de Revolução para as instituições que constitucionalmente lhe sucederam, até à fase actual de completo alheamento dos múltiplos apelos da hierarquia militar. Hoje, Portugal tem, em geral, umas Forças Armadas desmoralizadas, desmotivadas, equipadas com material obsoleto e, em regra, incapazes de cumprir as missões que lhes estão reservadas no quadro constitucional. Os políticos, que até agora não foram capazes de reorganizar as Forças Armadas e definir-lhes um papel claro no mundo de hoje, podem até entender que os militares já não lhes fazem falta, mandar fechar os quartéis e fazer mais umas urbanizações nesses terrenos. O que não podem é deixar apodrecer esta situação e humilhar os militares até ao desespero.»


Público On-line, 20 de Julho de 1999


Da guerra e da paz


José Ribeiro e Castro
«(…
) Por falar em guerra, há outros temas da paz nas nossas Forças Armadas. Ao fim de muito empurrão, o Governo e os militares parecem ter chegado a um acordo suficiente. Ainda se murmura algum descontentamento. No corporativismo que o estilo de governação socialista fez regressar com exuberância, sobram sempre segmentos a atender e soltam-se outras pontas que ficam a chiar. Mas, no essencial, os problemas que fizeram transbordar o descontentamento dos quartéis terão tido resposta.
 
O problema é que a questão de fundo não parece ter sido sequer entendida. E a verdade é que a questão de fundo não será entendida e realmente respondida sem um passo essencial: que o próximo ministro da Defesa Nacional seja um militar.
 
Há 20 anos atrás, a questão política era da subordinação do poder militar ao poder democrático, civil. Que os ministros da Defesa fossem civis, era apenas normal nesse quadro. Hoje, que a questão foi resolvida, a necessidade parece ser cada vez mais a inversa: que o ministro da Defesa seja um militar.
 
Nos murmúrios da crise recente, houve tiros apontados contra a Lei da Defesa Nacional, de 1982. Não está aí o problema, independentemente dos acertos e melhorias que a lei possa merecer, como outras. O problema é que, ano após ano, a subordinação do poder militar ao poder democrático civil foi sendo praticada como se os militares devessem ser politicamente uns proscritos. Nas últimas décadas, por exemplo, ser-se militar transitou de qualificação adequada a um candidato a Presidente da República para um quase absoluto estigma civil.
 
O descontentamento militar e a grave desmoralização latente resultam não da lei em si, mas da insensibilidade, do desconhecimento, da aparente alergia dos políticos civis diante dos temas militares - de um divórcio crescente que o poder foi cavando ou deixando cavar entre a sociedade política e os quartéis. O diferendo remuneratório e a injustiça que se acumularam ao longo de anos, bem como a forma como a crise transbordou, são meros sinais desse divórcio. Mas o divórcio foi cavado mais fundo. Não é este acordo de circunstância que o supera.
 
Há temas que, desse modo, temos vindo a tratar mal ou mesmo a descurar, com dano e até perigo para os interesses do país e a saúde da democracia. A reorganização geral da Defesa, a premente actualidade dos temas da política militar no quadro da NATO e da União Europeia, a cooperação com África, o reequacionamento efectivo do contingente, a redefinição da missão e do conceito estratégico, quer nacional, quer integrado - em suma, a efectiva substância da condição militar e o relevo da sua especialidade, experiência e conhecimento na definição das políticas gerais do país. É Portugal quem perde muito se persistir em ignorar as Forças Armadas no seu rumo. E se persistir em não enquadrar, nem integrar, em não colher, nem acolher o contributo directo e conhecedor das Forças Armadas na definição geral das políticas de que mais sabem.
 
Subordinação das Forças Armadas não significa amputação. Ser-se militar não é um mais – mas também não pode ser um menos. Se foi por aí que andámos, é isso que importa corrigir. E assinalá-lo no Governo.»


Jornal de Notícias,  11 de Agosto de 1999


A Dignidade das Forças Armadas


Fernando de Sousa (deputado do PS?)
«Recentemente, uma certa agitação perpassou nas Forças Armadas, as quais, através dos seus chefes principais, deram a conhecer algum mal-estar no seu seio, chamando a atenção para algumas situações menos próprias e levantando questões que têm a ver com o prestígio e a dignidade das Forças Armadas.
 
Nenhum Estado se pode dar ao luxo de prescindir das suas forças armadas, quer em tempo de guerra, logicamente, quer em tempo de paz.
 
Salvaguarda da autonomia, soberania e independência as Forças Armadas, ao presente, constituem um conjunto de instituições militares, diversificadas, estruturadas e extremamente complexas, onde a hierarquia e a disciplina encontram, quiçá, a sua expressão mais absoluta.
 
Se em tempo de guerra a sua função é determinante, nem por se viver em paz o seu papel deixa de ser fundamental.
 
Alguns sectores ditos intelectuais ou progressistas, em nome de ideologias preconceitos, falácias ou recalcamentos? Muitos deles, nunca fizeram serviço militar, pelo que falam daquilo que na realidade nunca conheceram bem -, contestam, aberta ou surdamente, a dimensão e por vezes até, a própria existência das forças armadas. Contestação, naturalmente, feita em tempo de paz, o que os leva a perguntar, como eu próprio já ouvi: para que servem as Forças Armadas?
 
Contestar a existência, a pertinência e a validade das nossas Forças Armadas é pôr em dúvida a própria existência de Portugal enquanto país soberano e independente, com oito séculos de história. Porque as Forças Armadas portuguesas, como a Igreja, com todos os seus defeitos e qualidades, constituem as duas traves mestras da nossa independência e da nossa existência como Estado dotado de uma sólida identidade forjada pela espada e pelo leme.
 
A defesa da nossa existência, identidade e interesses nacionais, confunde-se, em grande parte, com a existência, a dignidade e o prestígio das nossas forças armadas, as quais, por seu lado, têm de revelar uma inequívoca e superior consciencialização das suas funções e tarefas, mas às quais, por outro lado, o Estado e a sociedade devem conceder os meios indispensáveis para que os militares sintam o autêntico orgulho em assumirem-se enquanto tal.
 
Estamos certos que este Governo saberá atender os legítimos interesses das nossas Forças Armadas, porque mal vão as forças armadas e o País quando aquelas, da justa e recatada pretensão, têm de passar à reivindicação pública.»


Aqui fica, camaradas e cidadãos em geral, a «coerência» de certas pessoas e a comparação dos sentimentos vividos há seis anos e dos actualmente expressos. O que mudou, afinal? As Forças Armadas ou o Poder Político? Não será que anda por aí muita gente sem vergonha?




 

08.10.05

A «revolução» do Estado português


Luís Alves de Fraga

Há algumas semanas atrás, o Senhor General Loureiro dos Santos, num programa televisivo, referiu que, na sua perspectiva, os acontecimentos actuais em Portugal, independentemente da problemática militar então vivida no seu auge, faziam parte de uma «revolução» dentro do Estado, no sentido em que tudo está em mudança, na conjuntura presente.


Não duvido da certeza da afirmação de tão brilhante quanto corajoso oficial general. Contudo, como ele se deve lembrar, também há 30 anos havia armas «em boas mãos» e «armas em más mãos», para usar uma terminologia da época e de que ambos nos lembramos. No fundo, também há 30 anos, havia uma revolução «boa» e uma revolução «má». Deste modo, resta qualificar a «revolução» actual, coisa que o Senhor General não fez.


A «revolução» que acontece em Portugal neste momento é fruto de um acumular de circunstâncias em nada excepcionais, porque sempre foi assim ao longo da nossa História. Excepcional é que, conhecendo-se o mal, não se lhe tenha sabido dar cura em mais de quinhentos anos.


Comecemos pelo princípio.


Olhemo-nos, como soe dizer-se, com olhos de ver. Dizemo-nos Latinos, europeus, descendentes dos celtiberos. Tudo é verdade, mas tudo é falso. Falso, porque de europeus só temos o «acidente» geográfico da Península estar ligada à França pelos Pirenéus; Latinos, porque falamos um idioma cuja gramática deriva em linha recta da dos habitantes do Lácio; e celtiberos, porque acreditamos subsistirem nos nossos cromossomas elementos genéticos daquele ancestral grupo étnico habitante da Ibéria. A verdade é bem diferente. Somos cultural e geneticamente berberes, cristianizados e latinizados.


Em nós subsistem traços culturais comuns aos dos mais antigos habitantes do Norte de África: em certo sentido, o sedentarismo agrícola baseado na exploração frutícola e o nomadismo da irrequietude das tribos comerciantes que navegam o deserto; noutro, um individualismo quase grotesco que só se alarga ao clã (seja ele definido pela família, pela vizinhança ou pela miséria). Como resultado, todo o Português sonha com o seu pequeno negócio — se possível capaz de arruinar o do vizinho das portas mais próximas. Para isso, atravessa (tal como atravessou nos séculos xv e xvi) os desérticos oceanos montado num «camelo de pau ou de ferro e movido a vento ou a nafta», à semelhança dos seus ascendentes que, em camelos de carne e osso, «navegam» os «oceanos» de areia desejosos de ganharem o necessário pecúlio para, sedentarizando-se, comprar terra ou o estabelecimento de pequena venda. Foi esta exiguidade de vistas, coberta por um manto espesso de mesquinhas ambições, que nos levou à Índia, ao Oriente, à desconhecida África sub-sariana , aos Brasis, e a recônditos lugares onde poderíamos matar a constante sede de comércio, de riqueza, de ganho de estatuto social, de seja o que for de diferente, para fazer inveja aos menos aventureiros que ficaram amarrados à miséria de uma terra pobre e sedenta de suor para dela arrancarem o magro e escuro pão de cada dia.


Foi neste conjunto de defeitos estruturais, organicamente estruturais, que se fundamentou a nossa inédita epopeia de «dar mundos ao mundo». Tudo para impressionar o vizinho, o familiar, a mulher amada ou desejada, mas nunca na convicção profunda de fazer seja o que for pelo desejo de grandeza do Povo como um todo. Não, isso veio depois pela voz dos poetas, dos líderes políticos e dos historiadores; isso é o mito grandioso que envolveu a pequenez de sentimentos mesquinhos que se satisfazem na compra de um meio de transporte mais impressionante do que o do «senhor» da aldeia ou da rua do burgo donde partiu miserável, mas obcecado por uma «vingança» ditada pela fome de grandeza pessoal, jamais alcançável. Há-de voltar para se exibir, mas nunca para empenhar o seu dinheiro em obra de rendimento garante de um futuro grande para a família, a aldeia, a cidade, o país! Não. Vem para se mostrar, esgotando as largas bagas de suor deixadas em terras alheias, em aparato pouco produtivo, tal como o fez o seu avô e o avô do seu avô.


Maldita inveja, que nos está agarrada às paredes da rede sanguínea qual colesterol hereditário, fazendo-nos mesquinhos, capazes de desejar a pobreza alheia se não alcançarmos o seu nível de riqueza. É pouco importante que chafurdemos na miséria desde que o vizinho dela não saia ou possa dar sinais de abastança.


Não está na nossa índole procurar fazer como quem enriqueceu para construir impérios financeiros sólidos e resistentes ao rodar dos tempos. Não. Está-nos na alma o parecer e nunca o ser verdadeiramente; está-nos nos bofes a pequena inveja traiçoeira ditadora de uma pseudo-independência construída sobre o receio de não sermos tomados como gente importante.


Destes males, que nos vieram geneticamente dos Algarves d’além, padecem os emigrantes que partem para a França, o Luxemburgo, a Alemanha, tal como os que aqui ficam especados, presos na leira de terra, no salário da fábrica, no magro pedaço de orçamento do Estado que lhes escorre para as mãos, nas prebendas resultantes de um canudo conseguido na Universidade sabe Deus a custo de quanto dinheiro e pedidos aos mestres, nas caixas das esmolas dos templos dos que professam e entregam a sua vida a apascentar o rebanho de Deus, nas contas bancárias dos que juram servir como políticos a comunidade de invejosas e mesquinhas gentes que nós somos.


Foram estes males que nos trouxeram a riqueza da pimenta, do cravo, da canela, das pérolas, da seda do Oriente, do açúcar, do ouro e das pedras preciosas de África e do Brasil e, bem mais recente, dos milhões despejados sobre nós como chuva tropical pela Comunidade e que encheu os bolsos dos mais avaros, mais espertos, mais corruptos, mais invejosos, mais espaventosos, sem que nada, ou quase nada, passasse para obras efectivas de progresso da comunidade.


Senhor General Loureiro dos Santos, com todo o respeito que o seu valor como homem de impoluta dignidade, como militar exemplar, como estrategista de renome, como pensador, como laureado estudante, deixe que, concordando com a sua opinião, discorde dela num jogo aparentemente paradoxal. Deixe, porque doenças hereditárias não se curam com estas «revoluções» porque os «revolucionários» estão inquinados pelo mal que prevalece. Na História e da História ficou-nos a vaga ilusão de sermos pacíficos sob o peso da canga obscurantista e mansos quando limitados pelos varais da carroça ditatorial. Não quero ser catastrofista na análise nem na conclusão. Não quero, porque racionalmente me repugnam o obscurantismo e as ditaduras, por isso pergunto-me: — Estaremos, neste momento, realmente, a viver uma «revolução» despojada da carga hereditária que deixei esboçada ou estaremos a ser as vítimas mais sofridas da endemia nacional? Volto, assim, ao ponto de partida, quase convicto de ser esta, pelas razões expostas, a «má» revolução. Mas será, efectivamente?


Cabe-nos, a nós soldados, saber a resposta, por, supostamente, representarmos não só o último pilar onde se sustenta o Estado e a Nação, mas, também, o lado mais saudável, mais puro, mais genuíno, porque realmente abnegado, deste corpo há muitas centenas de anos auto-deformado.

04.10.05

Estultícia minha ou estupidez do Governo?


Luís Alves de Fraga

No ano de 1979 — e nos anteriores — a Base Aérea n.º 11, situada a poucos quilómetros da cidade de Beja, tinha uma exígua guarnição da Força Aérea Portuguesa, mas, em contrapartida, era numerosa a de militares da Força Aérea Alemã. Aquela unidade servia, essencialmente, para treino das tripulações de aeronaves germânicas, todavia, por força dos acordos existentes, a Base era portuguesa, comandada por um oficial português de graduação superior ou igual à do comandante do contingente alemão. No caso de igualdade, o português teria de ser mais antigo no posto.


A guarnição nacional pouco mais além ia do que a necessária para manter a defesa e segurança próximas das instalações e correspondentes serviços de apoio a essa missão. Por volta de Fevereiro, comandava a Base um tenente-coronel piloto-aviador e, em consequência das circunstâncias atrás descritas, o oficial mais antigo na hierarquia portuguesa era eu, na altura capitão com nove anos de permanência no posto. Nas justificadas ausências do comandante competia-me, entre outras atribuições, estabelecer os contactos com o tenente-coronel alemão comandante do contingente ali sediado.


Algumas vezes, próximo das 16 horas, chegava ao Comando a indicação de que uma aeronave portuguesa ia aterrar na pista por volta das 17 horas ou, às vezes, mais tarde até. Como os controladores de voo eram alemães e o serviço para eles encerrava rigorosamente às 16 horas lá me cabia, na ausência do tenente-coronel português, telefonar para o comandante germânico, pedindo-lhe para manter a torre de controle aberta até a aeronave nacional descolar novamente de regresso à sua base de origem. Nestas alturas, as excelentes relações que entre nós existiam, toldavam-se com uma evidente má vontade do oficial alemão.


Um dia, já cansado de ouvir referências pouco elogiosas à falta de planeamento do Estado-Maior da nossa Força Aérea, desloquei-me ao gabinete do comandante do destacamento germânico e inquiri dos motivos justificativos de tanto desagrado. Com a exactidão geométrica que caracteriza o raciocínio daquele povo, o tenente-coronel explicou-me o seguinte: todos os militares alemães tinham direito a um mês de férias por ano, mas por cada hora a mais de serviço, para além do horário normal, ganhavam o direito a duas horas de licença. Ora, se os controladores aéreos, ao cabo de 11 meses, tivessem direito a um mês de licença e mais oito dias por via das horas extraordinárias, ele poder-se-ia ver confrontado com a situação de, durante algum tempo, não ter controladores suficientes para manter, dentro do horário normal, o serviço em pleno funcionamento e não podia pedir para a Alemanha nenhum tipo de reforço nem impedir os militares de gozarem as suas licenças extraordinárias quando eles o exigissem.


Compreendi e expliquei que em Portugal os militares tinham por obrigação estarem disponíveis para o serviço 24 horas em cada dia do ano, sendo que a licença só poderia ser gozada se não houvesse prejuízo para o regular funcionamento da unidade. Retorquiu-me, fazendo o seu melhor sorriso: — Quem me dera ter nascido português e servir na vossa Força Aérea... Nunca tinha dores de cabeça!


Isto passou-se há 26 anos!


Quer dizer, pelo menos, a Força Aérea Alemã já gozava de regalias sindicais quando em Portugal se davam os primeiros passos na Democracia. O «imperialismo militar» prussiano havia desaparecido por completo das fileiras e, de certeza, não tinham sido oferecidos, pelo Governo, «de bandeja», estes verdadeiros privilégios aos militares germânicos. Era, pela certa, o resultado de uma forte reivindicação!


Foi só quando pensava no texto deste comentário que percebi o meu elevado grau de estultícia e de pouca perspicácia! Não tenham dúvidas da afirmação, porque vou explicar.


Não percebi a subtileza dos cortes dos escassos privilégios que os militares portugueses tinham até há poucos dias atrás. É que o Governo socialista da chefia do Eng.º Sócrates, está, à revelia dos Portugueses e do Povo em geral, a querer conceder aos militares o que lhes cabe, efectivamente, como cidadãos de pleno direito. Quer acabar com a condição militar — que é uma servidão do passado, inconcebível no século xxi — dando-nos direitos iguais aos de todos os servidores do Estado. Em primeiro lugar, um verdadeiro sindicato e não umas associações profissionais «de trazer por casa»; depois, o estabelecimento de um horário rigoroso de trabalho; em seguida, direito ao recebimento de horas extraordinárias ou, em alternativa, dias de licença para além daqueles que, como qualquer trabalhador, podemos gozar em cada ano; acrescente-se o direito de manifestação pública; e,  por fim, outras vantagens que a minha falta de perspicácia não me ajuda a vislumbrar para além do subtil segredo tão bem guardado por Luís Amado e José Sócrates.


Admito a minha estultícia e falta de argúcia na presunção de que o ministro da Defesa Nacional e o Primeiro Ministro deste país não sejam eles tão estúpidos e ingénuos que tenham acreditado que cortavam pequenos privilégios e a condição militar, aceite e imposta aos profissionais castrenses, e tudo o mais ia ficar exactamente como até aqui! Ou bem que estamos na Europa e nos regulamos pelos princípios europeus, seguidos por outras Forças Armadas, ou bem que estamos numa República das Bananas e, neste caso, algo terá de ser diferente! Não acha, Senhor Engenheiro José Sócrates?

02.10.05

O património do IASFA, a nova ADM e a gasolina «barata» dos militares


Luís Alves de Fraga

A minha sábia avó materna dizia, quando eu era garoto uma frase que me intrigava pela bizarria do conceito: O Diabo sabe muito não é por ser diabo, é por ser velho.

Como eu hoje compreendo aquela minha avó!

O conceito de velho, felizmente, foi variando com os tempos. Agora, um rapaz de 64 anos está na boa idade de começar a pensar em ser velho, porque, por imposição deste e de outros Governos de Portugal, um trabalhador, só aos 65, pode reformar-se já que os políticos militantes o podem fazer muito mais cedo... Desgastes prematuros de tão árdua profissão!

Seja como for, velho ou não velho, certo é que recordo coisas desconhecidas dos jovens em geral e dos militares na situação de activo.

Quem se lembra ainda de nós usufruirmos de gasolina mais barata, quando abastecíamos as nossas viaturas em bombas das unidades? A perda deste «privilégio» quase se tornou consensual pois a diferença de preços era tão baixa que não merecia a pena a celeuma levantada nos órgãos de comunicação. Engraçado foi, quase de imediato, ter-se tornado regra para os funcionários da GALP a venda de combustível a valores inferiores aos do mercado e, pouco depois, terem, quase todas as empresas do país, passado a distribui senhas de combustível (compradas, naturalmente, a preço menor) para distribuírem como forma de pagamento suplementar aos seus empregados! Coisas só possíveis em Portugal!

A gasolina vendida aos militares, mesmo a baixo preço, ainda dava uma margem de lucro que era contabilizada na receita dos Orçamentos de Fundos Privativos dos respectivos ramos, devendo ser entregue aos Serviços Sociais das Forças Armadas (SSFA) uma significativa percentagem. Este organismo, para além de tal receita, sustentava-se com a contribuição mensal de 0,8% dos salários de todos os militares.

Os SSFA, nos anos 40 e anteriores do século passado, chamavam-se Obra Social do Exército (OSE). Os seus fins subentendiam-se da própria designação: abrangia alguns apoios sociais possíveis de manter com parte das fontes de receita já mencionadas (evitamos ao leitor pormenores de escassa importância).

O Estado Novo, desejoso de mostrar obra social protectora, determinou a transformação da OSE em SSFA, integrando todos os ramos no órgão até então restrito às forças terrestres. Para poder contribuir com um quinhão do magro orçamento destinado às Forças Armadas, o Dr. Oliveira Salazar, pela mão do Ministério respectivo, integrou nos SSFA as Assistências aos Tuberculosos que funcionavam autónomas na Armada e no Exército. Assim, ficou a cargo daquele organismo a chamada Assistência aos Tuberculosos das Forças Armadas (ATFA) que geria o apoio ambulatório e a hospitalização nos sanatórios da serra do Caramulo. No final dos anos 60 do século xx deixou de se tratar a tuberculose em isolamento e em climas de altitude, passando-se à assistência em regime ambulatório. Assim se retirou uma excelente fonte de receita à família Lacerda proprietária dos sanatórios na serra e do monopólio da sua exploração naquela zona (hoje resta o museu de carros antigos como prova do desafogo financeiro desses «magnatas» da cura de um tormento social, agora, de novo, em fase de expansão).

Para além desta faceta sanitária, os SSFA davam apoios financeiros aos militares carentes de empréstimos a baixo juro, comparticipavam na aquisição de livros de estudos para os filhos dos menos graduados, distribuíam subsídios escolares, construíram prédios de apartamentos em Lisboa e arredores onde, por concurso, se alojavam as famílias mais numerosas e com menos recursos e, com os dinheiros da gasolina, construíram ou transformaram edifícios em estabelecimentos para alojamento de velhos militares e/ou das suas mulheres viúvas ou inválidas.

Para aqueles dos meus leitores amantes da teorização das actividades práticas, os SSFA estavam entre o modelo do associativismo cooperativo resultante da exploração capitalista do século xix e o modelo da assistência social corporativa do Estado Novo. Nas Forças Armadas, o fruto mais acabado deste último modelo foi a criação, nos três ramos, e laborando de forma independente, das ADM’s (ADMA, ADME e ADMFA) — Assistência na Doença aos Militares da Armada, Exército e Força Aérea.

Mais recentemente os «velhos» SSFA, foram transformados em Instituto de Apoio Social das Forças Armadas (IASFA), não perdendo nenhuma das suas características básicas herdadas do organismo de onde provinha.

Ainda que, com todos os defeitos próprios de uma severa ditadura, os governantes do Estado Novo eram cautelosos na legislação produzida (aliás, nem de outra forma faria sentido!). Procuravam que a teia e a trama do tecido legislativo, além de ser fortemente apertada no tear da boa utilização da Língua Portuguesa — o que não era de somenos importância —, não apresentasse pontos de fissura, coisa que os apressados Governos democráticos deixaram de cultivar — escreve-se mau português e toda a legislação é feita em cima do joelho. A prova, mais do que evidente, está no Decreto-lei n.º 167/2005 de 23 de Setembro o qual, por força do Art.º 15.º, integra as diferentes ADM’s no IASFA, misturando, como soe dizer-se, «alhos com bugalhos» e, por disposição do Art.º 13.º (será para condizer com a tradição popular de considerar este número aziago?) vai obrigar os militares — todos — a contribuírem com mais 0,2% para aquela instituição, para além dos 0,8% que já descontávamos no salário mensal.

Como é que se vão compatibilizar realidades tão distintas? Isso vai conseguir-se baseados no improviso, no tão lusitano desenrascanço. Importante era liquidar pequenas vantagens diferenciadoras da actividade e riscos da vida castrense das que caracterizam o funcionalismo público, fazendo crer aos Portugueses quanto estes dois grupos sócio-profissionais são «privilegiados» no contexto nacional!

Para que fique bem clara a asneira legislativa veja-se em resumo. Ao património de um organismo que, em grande parte, se deve às cotizações dos militares de há mais de 50 anos — cotizações directas e indirectas (caso dos lucros da venda das gasolinas) — o Governo dito socialista, mas, realmente, profundamente neo-liberal, chefiado por José Sócrates, impõe-lhe uma assistência que o Governo da ditadura havia assumido como encargo do Estado e, não satisfeito, obriga os militares a subsidiarem a sua própria assistência sanitária, em mais 0,2%, para além dos cortes nas comparticipações de aquisição de medicamentos, consultas médicas, próteses e meios auxiliares de diagnóstico!

É o descaramento total se compararmos com a indecorosa injustiça de haver em Portugal funcionários de empresas públicas auferindo benefícios inauditos, reformados em idade de trabalho — continuando a trabalhar —, sistemas assistenciais verdadeiramente milionários e outras regalias que não são imaginadas pelo cidadão comum.

Voltando à sabedoria  da minha falecida e saudosa avó, dizia ela, no tempo da ditadura, entre dentes, não fossem ouvidos inconveniente escutarem, o ditado popular: Tão ladrão é o que vai às uvas como quem fica de guarda. Ora eu não quero acreditar que José Sócrates, por um passe de magia, se tenha transformado no esperto e ganancioso mercador Ali Babá, mas que me parece que são mais de 40 os ladrões frequentadores da sua caverna... lá isso parece!